Meu Sonho de Cinema — Um velho Bergman que nunca deixei de amar

Do blog do Merten por Luiz Carlos Merten

Em 1966, em Porto Alegre, comecei a escrever sobre cinema – há 56 anos! Muitos de vocês, a maioria?, nem eram nascidos. Em 1974, já estava na Folha da Manhã há bem uns quatro anos. Foi quando estreou Gritos e Sussurros. Havia visto a obra-prima de Ingmar Bergman numa viagem que Doris, minha ex, e eu fizemos a Buenos Aires. O filme causou-me verdadeira comoção. Entrou na mira da censura do regime militar, e quase foi proibido por causa de duas ou três cenas, incluindo aquela em que a personagem de Ingrid Thulin faz um corte na própria vagina com um caco de vidro. Na estreia, veio-me um desejo. Criei um ABC de Bergman para falar, não apenas de Gritos e Sussurros, mas para contextualizar o filme na obra do grande autor sueco. O texto foi publicado em dezembro de 1974 na Folha da Manhã. Integra a seleção de textos que escrevi na imprensa gaúcha e foram reunidos pela Prefeitura de Porto Alegre na Coleção Escritos de Cinema. O volume chama-se Um Sonho de Cinema e, no twitter, vocês vão ver a capa. Rocco e Seus Irmãos! Nos créditos do livro consta meu nome junto ao de Clarice da Silva Alves, na rubrica Seleção e Organização dos Textos. Até onde me lembro, dei carta branca para que ela, e talvez o Marcus Mello, fizessem o que bem entendessem. Fizeram um lindo trabalho. O livro está aqui na minha estante. Vilmar Ledesma me estimulou a republicar textos que são viscerais da minha juventudse. Quem eu era, e quem sou. Começo com esse Bergman. Ao mestre, todo meu carinho. Se interessarem a vocês, pretendo prosseguir com os Escritos, uma vez por semana, que tal?

ARTE-BELEZA-CRIAÇÃO, O ABC DE GRITOS E SUSSURROS

A de ANDERSSON, Harriet. É a atriz que faz Agnes, a personagem cujo sofrimento está no centro do filme. Quando Gritos e Sussurros começa, Agnes está à morte. Suas duas irmãs vieram de longe para assisti-la e se revezam com a empregada, à beira do leito. Era intenção de Bergman evitar todo sensacionalismo na descrição deste leito de morte, o que não o impede de dar uma dimensão patética à figura de Agnes. O rosto crispado de dor, a expressão assustada de quem expõe seu sofrimento ante os olhos dos outros e ao mesmo tempo, certa satisfação de menina rejeitada, que cresceu sozinha e finalmente se descobre no centro de todas as atenções, tudo isso encontramos na personagem de Agnes. Ao criá-la, Harriet Anderson se revela uma extraordinária atriz. Tão perfeita, que corta a respiração do público na cena (dolorosa) da sua “morte”.

B de BERGMAN, Ingmar. Cineasta sueco de 56 anos, nascido em Upsala. Uma carreira polêmica: Bergman foi endeusado pela crítica no Festival de Cannes de 1956, enterrado pela mesma crítica no início dos anos 60. Uma década mais tarde, foi aplaudido de pé pelo público e pelos críticos presentes ao Festival de Cannes de 1973, onde Gritos e Sussurros, exibido fora de concurso, foi considerado a obra-prima do Festival. A abundância de filmes de Bergman (34 em menos de 30 anos de carreira), não é um sinal de facilidade mas, pelo contrário, o resultado de um paciente trabalho de construção intelectual. Cineasta do sexo e também da alma, ele foi muitas vezes acusado de colocar seus temas acima do tempo, de dar-lhes uma dimensão subjetiva e até metafísica. É que Bergman reflexiona os grandes temas da humanidade: a angústia metafísica do homem frente aos mistérios da vida e da morte, do amor e do sexo, da alegria e do sofrimento.

C de CENSURA. Desta vez , para louvar. A mesma censura que mantém afastadas das nossas telas algumas das obras primas mais importantes produzidas pelo cinema mundial nos últimos anos, desta vez houve por bem permitir que Gritos e Sussurros não apenas fosse apresentado, como também fosse apresentado inteiro (que milagre!), à admiração do público. Este respeito (raro!) pela figura de um artista nós gostaríamos de ver aplicado não somente a Bergman, mas também a Stanley (A Laranja Mecânica) Kubrick, Bernardo (Último Tango em Paris) Bertolucci e muitos outros cujas obras estão proibidas no Brasil.

