A Maldição da Nona (não confundir com avó em italiano, que é nonna)

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Mozart escreveu 40 sinfonias (a 37 não existe); Haydn, 104; Brahms escreveu apenas 4 e Shostakovitch pretendia produzir 24, mas ficou em 15. Porém, seis dos maiores sinfonistas de toda a história da música compuseram 9 e logo morreram, forjando o mito de que a nona, ou a décima, é fatal. Vejam a lista abaixo e surpreendam-se com o tamanho da coisa… É como se a morte sempre entrasse em campo quando o imortal pretendesse chegar ao número dez. Aviso: não sou numerologista e não dou a menor importância a este tipo de — creio! — crendices.

Beethoven-Musica-classica.jpgLudwig van Beethoven (1770-1827) está em qualquer seleção de maiores sinfonistas. Se alguém o deixar de fora, merecerá internação. Beethoven fez da 9ª Sinfonia seu testamento musical. Com problemas de saúde cada vez mais notórios, o compositor teve tempo de preparar sua despedida com a maior de suas sinfonias. Ele inaugura nosso sortilégio e, se o leitor não tiver muita intimidade com o mestre, dê preferência à audição das sinfonias Nº 3, 5, 7, 8 e 9. Claro que ele não caiu morto fulminado por um raio logo após fechar o manuscrito da Nona, depois dela ele ainda escreveu algumas de suas maiores obras, os últimos Quartetos de Cordas. Mas a décima ficou em menos do que um rascunho.

franz-schubertFranz Schubert (1797-1828) morreu um ano depois, logo após escrever a sua nona. A curiosidade é que sua oitava sinfonia é conhecida como a Inacabada. E estamos certos em chamá-la assim, pois Schubert abandonou-a ao compor os temas que utilizaria na última. A Sinfonia Nº 9 também é conhecida, com total merecimento, por “A Grande”. Também vale a pena ouvir, além das citadas Nº 8 e 9, a 4 e a 5. Todos pensam que Schubert morreu de sífilis. Nada disso. Morreu de tifo, após ingerir um vulgar peixe contaminado. Ou seja, uma droga de um peixe podre ceifou Schubert durante seus anos mais produtivos. Espero que, se o inferno existir, este peixe esteja lá queimando. Até agora.

brucknerAnton Bruckner (1824-1896) é outro dos grandes sinfonistas indiscutíveis. Ele praticamente só se dedicou a este gênero. Além delas, compôs apenas 3 Missas, 1 Te Deum e pouquíssimas obras de câmara. Seus contemporâneos o consideravam quase como uma criança idiota e a opinião a este respeito é tão unânime que deve ser verdade. Porém, se você continuar a chamá-lo de burro após ouvi-lo, ficarei desconfiado. Sim, de você. Deve tratar-se do idiota mais profundo que se tem notícia, o que prova que a inteligência musical sobrevive mesmo em um cérebro limitado. Há duas curiosidades a seu respeito. A primeira é que Bruckner, já agonizando, quis que seu Te Deum fosse acrescentado como último movimento de sua 9ª. Não foi atendido; era um evidente absurdo. A segunda é que ele possui uma sinfonia Nº 0 e outra 00. É que após a publicação das primeiras sinfonias, apareceram aquelas que o compositor escrevera antes, mas que tinha escondido por vergonha. São excelentes e para não demonstrar uma possível involução em seu estilo, denominou-as Zero e Zero-Zero. Mas, apesar de todos esses zeros, não sobreviveu à décima. Indico fortemente as sinfonias Nº 4 (Romântica), 5 (que possui um adágio estarrecedor de tão belo), 7 e 9 (ambas espantosas).

mahlerGustav Mahler (1860-1911) é o caso mais explícito de medo à 9ª. Contrariamente a Bruckner, era um intelectual e regente respeitadíssimo na Viena da virada do século. Mahler tinha grande temor de escrever sua nona sinfonia e dizia isto a todos. Sabia que a décima o mataria… Quando compôs a oitava (Sinfonia dos Mil), resolveu fazer uma pausa e atacou “A Canção da Terra” (Das Lied von der Erde), que talvez seja sua maior obra, mas que, cá para nós, é uma sinfonia camuflada de ciclo de canções. Com isto, pensou ter enganado o capeta. Só então escreveu sua nona e, por uma distração do diabo, conseguiu até escrever o primeiro movimento da décima, só que… Morreu sem compor os outros movimentos. Outros caras a completaram. Estes sim deviam morrer. Suas melhores sinfonias são todas.

