O homem que via o trem passar, de Georges Simenon

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Este livro é um torpedo, uma obra-prima. Simenon era um mestre da análise psicológica. Em O homem que via o trem passar, acompanhamos Kees Popinga, um sujeito de lógica nada normal. Normal, Popinga assim parece nas primeiras páginas. Em sua bela vila em Groningen, na Holanda, ele leva uma vida pacífica e previsível com sua esposa, a quem chama de “mãe” — exceto na cama, espero — e seus dois filhos, Frida e Carl. Popinga exerce uma importante posição na melhor casa de importação e exportação da região, a de Julius de Coster en Zoon. Em suma, está tudo certo, tudo está bem planejado e certinho nesta vidinha enfadonha. Kees proíbe-se de entrar em certos bares que são taxados de inadequados. Quanto ao bordel local, onde, durante anos, estivera Pamela, a mulher que ele considerava a mais atraente que existia, Popinga nunca colocaria seu pé. Por nada no mundo. Pamela era uma das amantes de de Coster.

Sem spoilers. Tudo que contarei agora está no início do livro. Um dia, ocorre um problema na firma e Popinga precisa falar com o chefe à noite.  Não o encontra, mas, finalmente, por acaso, ao passar por um bar, Popinga o vê pacificamente instalado numa mesa de bar. O chefe também o vê e gesticula mui gentilmente para que Popinga entre. Com total tranquilidade e cinismo, Julius anuncia ao seu encarregado de negócios que a Companhia será declarada em liquidação muito em breve porque, entre outras coisas, ele, Julius, contrabandeia e contrabandeia há vinte anos. Então, Julius conta-lhe que decidiu desaparecer discretamente, naquela mesma noite, para se refugiar na Inglaterra, onde uma poupança o espera. E aconselha Popinga a fazer algo semelhante. Ali mesmo, de Coster lhe entrega uma graninha e faz uma vaga promessa de retomar futuramente seus negócios com Popinga.

E o mundo de Kees cai. Em primeiro lugar, com o dinheiro que lhe foi dado por de Coster, Popinga compra uma passagem para Amsterdam. Acontece que de Coster abandonou ali, no Carlton Hotel, a famosa Pamela, que ali mantinha há algum tempo. Popinga se apresenta a ela e, sem preâmbulos, por achar natural seu pedido (“afinal, era o trabalho dela, não era?”), exige passar uma hora de sexo com ela. A jovem cai na gargalhada na cara dele. Azar dela.

Depois, ele vai para Paris. Embora os personagens que o rodeiam — principalmente Jeanne Rozier, seu amante Louis e um bando de bandidos — pertençam à realidade, existe, para Popinga, apenas uma realidade: a sua. Kees Popinga reina supremo, está nas manchetes, escreve aos diretores de certos jornais para corrigir o que, segundo ele, é falso nas matérias a seu respeito. Ele até se dá ao luxo de escrever ao Comissário que o persegue. Aos poucos, ele se deleita com a fama, mas sobretudo com a habilidade excepcional com que escapa de seus perseguidores, pessoas que vivem dentro das normas. Ele acaricia, lisonjeia e constantemente insiste no valor de sua inteligência. Kees Popinga escapa de todos porque é o mais esperto.

O livro é enormemente envolvente. Kees é de enorme verossimilhança. Simenon explora seu personagem em profundidade, lá de dentro de seu cérebro de psicopata. O resultado é espetacular. Não pensem em um livro sangrento, nada disso. Sangue não é com Simenon, seu negócio são seres humanos. E, apesar do desvio e da perversão e da megalomania, é a impressão de um ser humano que o leitor leva de Kees Popinga, O homem que via o trem passar.

Georges Simenon (1903-1989)

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