Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXIV – Anna Kariênina, de Liev Tolstói

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KariêninaEm meio a leitura fiz a seguinte anotação:

Li rapidamente um terço do livro de 814 páginas. Incrível como minha lembrança do romance era distorcida. É ainda melhor do que eu lembrava. Tolstói não é aquele estilista perfeito — usa estranhas pontuações e repete palavras tal como o tradutor Rubens Figueiredo (excelente) referiu no prefácio. Por exemplo, nas páginas 241-242 há um parágrafo de quase uma página onde a palavra “camponeses” aparece 15 vezes. Sem problemas, o homem sabe contar uma história como ninguém. Tais repetições não revelam descaso com o texto. Tolstói era um escritor cuidadoso, revisava muitas vezes seus textos que depois eram passados a limpo à noite por sua mulher. Ele usa as repetições em seu hábil discurso livre indireto, inserindo-se nas idiossincrasias e vícios de linguagem dos personagens.

Outra coisa é que as descrições nunca são contadas sem o filtro e a emoção de um personagem. Não são descrições mortas, sem ação, Tolstói integra tudo, fica lindo. Vemos a propriedade de Liêvin enquanto o mesmo sofre e trabalha nela. Nada para, tudo narra.

Esta tremenda obra de arte muito bem planejada é cheia de pequenos detalhes significativos. Há dois personagens principais, Liêvin e Anna. Em torno deles gira toda a ação, com apenas dois ou três pontos de contato mais claros, Kitty, Oblónski e sua mulher Dolly. Duas perspectivas da mesmíssima Rússia. Um painel? Sim, mas um painel de câmara, sem e com maior grandiosidade do que em Guerra e Paz.

Tal como na primeira leitura, que fiz aos 17 anos, o bovarismo de Anna me parece mais antipático do que o da heroína de Flaubert, mas sua impulsiva irreflexão é um dos pontos altos do romance. Uma coisa de que não lembrava era da ironia de frases que se contradizem em grande parte do romance. Às vezes umas contra as outras, às vezes internamente.

(Paixão de outros: estou num banco para falar com uma gélida gerente de contas. Ela se levanta para ver se um cartão está na agência. Quando volta, interrompe arregalada o ato de sentar. Fica suspensa olhando para o livro de Tolstói e me diz lenta e saborosamente: Anna Kariênina… eu simplesmente amo esse livro! Senta-se e começa a falar comigo com se fôssemos velhos amigos).

.oOo.

Bem, alguns dias após a leitura, procurando olhar o livro com impossível distância — durante um mês travei de grande intimidade com todos aqueles russos e não dá para negar que me envolvi com eles… — , dá para notar que a obra-prima de Tolstói funciona como um Gioco delle coppie (Jogo das Duplas). A narrativa vai todo o tempo em dois focos: de Anna-Vronski para Liévin-Kitty e de volta para Liévin para Anna. Mas há também Moscou e São Petersburgo (Moscou parece São Paulo; Petersburgo, Rio de Janeiro…), Vronski e Kariênin, os dois filhos de Anna, o campo e cidade, Aglaia e a modenidade. E podemos formar outras duplas contrastantes entre Liévin e seus irmãos, Anna e Kitty, etc.

Além da boa e famosa trama, da extrema habilidade de Tolstói como narrador — que se manifesta de forma espetacular quando das crises de Anna e na cena do parto de Kitty –, chama atenção o caminhão de realismo despejado pelo autor sobre seus personagens. Anna está a léguas de poder aspirar a condição de boa pessoa do século XIX ou de qualquer tempo. Na época, ser virtuoso era o que mais contava e ela, passando por cima de Kitty, largando o marido por pura concupiscência (OK, bom motivo), renegando a filha ainda bebê e sendo suscetível a atitudes muito, mas muito impulsivas, está longe da perfeição e muito próxima do que vemos por aí. Tolstói não faz o gesto de justificá-la assim ou assado. O leitor da época devia ter ficado bastante desconfiado… Vronski, o amante, é bem melhor, mas sua entrada no romance é a de um militar bonito (o autor gosta de citar seus dentes perfeitos), vaidoso e bastante chato. Kariênin, o marido traído, é um carola que obedece aos mandamentos divinos e consegue errar em tudo, principalmente na avaliação de si mesmo. Melhor é Liévin, o alter ego das maluquices idealistas de Tolstói que tem consciência de que todos o acham meio louco. Talvez, à exceção de Anna, que vive de amor e de impulsos, seja muita gente bem intencionada vivendo junto.

Oblónski, irmão de Anna, é o brilhante personagem que liga os dois lados do romance, o de Anna e o de Liévin. É um tipo bem Turguêniev: é simpático, tem impecável trato social, trai a esposa sem deixar margem à dúvidas e vive muito feliz, endividado e endividando-se. Mas chega de personagens.

O livro de Tolstói é de açambarcante virtuosismo. As descrições estão totalmente permeadas de humanidade, a trama e os mais mínimos conflitos são construídos com cuidado. As cenas de amor pelo povo e pelo campo, protagonizadas por Liévin, poderiam ser um porre na mão de um escritor médio. Na mão de Tolstói, deixam a gente repleto de literatura.