DvorakMenor que os citados, há Antonín Dvorak (1841-1904). Foi um compositor mediano que escreveu lindos quartetos de cordas e que deve ser muito elogiado na presença de checos. Eles se ofendem facilmente. E as sinfonias? Ele compôs nove sinfonias muito parecidas. Todas com quatro movimentos: o primeiro movimento possui 3 temas; o segundo movimento geralmente é um adagio; o terceiro movimento é uma dança ou fuga que copia Beethoven; o quarto movimento é livre, mas melhor seria se não existisse. Deveria ter morrido antes, mas ficou por aí até terminar a nona. Deixou um número surpreendente de obras inacabadas. Sorte nossa. E dele, pois morreu rico e famoso. Sentiram que eu não gosto muito do moço, né? Mas OK, admito que a  8ª e a 9ª são bem legais.

spohrLouis (ou Ludwig) Spohr (1784-1859) escreveu nove sinfonias e deixou a décima pela metade. Achava mais seguro escrever concertos para violino, tanto que escreveu dezesseis. Há um — o oitavo — que é bastante revolucionário, escrito em apenas um movimento, para gáudio de Jasha Heifetz. Sua nona sinfonia é programática e tem um nome incrivelmente original: As Estações. Enquanto vocês decidem se ele plagiou Vivaldi ou Haydn, vou dizendo que Spohr foi um bom compositor, apesar de minhas ironias.

.oOo.

Por isto, aconselhamos a todos os candidatos a compositores eruditos que se depararem com este texto: evitem o gênero ou utilizem-o com parcimônia. Está provado: a décima pode matar.

setimo selo bergman

Mas confiram o comentário de Filipe Salles:

Caro Milton, devo objetar de sua conclusão, se me permitir, pelos seguintes argumentos: Destes compositores que vc mencionou, apenas Beethoven e Spohr realmente escreveram 9 sinfonias completas (e talvez Mahler, dependendo da interpretação). Schubert deixou sua 7a. sinfonia apenas em esboço melódico, tendo orquestrado uma parte muito pequena dela. Ele próprio se esqueceu desta obra e muitos musicólogos não a consideram no rol da numeração canônica. Há uns 15 anos atrás a Sony lançou uma série com ninguém menos que Giulini regendo, tendo a capa a indicação “Schubert: Symphony no.7 (8)” e também “Symphony no.8 (9)”, apenas para saberem que se tratava apenas de uma questão numérica. No caso de Bruckner, como você mesmo diz, ele escreveu 11 sinfonias, sendo as 2 primeiras rejeitadas por serem obras de juventude. Uma sinfonia em Fá maior não tem numeração e a famosa Número Zero é a “die Nullte”, a nula, que na verdade foi escrita entre a Primeira e a Segunda. Bruckner não aguentou as críticas feitas à ela e riscou na partitura autógrafa a numeração “2”, substituindo pelo 0, acrescentando que ela “não contava”. Mas ambas estão completas e foram editadas, de forma que também é só uma questão de posição dos números. O caso de Dvórak é mais esquisito: apenas suas 5 últimas sinfonias foram publicadas em vida, e as demais só vieram à tona a partir de 1917, quando o musicólogo Otakar Sourek reestabeleceu a ordem por data de composição. A sua Primeira Sinfonia, antes tida como a que hoje é a Sexta, foi recusada num concurso e Dvórak, irritado, disse que a tinha destruído (assim como sua segunda), e só foi executada em 1936, depois de encontrarem os manuscritos originais. Lembro-me até hoje de um disco LP, ainda na era monaural, em que Furtwängler executava a Sinfonia no.5, “Do Novo Mundo”. Ou seja, não poderia haver uma maldição da Nona se ele na época tinha certeza que sua série ia só até a 5a.