D de DEUS. Desde o seu primeiro trabalho cinematográfico importante, o roteiro de A Tortura do Desejo, de Alf Sjoberg, e depois, através de seus 34 filmes, Bergman, filho de pastor protestante, raramente deixou de perguntar: Deus existe? Esta interrogação apareceu, quase sempre sem resposta, nas entrelinhas de histórias sobre amores juvenis, casais em crise, doença, velhice, solidão e morte. Entre o silêncio de Deus e os tormentos do sexo, Bergman construiu uma obra polêmica, onde só de vez em quando, na fonte que brotava ao final de A Fonte da Donzela, pode-se encontrar uma resposta divina para os anseios espirituais dos seus personagens.

Gritos e Sussurros prossegue com interrogação, mas mostra que Bergman talvez não esteja mais tão angustiado ante a perspectiva de não encontrar uma resposta. A comovida oração que o pastor recita, encomendando a alma de Agnes a Deus é o momento culminante de uma enquete desenvolvida pelo cineasta ao longo de seus 34 filmes. Mas embora sem uma resposta divina, Gritos e Sussurros revela um Bergman mais sereno, menos desesperançado: a esperança, aqui, nasce não de um sinal de Deus mas da solidariedade entre os humanos. Esta esperança nós encontramos no momento em que Karen (Ingrid Thulin) e Maria (Liv Ullman) rompem com seu silêncio e se tocam, se falam, ou então na outra cena, sublime, em que Ana (Kari Sylwan) toma sem seus braços a moribunda Agnes para que ela possa descansar em paz.

E de ESTILO, E de EVOLUÇÃO. Ao longo de sua carreira, é sensível a evolução de Bergman, o seu progressivo domínio sobre a linguagem cinematográfica. Na fase mais recente, a construção dos filmes torna-se mais harmoniosa: há um dosado controle do simbolismo e um abandono consciente da iluminação expressionista que caracteriza Noites de Circo, O Sétimo Selo, O Silêncio ou A Hora do Lobo. Para resumir tudo em poucas palavras: a composição da imagem em densidade ou profundidade. É a fase da maestria de Bergman, a fase de A Paixão de Ana, de A Hora do Amor e, sobretudo, deste esplêndido Gritos e Sussurros.

F de FOME. O sexo e a fome, já se sabe, são dois problemas fundamentais do homem. Na Suécia, país onde o povo não se martiriza pela fome, o sexo terminou assumindo uma importância crucial. Sem problemas materiais a infelicitá-los, os suecos acharam no sexo a sua fonte de martírio. O cinema e o teatro da Suécia, as peças de Strindberg, os filmes de Bergman, Alf Sjoberg e Mai Zetterling mostram isso.

O tema da fome é essencial em Gritos e Sussurros, mas é uma fome desesperada de amor, de carinho e comunicação. Ela aparece não apenas na impotência de Agnes frente à doença que devora suas entranhas, mas também na dureza das linhas do rosto de Karen, na futilidade de Maria e na própria força física que emana da figura de Ana, levando-a a ninar o corpo de Agnes, numa inesquecível recriação da Pietá.

G de GRITOS. Há no filme os gritos e os sussurros. Uns e outros calam fundo no público. Se o grito é a expressão da cólera contra a própria infelicidade, o sussurro é como um gemido arrancado ao fundo da alma. O grito fere o ar como uma punhalada, uma chicotada e uma agressão, o sussurro dilacera as entranhas. Bergman mostra.

H de HUMILHAÇÃO. Bergman sempre foi sensível ao tema da humilhação. Todo mundo ainda se lembra, por certo, da cena inicial de Noites de Circo, quando o palhaço era humilhado publicamente, ao carregar o corpo da mulher que tentara o suicídio, por entre os soldados com quem ela o enganara. O próprio sistema burocrático, Bergman assinalava recentemente, é feito de humilhações que alguns homens têm de sofrer nas mãos de outros.

