A cena do jantar de Fanny e Alexander

Por Thomas Vinterberg, na Criterion

Thomas Vinterberg não se apega mais aos princípios ascéticos do Dogma 95, o movimento cinematográfico que fundou em 1995 com o diretor dinamarquês Lars von Trier. Mas há algo que permaneceu constante ao longo de sua carreira: o foco na construção de personagens e na dinâmica social. Desde que foi aclamado pela primeira vez em 1998 com seu drama sombrio e cômico Festa de Família, o qual ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Cinema de Cannes, ele mostrou grande variação estilística em filmes como o thriller romântico It’s All About Love, o drama A Caça e a adaptação de Thomas Hardy, Longe deste Insensato Mundo, além dos esplêndidos A Comunidade e Submarino. Seu filme mais recente, Outra Rodada (Druk), é um estudo que acompanha um grupo de professores enquanto eles testam a teoria de que um certo nível de álcool no sangue pode aliviá-los do tédio melancólico da vida cotidiana. É filme que está sendo muito bem recebido por público e crítica e este mês está concorrendo a dois Oscars: melhor diretor e melhor longa internacional.

Antes de falar com Vinterberg pelo Zoom no início deste mês, pedi a ele que falasse sobre uma cena favorita de um filme de nossa coleção. Ele escolheu com entusiasmo o jantar de Natal do épico semiautobiográfico Fanny e Alexander (1982) de Ingmar Bergman, cena que há muito tem sido um guia para ele e que foi diretamente referenciado em Festa de Família. Neste artigo, editado em conjunto a partir de nossa conversa, ele fala sobre como a abordagem artística do grande autor sueco e a sensibilidade escandinava o influenciaram. —Hillary Weston

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Eu comecei a escola de cinema no início dos meus vinte anos, e nosso professor de história do cinema disse que tínhamos que assistir a todos os filmes de Ingmar Bergman. Na época, eu era um jovem inquieto e no começo não os entendia. O professor disse que estava tudo bem se dormíssemos durante a exibição. Apenas tínhamos que ser capazes de dizer que os tínhamos visto. Mas então, lentamente, ao longo das aulas, seu trabalho me afetou — e nunca mais deixei de ver seus filmes.

Quando assisti Fanny e Alexander pela primeira vez, fiquei apaixonado pelo filme. Era uma sensação rara, apenas possível de se ter quando assistimos a certos grandes filmes. Era sobre um garotinho de cabelos escuros, sua bela família e sua experiência dentro da riqueza e da brutalidade da vida na burguesia de Estocolmo. Era também sobre ele enfrentar a perda do pai, que morre na primeira metade do filme e a chegada de um padrasto, que usa sua fé em Deus para oprimir a família. É a primeira metade do filme que mais admiro, especialmente a festa de Natal, que estabeleceu o padrão para o que estou fazendo como cineasta.

Algo que aprendemos na escola foi a ideia de “história natural”. Por exemplo, a história natural de ir ao cinema envolve ir à bilheteria e comprar um ingresso, ir ao banheiro, comprar um doce ou pipoca, mostrar seu ingresso e encontrar seu assento. Essa é uma história inteira por si só. Não parece muito interessante quando você fala sobre isso assim, mas você pode realmente aprender muito sobre as pessoas em meio a essa cadeia de eventos. Elas lavam as mãos? Elas reclamam do preço do doce? Elas esperam por alguém antes de se sentarem? Há muitas coisas que você pode revelar sobre os personagens desta forma, e em Festa de Família eu mantive isso muito estritamente. Cada vez que eu ficava preso na minha escrita, simplesmente voltava à história natural — e é isso que Bergman faz. Você observa a progressão natural de uma festa de Natal, passo a passo.

Tive a sorte de ter uma conversa sobre Fanny e Alexander com Bergman depois de fazer Festa de Família. Foi apenas um telefonema, mas foi longo. Ele chamou meu filme de obra-prima e fiquei muito orgulhoso. Disse a ele que tinha que me desculpar por roubar uma de suas cenas, porque há um momento que é quase uma cópia exata do baile pela casa em Fanny e Alexander. Ele disse: “Oh, isso não importa, eu roubei a cena de O Leopardo, de Visconti!”