No caso de Mahler, depende de considerar ou não o Das Lied von der Erde uma sinfonia, e com certeza na época em que ele estava escrevendo sua Nona, só sabia dos casos de Beethoven e Bruckner, pois a 7a.Sinfonia de Schubert não havia sido completada e as de Dvórak se encerravam na 5a.

No caso de Spohr… Bem, outro dia ouvi suas sinfonias nos. 4 e 5 e achei-as extremamente tediosas, de maneira que não me interessei mais pelas coisas dele.

Um abraço!

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9 comments / Add your comment below

  1. Serbão.

    Acreditas que o filme de Kubrick é algo tão forte que até hoje, ao ouvir certas partes do Scherzo e do Coral final, fico com a sonoridade do Walter (Wendy) Carlos na memória?

    A Laranja é um espanto.

    Abraço.

  2. Interessante vc mencionar a oitava no rol das grandes sinfonias do Beethoven. Eu adoro essa sinfonia desde que a ouvi pela primeira vez, em meus 13 anos. Mas vc esqueceu de colocar na lista a sexta sinfonia, que é monumental_ aquele primeiro movimento é uma massagem no espírito, é uma abdução. Creio que ter sido a sexta a “pastoral” a tenha desqualificado um pouco conceitualmente, em um século cínico como o anterior e este nosso. Mas se trata também de uma das músicas mais belas de todos os tempos. Aliás, graças ao PQPBach, estou enamorado mais uma vez da Nona. Escuto-a quase todos os dias. É admirável como uma criação humana destas possa ser tão desconcertante, tão esmagadora, tão arrepiante, tão acima das palavras. Amo-a imensamente, de uma forma um pouco só menos tola de quando a ouvi na sua primeira apresentação em Goiânia pela orquestra sinfônica. Na ocasião, me senti profundamente incomodado com a vulgaridade em torno dela, assim como o Alex do Laranja Mecânica. Gente fina lotando o teatro, gente com cara séria, intimamente crentes de que a Nona lhes pertencia a cada um individualmente (merecem o pleonasmo). E que vontade de assassinato me passou quando, na ânsia de se mostrarem íntimos dela, alguns começaram a assobiar a Ode, com caras de enlevo, como se não fizessem outra coisa na vida do que cultivarem a obsessão milimetricamente, bustos na mesa central da sala do compositor, quem sabe um ali com maior grandiloquência fingida de modéstia tivesse até a reprodução fiel da corneta acústica do Beethoven. E mulheres cruzando as pernas e salientando seus belos perfis ao examinarem angelicamente os músicos tomando lugares na orquestra, agradecidas por eles se prontificarem com tal altruísmo a se apresentarem apenas para elas. E minha namorada na época que, de cinco em cinco minutos, assim que iniciada a execução da Nona, me apertava o braço com uma intensidade passional que eu não sabia bem de onde realmente vinha, mas que ela queria passar naquele código sutilmente carnal a indicação de que estava enebriada pelo subjetivismo lírico daquela aproximação divina. Praticamente não prestei atenção na música_ principalmente porque o violinista cabeludo com cara de hippie descolado do qual ficamos bem próximos em nossas cadeiras na primeira fila, não parava de ele mesmo por sua vez fazer seu numerozinho exibicionista, o Hendrix da patota, jogando as mechas para o alto e apertando as pálpebras com violência. Me dava nojo, e não me passou batido que Beethoven lhe interessava menos do que o que a visão privilegiada de seu assento lhe oferecia da abertura da barra curta do vestido da minha namorada_ e não me escapava ainda menos a intuição de que ela correspondia àquele joguinho pseudamente secreto do tal violinista, ao intensificar seus arroubos de herói do arco ao de vez em quando lhe lançar seus magníficos olhos azuis em cima, enquanto apertava mais meus braços (ela que desde a primeira noite já me passara aquela certeza abalizada pela negação do preconceito de que alguém com tamanho talento na cama não podia jamais se limitar ao benefício de um único homem). Por aí já se conclui que não foi de modo algum uma apreciação elevada, de modo algum um jeito eficaz de obter uma obra tão divina. A única maneira de se ouvir a Nona é sozinho em casa, embora eu a coloque mesmo no final das manhãs como trilha sonora para a espera do almoço familiar.