A humilhação, como tema bergmaniano, não poderia estar ausente das imagens de Gritos e Sussurros. Aparece na cena em que Karen corta a vagina com um caco de vidro, para ilustrar, mais do que o desprezo e o ódio pelo marido, o desprezo e o ódio por si mesma. Aparece na cena em que o médico recusa o oferecimento de Maria. Aparece, em alguns momentos, na passividade com que Agnes aceita o seu destino cruel, a dor e o sofrimento.

I de INFÂNCIA. Em muitos filmes de Bergman, respiramos a nostalgia da infância. Um dos grandes momentos de Morangos Silvestres e de toda a carreira do cineasta foi, sem dúvida, aquele que mostrava o velho professor Isaak Borg abandonado no jardim de infância, chamando o seu amor de juventude (Sara! Sara!). Em Gritos e Sussurro, Agnes evoca suas tristes memórias de infância, quando a sua mãe (a deusa Liv Ullman, morena) passeava no belo jardim da casa, quase indiferente aos pedidos de atenção da filha. Num outro extremo, Ana sofre a perda da filha. É por isto, porque uma busca a mãe que não teve e outra a filha que perdeu, que Agnes e Ana estabelecem uma corrente de compreensão e solidariedade.

 

L de LIÇÕES. Num artigo publicado na revista francesa L’Express, logo após o Festival de Cannes do ano passado, o crítico e cineastra François (A Noite Americana) Truffaut assinalou as três grandes lições de Bergman em Gritos e Sussurros: liberação dos diálogos, nitidez radical da imagem e primazia absoluta ao rosto humano. As três colocadas a serviço de um notável estudo da mulher frente aos temas do amor, sexo, dor, sofrimento, vida e morte.

Gritos e Sussurros não é uma peça de literatura, mas é um filme que se compõe de palavras sinceras, de coisas ditadas e silenciadas, de confissões e confidências. O próprio Bergman é o autor dos diálogos deste filme, que contém algumas das falas mais bonitas que o público já ouviu no cinema. Gritos e Sussurros coloca o nome de Bergman entre os dos chamados cineastas “construtores” da imagem (Hitchcock, Eisenstein, Fritz Lang): não há nada no filme que ele não tenha querido mostrar.

Finalmente, Gritos e Sussurros devolve ao rosto humano todas as suas modulações expressivas. Nunca, desde os tempos do dinamarquês Carl Theodor Dryer, com sua obra-prima do cinema silencioso, A Paixão de Joana D’Arc, uma câmera se aproximou tanto do rosto humano. Em cena, estão quatro mulheres: seus rostos são os territórios percorridos pela câmera de Bergman, que devolve ao rosto humano sua primazia. Gritos e Sussurros é uma impressionante sucessão de olhos, bocas, orelhas: olhos que falam, bocas que silenciam, ouvidos presos ao inexorável tic-tac dos relógios que anunciam o tempo, e a morte.

M de MORTE. O problema da morte está ligado ao problema do tempo. A luta do homem contra a morte sempre foi uma luta contra o tempo, no sentido de preservar a vida. No filme de Bergman, Agnes morre mil vezes, a cada tic-tac do relógio que aproxima o momento do desenlace. Bergman nos faz sentir a opressão do tempo desde as cenas iniciais: depois dos planos do jardim, banhado pela luz do amanhecer, penetramos na casa, na atmosfera carregada do quarto, onde os relógios anunciam a Agnes que ela superou mais uma noite. Inicia-se um novo dia na corrida da personagem contra a morte.

N de NYKVIST, Sven. É o fotógrafo preferido de Bergman, premiado pela Academia de Hollywood em 1974 pelo seu trabalho neste filme. A ideia de Gritos e Sussurros nasceu, segundo Bergman, de uma imagem: as quatro mulheres num quarto vermelho. A cor era muito importante: vermelho sempre foi para Bergman, a cor da alma. Por quê, nem ele sabe. Mas foi por isto que ele exigiu de Sven Nykvist um tratamento impressionante de cor. Preto, branco, muito vermelho, são as cores que vemos em Gritos e Sussurros.

Outros detalhes também teriam que ser resolvidos através de uma estreita colaboração entre o cineasta e o diretor de fotografia. Bergman não queria determinar exatamente a época da ação, mas queria dar ao público, uma sugestão de sensualidade. Tudo isto ele conseguiu graças ao trabalho de um senhor fotógrafo, Sven Nykvist.