A cena da ceia de Natal no filme de Bergman é um estudo perfeito dos personagens. Ele captura o que as pessoas mostram ao mundo, como desejam aparecer quando estão ao redor de uma mesa e como revelam o que está escondido quando estão em seus próprios quartos. Sei disso por minha própria vida, porque cresci em uma comunidade hippie. Todas as noites eu ia a uma enorme mesa de jantar com vinte pessoas, e todos eles estavam se apresentando como queriam ser. Ao mesmo tempo, eu sabia exatamente o que estava acontecendo em suas vidas, nos cômodos ao redor da casa. Foi nessa mesa que vi pessoas que seriam derrubadas se não fossem socialmente fortes, que vi gente ser humilhada, mas também foi onde senti uma sensação de união que proporcionava muita euforia. Portanto, a mesa de jantar sempre foi o que me definiu e Bergman refletiu minha experiência de volta para mim.

A maioria dos cinegrafistas que conheço são obcecados por Sven Nykvist, porque ele tem essa maneira linda e suave de mostrar algo que é tão escandinavo, algo que você simplesmente não consegue descrever. Fanny e Alexander é como uma peça de ouro em meio a todos os filmes que vi. Tem muito calor, mas quando está escuro é muito escuro, semelhante a O Poderoso Chefão. Isso me apresentou a opções de cores realmente densas e corajosas. Isso é típico da Escandinávia, onde você tem essas horas azuis muito longas e depois vem a neve e você se esconde do frio refugiando-se em casas fechadas. A escuridão do filme é amplificada pela luz do início e pela vivacidade dos personagens.

Bergman sempre discordou veementemente de movimentar muito a câmera. Lars von Trier e eu o convidamos para fazer um filme do Dogma, mas ele achou o Dogma a coisa mais boba de que já tinha ouvido falar. Os filmes do Dogma levam a câmera onde os atores estão, Bergman coloca os atores na frente de onde ele gosta que a câmera esteja. Ele foi educado no teatro, então sabia como fazer algo como um corte no palco. Quando os personagens de repente ficam em silêncio ou se sentam, é como um corte; se todos no palco olham para uma pessoa, é como um close-up. Ele também usou esses artifícios em seus enquadramentos de câmera.

Bergman tem sido um modelo exemplar de várias maneiras para mim. Admiro sua coragem, sua severidade e crença em sua própria história. Eu o admiro por permanecer fiel ao que estava fazendo. Ele foi tentado por todos os tipos de oportunidades em todo o mundo, mas ele permaneceu na Suécia e fez seu trabalho em sua pequena ilha. Uma vez, ele descobriu que um filme seu estava fazendo sucesso em Cannes ao ler um jornal enquanto estava no banheiro. Acho que ele é um modelo de como ser cineasta — você tem que se ater ao seu ofício e não se deixar levar por tudo ao seu redor.

Quando me casei, minha esposa ainda não tinha visto Fanny e Alexander, então ela assistiu a primeira parte no começo de uma noite, e nós assistimos ao resto juntos na manhã seguinte. Fazia anos que eu não o via e ela chorou na segunda parte. Naquele momento, recebi um telefonema de alguém do Guardian, que começou a me entrevistar sobre Bergman, e pensei, que interessante, minha esposa está assistindo a um filme dele agora. Conversamos bastante e de repente eu perguntei: “Por que você me ligou para falar sobre Bergman?” E o jornalista respondeu: “Oh, você não sabia? Ele faleceu esta manhã.” Então, parece que estávamos assistindo Fanny e Alexander enquanto Bergman estava morrendo.

Não assisto Fanny com tanta frequência, mas lembro sempre de sua sinceridade. É tão rico e cheio de detalhes, muito irrestrito e ainda assim muito preciso. Essa combinação só pode vir de um mestre.

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Thomas Vinterberg é o diretor de Festa de Família (1998), Submarino (2010), A Caça (2012), Longe deste insensato mundo (2015), A Comunidade (2016) e Outra Rodada (2020), que é indicado a dois Oscars.

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