E se um dia eu escrever um livro…, de Ademir Furtado

E se um dia eu escrever um livro…, de Ademir Furtado

Não, não há nada de errado com o Bildungsroman, gênero que começou lá com Goethe — mais exatamente com Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister —, e que gerou uma série de grandes obras bem diferentes entre si, como O Apanhador no Campo de Centeio, A Montanha Mágica e a Tetralogia Napolitana da Ferrante. O Brasil não me parece muito adepto do gênero. Ciranda de Pedra e Mãos de Cavalo são Bildungsroman, certamente. Será forçar a barra colocar O Ateneu no grupo?

O Bildungsroman é um gênero de romance que apresenta o processo de formação de um personagem principal. De sua infância ou adolescência até tornar-se um jovem adulto. Seu desenvolvimento moral, psicológico, político, sexual e estético estão lá descritos, bem como as pessoas que o influenciaram — ou que lutaram pela sua alma, se lembro bem do Hans Castorp, de A Montanha Mágica, em tradução do amigo Herbert Caro.

E é um Bildungsroman que anuncia e faz Ademir Furtado no ótimo E se um dia eu escrever um livro… No livro de Furtado temos Ângelo, um jovem que vive em Porto Alegre com todas os problemas de um pós-adolescente. Ele ainda leva uma vida confortável com pai e mãe, um casal estável. Seu pai parece que fez uma bobagem qualquer no trabalho e está sofrendo um processo administrativo. Nada de dramas, Ângelo tem mais o que fazer, tem que tratar de sua vida — afinal, adota uma forma tão romântica e literária de abordar as meninas que as perde, arranja um mentor num brilhante e despachado livreiro, é muito interessando em arte, ignora o que fará no futuro, etc. E como todos moram em Porto Alegre e são espertos, acabam frequentando os melhores lugares da cidade.

Apesar de falar de uma geração posterior à minha, o livro me interessou muito. Me identifiquei, ué. Boa parte do que era Ângelo, eu fui. Acho que o mesmo vale para o autor… O fato de conviver com pessoas que escreviam livros, ao mesmo tempo que também escrevia, mas não mostrava nem contava nada pra ninguém — eu fazia isso. O fato de passar para o papel seus sonhos noturnos — eu fazia isso. O fato de perder meninas por puras bobagens ou inabilidade ou indecisões — isso era eu. O fato de andar por aí meio tarado — bem, vocês já cansaram.

Como atração especial, Se um dia eu escrever um livro… tem uma série de contos de Zezé, amiga de Ângelo, no que seria uma pequena obra dentro de outra. Fala ainda sobre a pressão imobiliária para substituir um sebo por algo mais “útil”. Também há várias e boas discussões sobre problemas artísticos, além de nos dar uma visão da formação das amizades e dos círculos literários porto-alegrenses, o que deve ocorrer de forma mais ou menos semelhante em várias cidades, apesar de Porto Alegre parecer um criadouro de escritores. Às vezes aparece um bom como Ademir.

Eu curti. Recomendo. E tem na Bamboletras.

Ademir Furtado

Leopold, de Luiz Antonio de Assis Brasil

Leopold, de Luiz Antonio de Assis Brasil

Para um amante da música, dificilmente a literatura brasileira oferecerá um banquete melhor servido do que este Leopold. Li o livro em voz alta para minha mulher Elena e Assis Brasil quase destruiu minha garganta com seus longos capítulos, parágrafos e frases, prova de nosso envolvimento com a narrativa. Era difícil interromper a leitura. AB ajustou sua prosa para que o discurso transmitisse uma ideia crível e realista do pensamento de Leopold Mozart durante toda uma viagem de volta a Salzburg após visitar seu filho em Viena. É um longo fluxo de consciência raramente interrompido e sem as ousadias formais que costumam acompanhar este gênero de narrativa. No começo da leitura, há também a surpresa com a fala em primeira pessoa de uma figura histórica pertencente a uma cultura alienígena.

Bem, se você não sabe, o filho de Leopold chamava-se apenas Wolfgang Amadeus Mozart e, se você não sabe quem é, talvez não devesse estar lendo este texto.

Durante a leitura, pensava que AB fizera uma pesquisa de mais ou menos uma década. Porém, o autor afirma no posfácio que trabalhou apenas 4 anos no projeto, mas que W. A. Mozart era (é) uma paixão antiquíssima e que “caso me candidatasse nesses concursos de televisão que aferem o conhecimento da pessoa acerca de qualquer assunto, eu teria ficado milionário respondendo sobre a vida e obra de Wolfgang Amadeus Mozart.” Ou seja, considerando a parte Mozart (a partir de agora, quando escrever Mozart, estarei me referindo a Wolfgang Amadeus), talvez tenha sido uma pesquisa informal de toda uma vida. E a citada paixão deve apontar também que Leopold seja o opus magnum do autor. E é.

1785. Mozart tem 29 anos, Leopold tem 66 e viaja numa diligência acompanhado de um casal adormecido. Atribui-lhes nomes e, sussurrando ou não — para não acordá-los — passa a narrar sua vida de pai de um gênio. A história se desdobra como nossos pensamentos, a coisa vai e volta, às vezes sem direção — artifício perfeito para quem conta uma história para ninguém, para quem conta uma viagem interior durante uma viagem –, às vezes de forma atônita com o talento do próprio filho.

Leopold demonstra ser uma pessoa autoritária, centralizadora e difícil, que desejava e procurava impor aquilo que via como melhor para seu Mozart: uma postura mais pragmática a fim de que este alcançasse a segurança financeira, uma esposa adequada e, sob sua orientação, a chegada ao Olimpo de melhor compositor de todos os tempos. Mas então Haydn, o grande Haydn, derruba a fantasia do pai ao dizer que Mozart era um compositor melhor do que ele próprio e o maior da Europa.

E o mundo de Leopold vai ao chão, pois o que ele teria a ensinar a seu filho se Haydn dissera aquilo? E, se Mozart era melhor do que Haydn, o que sobraria para Leopold ensinar? Ele se vê esvaziado. Nos últimos tempos, vivendo em Salzburgo afastado do filho em Viena, Leopold mandava-lhe cartas com instruções e exercícios… Mas claro que Mozart fazia o que bem entendia há muito tempo. E Leopold finalmente vê-se frente a si mesmo, como alguém que não escreveu uma obra digna de imortalidade, apenas um Método de Violino. Como alguém consciente de que, no futuro, o nome Mozart seria sempre utilizado para designar Wolfgang Amadeus e que ele sempre precisaria de um Leopold antes para saber de quem se tratava.

Neste jogo entre ser pai, mentor, professor e também compositor é que Leopold tem que se virar. Só que sendo um catolicão com aspirações iluministas na pequena Salzburgo, um empregado do arcebispo, a coisa não é tão simples. E esta é uma das universalidades do livro. Muitos de nós somos pais e mães que se tornam perfeitamente inúteis para os filhos. E a presença próxima de um imortal parece acentuar a impressão de finitude do pai e também da irmã… Mas tergiverso. Termino dizendo que o final do livro é muito bonito.

Saibam que Assis Brasil chegou lá. Escreveu um tremendo romance, uma consistente obra de arte que aponta para as intercertezas mais importantes da vida — envolvendo amor, arte, deus e morte.

Recomendo fortemente a leitura.

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Só uma coisa, meu caro Luiz Antonio, sou bachiano de quatro costados e não gostei muito desse negócio de ficar repetindo que o maior de todos é outro, tá?