Outono, de Karl Ove Knausgård

Outono é uma bela coleção de sessenta e poucos pequenos textos que ficam entre o banal e, muitas vezes, o absolutamente imprevisível. São crônicas de até 3 páginas, onde o autor faz uma desintoxicação da enorme série Minha Luta. Após seis romances longos que levaram a introspecção ao limite, Outono parece olhar para fora e não para dentro. Knausgård certa vez afirmou que precisava de pelo menos 300 páginas para afirmar até mesmo a verdade mais simples, mas este livro, paradoxalmente, é formado de curtas observações – pequenos ensaios, cada um com não mais de três páginas, cada um considerando um único objeto ou fenômeno.

Em vez de falar de si — e ainda assim falando –, Knausgård nos mergulha num mundo material de maçãs, víboras, latas, rostos… Ele narra e filosofa enquanto esvazia a máquina de lavar louça, ferve macarrão ou penteia piolhos do cabelo de uma das filhas. Uma crônica é desencadeada quando uma de suas crianças perde mais um dente e simplesmente o entrega a ele. Knausgård fica com o dente na mão se perguntando porque paramos de nos maravilhar com os dentes perdidos, porque paramos de nos maravilhar com o mundo. E esta se torna a preocupação central do livro: restaurar nosso sentimento de admiração, tornar o mundo novamente estranho e cheio de magia.

Simone Weil escreveu que “a atenção, levada ao mais alto grau, é o mesmo que uma oração” – e aqui é assim. Dentes, chicletes, tudo se torna nobre, quase sagrado, sob o olhar paciente e admirador de Knausgård. O mundo parece repintado.

A maioria dos textos parte de onde o corpo termina e o mundo começa. Knausgård reflete sobre os botões de nossas roupas — uma das mais antigas invenções humanas. As moscas mexem com sua imaginação porque são cobertas de papilas gustativas: “Quando tudo que elas tocam também é provado, deve parecer ainda menos claro para elas o que são elas e o que é o mundo”.

Em uma cena, a filha de Knausgård vomita em cima dele no metrô. O que seria repugnante se a filha fosse de outra pessoa, aqui não é: “O fedor encheu minhas narinas, e o vômito pingava lentamente da minha jaqueta, mas não era nojento nem desconfortável, pelo contrário. A razão era simples: eu a amava, e a força desse amor não permite que nada fique em seu caminho, nem o feio, nem o desagradável, nem o repugnante, nem o horrível.”  Decididamente, este não é o mundo de Minha Luta, com seu pai ogro, suas ansiedades sobre a masculinidade, sua obsessão com o massacre de 2011 na ilha de Utoya, na Noruega, quando um nacionalista de extrema direita assassinou 69 pessoas.

É estranho ler um Knausgård tão seguro. O livro tem bom gosto e limites apropriados, inclusive quando fala entusiasticamente sobre sexo oral. Ele se recusa a se perder nas sombras. Eu, Milton, esperava a coragem de Minha Luta e sua falta de vontade de contornar “o feio e o desagradável”, seu senso  dos perigos e da imprevisibilidade da vida. Mas, em Outono, Knausgård nos mantém na praia olhando o mar. E as conchas que ele nos dá para admirar são intrincadas, absorventes e belas.

Karl Ove Knausgård (1968)

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