Não me arrependi de modo nenhum de relê-lo. Foi um bom investimento em 814 páginas perfeitas.

Ah, a tradução do russo de Rubens Figueiredo acompanha pari passu a qualidade de Tolstói.

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13 comments / Add your comment below

  1. Comprei num sebo aquela edição em dois volumes da Abril de Anna Karênina. Os primeiros capítulos são agradabilíssimos, mais do que eu esperava. Ainda não terminei de ler por falta de tempo,mas pretendo fazê-lo.

    1. Bárbara, não sei se é possível, mas tente conseguir a edição acima da Companhia. É MUITO melhor. Digo com conhecimento, pois li tb esta que estás lendo.

  2. O meu entusiasmo também aferreceu depois de algumas centenas de páginas. Atribuo isso à história em si, que começa bastante ligeira e depois sente a necessidade de se aprofundar nas crises de Liéven, nas dicotomias, e nas sutilezas de alguns comportamentos.

    Se tivesse lido recentemente Bovary, teria escrito (ou ainda escreverei) um texto sobre o adultério das duas personagens. Ou quem sabe três, se colocasse também Primo Basílio. Para o leitor de hoje, é claro que nenhuma das três histórias acabará bem, pelas próprias opções oferecidas na época para a mulher que se interessa por outro homem. Anna, dentre as três, é que a menos parece tomar consciência disso e toma tudo de maneira muito extrema. Vejo nas atitudes dela e de Vronski um desejo de manter aquela virtude tão admirada na época – é a impossibilidade de fazer tantos sacrifícios que os desgasta ou eles eram excelentes amantes e péssimos como casal? Bovary e Luísa pelo menos se conscientizam de que o que as moveu foi desejo de aventura.

    Oblónski é aquele coadjuvante que merecia o Oscar. Anna é exagerada, Vrónski é vaidoso, Liéven é tão correto que chega a ser um pé no saco, Kitty é muito boazinha. Oblónski é o mais divertido e humano. No final, quando Liéven chega à conclusão de seus problemas deísticos-existenciais, lembrei muito do Charlles, enquanto tentava manter meus olhos abertos.

      1. Lembrei. Pelo sentimento religioso, pela exaltação e idealismo todo. Combina com a imagem que eu faço de você (será que me equivoco?). Li achando que você deve ter gostado desse final. Da minha parte achei enfadonho, porque já tinha enjoado das dúvidas dele e me ponho meio em guarda quando começam a colocar o cristinismo no meio.

        Fui apaixonada por Liévin quase o livro inteiro. Até que ele começou a se mostrar ciumento. Aí peguei antipatia e passei a vê-lo quase como um ex.

        1. Apesar do pouco sex appeal, devo confessar que me identifico com esses personagens de Tolstói. Mas em Guerra e Paz esses são mais marcantes, talvez por ficarmos ainda mais tempo ao lado deles, como Pierre, alter-ego do autor. Isso nunca me enfastiou em Tolstói, e suponho que aí haja um pouco do preconceito enviesado dos que apontam o moralismo cristão do russo. Pode-se perceber perfeitamente um viés demonìaco em Tolstói, mais potente que sua equívoca “bondade”. Se eu ainda estivesse nos bancos da faculdade iria desenvolver minha tese, adquirida depois da releitura apaixonada de Guerra e Paz, de que Tolstói é tão perigosamente imoral e revolucionário quanto Dostoiévski. Esbocei isso em duas ou três resenhas que fiz em meu blog sobre Guerra e Paz.

          Milton, falta que você leia a maravilhosa edição da Companhia de Guerra e Paz.

          1. Outra coisa, Tolstói que foi excomungado, não Dostoievski. E o cristianismo de Dostoiévski era muito mais leviano e ingênuo que o de Tolstói; o primeiro não convence em sua visão metafísica, já Tolstói atingiu um limite da coerência entre sua atitude como homem e escritor que o levou a renegar todas as suas grandes obras.

            Sinceramente, Caminhante, acho que sua exigência extremada tem mais a ver com a intimidade mimada que nos oferece a grande obra do que propriamente insatisfação. Tolstói não atrofia a minha crítica_ em Guerra e Paz, as cenas de cavalarias se enfileirando para o combate eram lidas torcendo para que terminassem logo_, mas é uma das minhas alegrias infinitas.

          2. Tô a fim de uns livros menores. Anna K. + Middlemarch me mataram. Quase só leio em ônibus. Preciso largar essa vida de halterolivrista. Aguarde 6 meses…

  3. Concordo, Charlles. É um livro tão grande que uma coisa aqui e ali se torna passível de crítica e é mais fácil falar delas. Como falar desse livro sem juntar um monte de adjetivos e pontos de exclamação? Por isso acabei nem tentando.

  4. Em Os Últimos Dias ele responde ao Sínodo da igreja, que lhe havia excomungado numa determinação de 20-22 de fevereiro de 1901.

    Ressurreição, também pela Companhia _ e beeem mais fino_ me foi uma grata surpresa.

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