Tradutor brasileiro de Bolaño defende que narrativa do autor é anti-heroica

Publicado no site Livraria da Folha em 2010

“Não sei qual deles é melhor: “Os Detetives Selvagens” ou “2666” “, questiona-se Eduardo Brandão, 64, tradutor brasileiro do autor chileno Roberto Bolaño (1953-2003).

O primeiro livro foi o mais difícil para traduzir. Já o segundo, tomou mais tempo, ou melhor, mais de um ano para finalizar o volume.

Lançado um ano após a morte do autor, “2666” é composto por cinco romances, interligados por duas tramas — a busca por um autor recluso e uma série de assassinatos na fronteira México-EUA. Explicado por que a obra conviveu mais de um ano com Brandão.

Em entrevista à Livraria da Folha, ele descreveu como trabalha na tradução de uma obra, comentou sobre o processo narrativo de Bolaño, “que é mais anti-herói do que qualquer outra coisa”, entre outros aspectos. Com cerca de 140 obras traduzidas para a Companhia das Letras, o carioca começou a se dedicar à tradução de obras literárias e de ciências humanas, a partir da década de 1970.

Chegou a trabalhar como repórter do “Correio da Manhã” entre 1966 e 1968. Hoje, tem apreço especialmente pelas literaturas espanhola e hispano-americana contemporâneas.

Livraria da Folha: Bolaño faz com que o leitor sinta-se, em alguns momentos, agoniado com o desaparecimento dos personagens e surpreso com o retorno deles. No “2666”, vários personagens mal se cruzam nas histórias. Enquanto traduzia, você se sentiu perdido ou surpreso com o retorno de algum deles?

Eduardo Brandão: Não, porque eu já tinha traduzido outros romances dele como “Os Detetives Selvagens” (2006) e ele usa esse mesmo recurso. De certa maneira, ele [Bolaño] reproduz muitas vezes o que acontece na vida da gente. Você cruza com uma pessoa, conversa, conhece, de repente você nunca mais a vê, e talvez ela apareça lá na frente novamente em outras circunstâncias. Desse ponto de vista, o procedimento narrativo do personagem que vai, some e nunca mais volta a aparecer, é bem calcado na nossa realidade.

Livraria da Folha: O “2666” assemelha-se a uma matriuska –a cada “abrir” de histórias, outras aparentemente menores saltam à vista. Qual história do livro mais lhe impressionou?

Brandão: O que mais me chocou foram as histórias dos crimes no México, onde ele [Bolaño] faz uma espécie de “romance-reportagem”. Achava que era invenção, depois descobri que aquilo é pura verdade e continua existindo. Saiu outro dia no jornal.

Livraria da Folha: Você levou quanto tempo para traduzir o “2666”?

Brandão: Levei ao todo mais de um ano, mas houve algumas interrupções para fazer outras coisas não tão grandes. Não lembro exatamente quando comecei. Entreguei no começo do ano.

Livraria da Folha: A próxima tradução que você fará do Bolaño será a do “O Terceiro Reich”? Quando será lançado pela Companhia?

Brandão: Já traduzi. Vai ser lançado no ano que vem, mas não tenho certeza da programação.

Livraria da Folha: Como é seu ritmo de trabalho durante uma tradução? Você dedica quantas horas por dia? Tem uma disciplina, digamos assim?

Brandão: Sim, começo por volta das 10h e acabo lá pelas 23h30. De trabalho, deve dar umas 8h, contando as interrupções.

Livraria da Folha: Você também traduziu “Amuleto” (2008) , “Noturno do Chile” (2004), “A Pista de Gelo” (2007) e “Putas Assassinas” (2008), todos do Bolaño. Em qual deles, sentiu mais dificuldade em manter o estilo do chileno no português?

Brandão: O mais difícil de todos foi “Os Detetives Selvagens”.

Livraria da Folha: Por que?

Brandão: Porque são várias narrativas, há mais de cem narradores. Isso é mais complicado, porque ele consegue dar a cada um deles uma fala própria. Você tem que tentar reproduzir o jeito daquelas pessoas falarem. O mais complicado deles foi o Amadeu, um velho que queria bancar um jovem. Ele usa umas gírias jovens, mas bem defasadas. O jeito de falar dele, empolado, informal, criou um estilo.

Livraria da Folha: Você traduziu 140 obras para a Companhia das Letras. De literatura infantojuvenil à livros de história e filosofia. Qual tradução foi a mais complicada de ser realizada e por que?

Brandão: Os infantojuvenis me distraem mais. Foi “Os Detetives Selvagens” mesmo, inclusive pelo uso dos “mexicanismos”.