P de PIETÁ. Todo mundo sabe o que é a Pietá. É uma composição de pintura ou escultura que representa a Virgem, sozinha ou acompanhada com o corpo do Cristo morto. Depois das obras medievais (a famosa Pietá de Avignon), o tema tornou-se frequente sobretudo no Renascimento. Na escultura, a obra mais famosa é a Pietá de Miguel Ângelo, na Catedral  de São Pedro.

Bergman quis fazer a sua Pietá e fez Gritos e Sussurros, colocando Agnes num retorno da própria morte, nos braços de Ana, onde ela finalmente encontra a paz. Momento sublime de cinema, momento inesquecível de significação humana: Ana descobre o seio e envolve Agnes em seu calor. É assim que Agnes encontra a tranquilidade da morte. Esta cena tem uma dimensão fantástica: o milagre que leva à paz. P de Pietá, P de paz reencontrada.

S de SYLWAN, Kari. É a atriz que faz Ana, a empregada que mora sozinha na casa com Agnes. Ana é uma camponesa de beleza um pouco rude. Mas é uma das mais impressionantes figuras de mulher criadas por Bergman. Com uma silhueta barroca, lembrando vagamente a figura física de Simone Signoret, é no seu terno regaço que ela acolhe a moribunda Agnes. Curiosa relação, a destas duas mulheres: uma, Agnes, que não teve da mãe a atenção que queria; a outra, Ana, perdeu a filha querida. É isto afinal de contas, que as aproxima.

T de THULIN, Ingrid. A atriz que faz Karen. Mais velha que Agnes, ela casou com um burguês rico e hoje acumula ódio ao marido e desprezo por si mesma. Ingrid Thulin, uma excelente atriz, é conhecida do público não só por suas participações em filmes de Bergman, mas também por seus papeis em filmes de Vincente Minnelli (Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse) e Luchino Visconti (Os Deuses Malditos). Nenhum destes diretores, porém, nem o próprio Visconti, usou tanto a dureza das linhas do seu rosto. Como Karen, ela projeta uma imagem de pedra: a expressão crispada mal dissimula a violência que ela contém e que a destrói internamente. Mas quando esta natureza se liberta e Maria e ela se entregam a um diálogo cheio de ternura, percebemos o que existe de desolador na sua dureza. Quando o filme termina, Karen voltou a ser o que era. É isto, mais que o silêncio de Deus, que atormenta Bergman hoje em dia: a facilidade com que as pessoas se transformam em carrascos de si mesmos.

U de ULLMAN, Liv. Uma atriz que parece funcionar só nos filmes de Bergman (seus papeis em Hollywood foram desastrosos, ou quase isto), Liv interpreta duas personagens em Gritos e Sussurros. Morena, ela é a mãe, sempre vestida de branco, presença majestosa, envolta numa certa melancolia; como Maria, a mais nova das três irmãs, ela aparece com os cabelos ao natural, castanhos.

Maria é outra personagem bem pintada: é a mulher-criança, mimada, que acha que o mundo deve funcionar à medida dos seus caprichos, sexuais inclusive. Numa cena, ela é comparada a uma boneca: nisto não vai exagero nenhum de Bergman. Quando Agnes a chama para acudi-la no momento trágico de sua morte, Maria foge, Karen também foge, só Ana terá a coragem necessária para enfrentar a situação. Liv Ullman recebeu o prêmio da crítica de Nova Iorque por sua interpretação em Gritos e Sussurros. Qualquer uma das quatro mulheres do filme mereceria a distinção: ao premiá-la, os críticos nova-iorquinos certamente estavam destacando sua beleza, ou o duplo papel.

V de VIDA. O que existe de mais belo em Gritos e Sussurros é que, afinal de contas, este filme sobre a morte termina nos falando sobre a vida. A última imagem é retirada de um trecho do diário de Agnes, que Ana lê após a sua morte. É aquele em que Agnes diz de sua satisfação por receber a visita das irmãs e diz mais, que os passeios que elas fizeram pelo jardim da casa, acompanhadas por Ana, foi um dos momentos mais felizes de sua vida. Na tela, vestidas de branco, contra o verde fundo da relva, aparecem as quatro mulheres. A felicidade, comenta Agnes, é feita de momentos assim. Bergman escolheu esta imagem para encerrar a sua obra-prima. É com ela que o cineasta equilibra todos os instantes dolorosos que vimos antes. Uma imagem serena de vida, com força suficiente para purificar a alma do público.

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