Catorze Camelos para o Ceará, de Delmo Moreira

Este é um livro surpreendente. Um daqueles que merecem a expressão “puro suco de Brasil”. Você sabia que, na metade do século XIX, mais exatamente por volta de 1859, os brasileiros estavam indignados com o que os europeus diziam ser nosso país? Pois na Europa havia livros que falavam de animais fabulosos – muitos deles semi-humanos –, de canibais insaciáveis e de povos indígenas de 3m de altura caminhando por nossas ruas. Pois D. Pedro II e seu governo promoveram a primeira expedição científica brasileira, que saiu do Rio de Janeiro para o Nordeste e Norte do país, capitaneada pelo engenheiro e mineralogista barão de Capanema, o botânico Freire Alemão e o poeta e etnólogo Gonçalves Dias, o autor de Canção do Exílio e do I-Juca-Pirama.

A exploração faria um levantamento do solo, flora e fauna da região e, como o problema da seca vem de longe, o monarca adquiriu 14 camelos argelinos, acompanhados de quatro tratadores africanos, para que a expedição se movimentasse pelo sertão. É sabido que, sem água, os camelos vão mais longe do que os jegues. Porém, como o Brasil já era aquilo que conhecemos, os camelos tornaram-se motivo de piadas. Os bichos trabalharam e se reproduziram do mesmo modo que fizeram nos EUA e principalmente na Austrália. E foram úteis, mas a oposição e sua imprensa sepultaram a ideia, pondo a iniciativa no ridículo.

E sabem que a má fama dos camelos argelinos chegou a nossos dias? A Imperatriz Leopoldinense venceu o Carnaval carioca de 1995 com o enredo Mais vale um jegue que me carregue, que um camelo que me derrube no Ceará. A Escola contava a história da expedição e boa parte da culpa do “malogro” coube aos pobres camelos. Não é verdade.

Num texto fluido, realmente bom de ler, o jornalista Delmo Moreira recriou a aventura da expedição, uma tragicomédia que misturou absoluto pioneirismo, vocação científica, muita burocracia, casos amorosos e alguma cachaça. Em meio a desvios de rota, corte de verbas, férias prolongadas e conflitos com os locais, a história da expedição é também a de um país que começava a se descobrir. Como os envolvidos eram cientistas, a aventura está muito bem documentada e Moreira levou 5 anos lendo e alinhavando tudo num esplêndido texto de mais ou menos 250 páginas.

“Não vos parece, senhores, que já era tempo de entrarmos, sem auxílio estranho, no exame e investigação desse solo virgem?”, propôs o visconde de Sapucaí. “De desmentirmos esses viajantes de má-fé ou levianos que nos têm ludibriado e caluniado?” Ex-preceptor de Pedro II, Sapucaí presidia o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Na sessão solene de maio de 1856, os sócios da instituição denunciavam, em discursos exaltados, exploradores estrangeiros que haviam publicado na Europa uma série de informações falsas e fantasiosas sobre o Brasil. Defendiam que o país tinha o dever de patrocinar uma missão exploratória e propunham a formação de um grupo de cientistas para estudar, sem controle estrangeiro, como nunca havia sido feito antes, o imenso e desconhecido território nacional. Até então, naturalistas locais serviam como meros colaboradores de expedições estrangeiras, sem autonomia sequer para escolher roteiros. Agora eles queriam “mostrar ao mundo que não nos faltam talentos e habilitações” para as pesquisas científicas. O Império só teria a ganhar: “Tudo seria do mais alto interesse: conhecimentos da topografia, dos cursos dos rios, dos minerais, das plantas e animais, dos costumes, da língua e das tradições dos autóctones, cuja catequese seria também mais facilmente compreendida”, previu o visconde.

Mas temos a dor e o prazer de estarmos no Brasil. Os conservadores fizeram pouco. Eles queriam que a expedição descobrisse riquezas… Ouro, por exemplo, não foi encontrado. Os liberais defendiam a iniciativa, mas como ela só trazia plantinhas, insetinhos e bichinhos grandes e pequenos, ficava difícil de defendê-la. A história dos camelos e da exploração é fascinante, às vezes hilariante, demonstrando que os conflitos com a ciência têm mais de um século em nosso país. Capanema e de Gonçalves Dias — esplêndidos personagens – que o digam.

Os camelos? Ora, morreram em fazendas e em circos.

Os resultados? Ora, por puro desinteresse, o fartíssimo material jamais foi catalogado. Agora, boa parte se perdeu porque ele estava naquele enorme museu de história natural e antropologia inaugurado em 1818 e que ficava no interior do Parque da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro.

Sim, no Museu Nacional, aquele mesmo que queimou em setembro de 2018.

Delmo Moreira

 

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