Livraria da Folha: Você recorreu a dicionários?

Brandão: Eu tive uma sorte danada com esse livro, porque acabei encontrando uma pessoa que me ajudou. Mandei um e-mail para essa moça. Ela conheceu o Bolaño lá no México e era da região onde passava boa parte das histórias do livro. Aquelas gírias “barra-pesada” que tinha ali [livro] só com ela mesmo.

Livraria da Folha: Cada parte do romance pode ser lida de forma independente. Você concorda com Bolaño ao defender que a obra fosse publicada em cinco volumes?

Brandão: Um volume foi a decisão mais sensata, inclusive foi a da viúva. Ele fez aquilo com uma preocupação não literária, vamos dizer assim, preocupado com os filhos e com a mulher. Apesar de ter histórias meio soltas, nenhuma é solta ali. Elas têm um ponto de contato.

Livraria da Folha: Na trama de “2666”, Archimboldi morreu em 2003. Em parte, ele mimetiza o que foi o século 20 e o que seria o 21. Na sua opinião, qual dos dois séculos ou nenhum deles o livro representa?

Brandão: Acho que ele está mais com o pé no 21, principalmente por toda essa questão do narcotráfico. Claro que isso já existia no século 20, de certa forma ele [Bolaño] anteviu.

Livraria da Folha: Bolaño gosta de adotar em seus romances heróis fracassados pela própria realidade na qual sobrevivem ou simplesmente anular a existência deles. Você acredita que a narrativa de Bolaño faz as vezes de herói de seus personagens e até do próprio escritor?

Brandão: Herói não, propriamente, é mais anti-herói do que qualquer outra coisa. A narrativa dele surge de uma maneira tão espontânea. Existe ali uma catarse.

Livraria da Folha: As histórias não se fecham, são deixadas no ar. Se pudesse escolher uma delas para finalizar, qual seria e por que?

Brandão: Eu não concluiria, adorei o livro assim.

Livraria da Folha: Você conhecia o Bolaño antes de traduzi-lo?

Brandão: Confesso que nunca tinha ouvido falar. O primeiro que traduzi foi “Noturno do Chile”, que achei meio estranho. Depois peguei “Os Detetives Selvagens”, adorei e virei bolañista. Quando traduzi “Os Detetives Selvagens”, não existia ainda a “bolañomania”. Agora está começando a sair um monte de coisa [refere-se às cartas e manuscritos que serão publicados], embora ele fosse reservado sobre sua vida.

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10 comments / Add your comment below

  1. 2666 é imensamente superior a qualquer outro título de Bolaño. Não parece ser este seu livro inacabado, tamanha competência dele em urdir algo tão complexo, cheio de matizes, cheio de meios tons, e ao mesmo tempo tão legível e divertido. Os Detetives Selvagens, como já disse muito por aqui, me causou um tédio sem igual, aquelas narrativas esparsas, que tinham que ser montadas na cabeça do leitor para equilibrarem-se numa linha coerente, nunca me convenceram. Achei-o inclusive mal escrito, com poucas passagens brilhantes, algo que os atuais escritores norte-americanos de policial noir fazem com maior desenvoltura e talento.

    Mas 2666 não, meu irmão. 2666 é leitura de primeira, que ainda está na minha mente e que me faz pensar nele todos os dias. Está além do Bolaño. Se um dia, num post cedido pelo Milton alhures, disse que Bolaño não tinha tempo para mistificar sua prosa, tornar seu livro esotérico, multi-interpretativo, com várias camadas, após 2666 poderia eu ter queimado minha lingua. Tem material ali que vai colocar cineastas e intelectuais de todas as vertentes em pé por décadas, tornar-se ganha pão de um sem número de pessoas.

    Ah. Que bom que vc tá vivo, Milton. Pensei em vir aqui com alguma brincadeirazinha, mas tem alguns níveis de tristeza que não se brinca.

    Uma coisa: pegue seu exemplar de Estrela Distante e me diga quem o traduziu? Na contra capa está o nome do Brandão, mas na página dois consta outro tradutor.

    Melhoras.