    Só uma coisa me pareceu meritosa nessa apresentação: como era entrada franca, uma mulher negra, vestida com muito simplicidade, entrou com uma carrada de filhos em fila antes do início do espetáculo. Tinha cerca de uns onze moleques, de todos os tamanhos e dos dois sexos. Sentaram-se cordatamente ocupando toda uma linha de fileira. O que será que vai acontecer aqui?, pareciam se perguntar. Assim que as luzes se apagaram e a orquestra começou, lembrei de virar a cabeça para trás e vi o vulto com os onze moleques saindo apressadamente rumo à porta.

    1. Fiquei triste com o que li sobre Dvorak;realmente aprecio seu estilo,apesar de concordar que as sinfinias sao um tanto parecidas umas com as outras. Sua nona a coloco entre as melhores sinfonias ja escritas.

  3. Mas tbem a 9ª sinfonia de Beethoven é um testamento daqueles, né?
    Milton, lembro duas curiosidades pop sobre ela:
    a Nona é quase um personagem à parte em “Laranja Mecânica”, de Kubrick ;
    e o guitarrista Ritchie Blackmore, quando deixou o Deep Purple para fundar o Rainbow, fez uma interessante releitura , sob o título “Difficult to Cure”.

  4. Caro Milton, devo objetar de sua conclusão, se me permitir, pelos seguintes argumentos: Destes compositores que vc mencionou, apenas Beethoven e Spohr realmente escreveram 9 sinfonias completas (e talvez Mahler, dependendo da interpretação). Schubert deixou sua 7a. sinfonia apenas em esboço melódico, tendo orquestrado uma parte muito pequena dela. Ele próprio se esqueceu desta obra e muitos musicólogos não a consideram no rol da numeração canônica. Há uns 15 anos atrás a Sony lançou uma série com ninguém menos que Giulini regendo, tendo a capa a indicação “Schubert: Symphony no.7 (8)” e também “Symphony no.8 (9)”, apenas para saberem que se tratava apenas de uma questão numérica. No caso de Bruckner, como você mesmo diz, ele escreveu 11 sinfonias, sendo as 2 primeiras rejeitadas por serem obras de juventude. Uma sinfonia em Fá maior não tem numeração e a famosa Número Zero é a “die Nullte”, a nula, que na verdade foi escrita entre a Primeira e a Segunda. Bruckner não aguentou as críticas feitas à ela e riscou na partitura autógrafa a numeração “2”, substituindo pelo 0, acrescentando que ela “não contava”. Mas ambas estão completas e foram editadas, de forma que também é só uma questão de posição dos números. O caso de Dvórak é mais esquisito: apenas suas 5 últimas sinfonias foram publicadas em vida, e as demais só vieram à tona a partir de 1917, quando o musicólogo Otakar Sourek reestabeleceu a ordem por data de composição. A sua Primeira Sinfonia, antes tida como a que hoje é a Sexta, foi recusada num concurso e Dvórak, irritado, disse que a tinha destruído (assim como sua segunda), e só foi executada em 1936, depois de encontrarem os manuscritos originais. Lembro-me até hoje de um disco LP, ainda na era monaural, em que Furtwängler executava a Sinfonia no.5, “Do Novo Mundo”. Ou seja, não poderia haver uma maldição da Nona se ele na época tinha certeza que sua série ia só até a 5a.
    No caso de Mahler, depende de considerar ou não o Das Lied von der Erde uma sinfonia, e com certeza na época em que ele estava escrevendo sua Nona, só sabia dos casos de Beethoven e Bruckner, pois a 7a.Sinfonia de Schubert não havia sido completada e as de Dvórak se encerravam na 5a.
    No caso de Spohr… bem, outro dia ouvi suas sinfonias nos. 4 e 5 e achei-as extremamente tediosas, de maneira que não me interessei mais pelas coisas dele.
    Um abraço!

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