  2. Tô lendo o volumão em parceria, um tanto devagar; afinal, tenho um porrilhão doutras coisas pra fazer, e o porrilhão de palavras do Bolaño andam me deixando meio assim, entediado. O problema é que passou a novidade, e por mais que me digam que ESTE É O LIVRO, reconheço nele diferenças, mas não um grau desuperioridade com relação ao livro dos Detetives Selvagens, que possui com 2666 muitos pontos de contato, não sendo o último um depuramento nem de estilo nem de objetivos, mas uma extensão para algumas facetas negligenciadas no volume anterior, agregadas a aspectos doutros livros dele. A primeira parte possui um interesse que vai decaindo, a segunda, mais breve, parece que não se osgotou plenamente; a parte dos crimes, onde estou agora, vai e volta em interesse, embora eu possa dizer que muitas observações são interessantes, inteligentes, instigantes, mas não dá pra detalhar agora assim, de memória, só mencionar algum prazer em acompanhar os descaminhos do investigador e seu caso com a gerente do hospício (é do hospício?). Algumas passagens são divertidas, outras nem tanto. Ando meio desligado.

  3. Volto a citar alguns erros crasos da revisão apressada de 2666. Na página 800 (da cia das letras), último parágrafo, consta que Archimbaldo e a baronesa se viram pela última vez, o primeiro na meia idade, a última entrando na velhice. na página 819, primeiro parágrafo, já diz que os dois se viram e se tornaram parceiros até na morte da baronesa. Na parte dos crimes, é narrado que uma das vítimas estava com os mamilos mutilados, um deles ainda grudados por um pedaço de CARTILAGEM. Cartilagem no seio, e que sirva de apêndice para o mamilo? Outra coisa, as idades de Archimboldo e da sua irmã não batem. Começa-se pelo irmão sendo bem mais velho que a menina, uma criança. Na última parte, estão os dois praticamente da mesma idade, já nas portas da morte.

    1. Esses erros são de revisão do Bolaño, não da Companhia das Letras. 1) Vai ver que ele achou, pela questão tátil, que tem cartilagem no bico do seio… 2) Com o tamanho do volume e o estoque de informações associados à saúde débil, alguns aspectos de coesão e coerência se perderam, o que não danifica o volume; são apenas umas poucas arestas não aparadas; 3) Talvez os editores tenham percebido as falhas, mas não as corrigiram em respeito ao falecido, inclsuive aos seus erros.

      1. No pósfácil o editor e amigo de Bolaño diz que foi apurado a revisão e correção da obra, para que esta tivesse a mínia coerência exigida. Esses deslizes, pois, não são em respeito ao autor, mas pura distração.Claro que esses pequenos erros não diminuem o romance (há um outro: antes da fama, o que presumo ser por volta dos 50 anos de Archimboldo, ele descobre a internet, pesquisando sobre um militar crucificado no campo de batalha da segunda guerra; esse pequeno trecho parece mesmo suspenso e sem relação com o enredo, como se fosse para ser uma nota de produção e não parte publicável; pois bem, cronologicamente, visto que no ano 2003, quando se encerra a história, archimboldo estivesse com mais de 70 anos, não bate sua descoberta do mundo virtual com a própria existência deste, como se ele o tivesse contactado nos anos 80, qaundo a net era ainda um protótipo militar e empresarial), mas serve como réplica por uma parte em que Bolaño compila uma série muito divertida de erros de autores famosos, como esse, que vai reproduzido de imprecisa memória: ia andando com as mãos cruzadas nas costas, lendo o livro de seu amigo.

  4. Confesso que ainda não terminei de ler o 2666, na verdade, nem comprei a edição da Companhia das Letras, e sim a edição eletrônica do original. Parei de ler exatamente na parte do relato do Archimboldo. Pretendo retomá-lo ainda hoje. E não posso negar que foi uma experência impressionamente, o grande livro da literatura latino-americana que faltava. Mesmo com suas incoerências, citadas pelo colega acima, é livro para se ler sem piscar, tamanha a beleza e qualidade do texto.
    Gostei muito dos Detetives Selvagens exatamente por causas destes relatos esparsos, sempre enfocados nos dois principais personagens, que, curiosamente, nunca tem voz ativa. Creio que seja este o grande barato do livro. Também ainda não o terminei de ler, faltam pouco mais de 40 páginas, nem isso.

  5. Sabe que estou no segundo Bolaño… comecei com Noturno do Chile e recém acabei Putas Assassinas. O noturno é mesmo noturno, mas me agradou bastante pelo estilo do texto. Já o Putas, soa-me instável. Há contos agudos como espinho, mas outros sinceramente não me tocam em absoluto. Não li 2666 por uma razão talvez pueril… tenho muita bronca com publicações póstumas. Sei que soa pretencioso, mas fico pensando em como me sentiria se alguém (caso meus escritos interessassem assim) fosse escarafunchar minhas gavetas sem que que tivesse qualquer possibilidade de rever a versão final… sei não…
    mas antes de seguir em outros do Bolaño, estou mais inclinada a Javier Marías. Beijo!!!

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