O Rio Grande do Sul não é Minas Gerais, mas costuma ter bons autores e, quando fui escolher os melhores livros que li em 2024, apareceram dois gaúchos no meu desequilibrado pódio de 4: Falero e Luiz Antônio de Assis Brasil, respectivamente com Vera e Leopold, além de Bela do Senhor, do francês Albert Cohen, e de Sátántangó, do húngaro László Krasznahorkai. O húngaro já foi comentado por mim, Assis Brasil também — ele escreveu uma indiscutível obra-prima — logo Bela do Senhor terá sua vez, mas agora é o momento de comentar Vera.
Falero tem quatro livros publicados e todos são diferentes e têm enormes qualidades. O homem não erra. É um escritor muito sofisticado e, apesar da camiseta do Grêmio que costuma usar, sabe o que faz. Difícil encontrar textos com tal oralidade e fluidez. Falero faz uma literatura onde deslizamos facilmente pelo texto, mesmo que este por vezes descreva fatos truculentos. E há sempre um perceptível substrato de fino humor. Vera é o primeiro de três volumes que examinam a masculinidade tóxica a partir do opressor. A Bamboletras teve ínfima participação, pois, quando Falero concebia aquilo que chamava de seu calhamaço, pediu-me uma boa referência de romance de fôlego e eu lhe dei o mais óbvio dos títulos, o do maior romance que conheço: Anna Kariênina. Dia desses, ele me escreveu no Facebook:
“Lembra quando fui comprar o Anna (Kariênina), porque queria mais referências de romance de fôlego? Pois é, a minha ideia era caminhar por aí: Vanderson, da infância à vida adulta. A ideia ainda é a mesma, mas decidimos separar a história em três volumes, em vez de publicar um livro gigante. Vera é o primeiro volume. O segundo sai ano que vem.”
Anna deve ter cumprido seu papel, porém, se eu soubesse, teria-lhe sugerido um romance de formação tipo Os Buddenbrook. Em Vera, Falero constrói lenta e calmamente seus personagens. Mas não com eles congelados, ao estilo Balzac. São mulheres que se ajudam como se vivessem num formigueiro que, mesmo constantemente ameaçado ou pisoteado, deve seguir em funcionamento, principalmente para que elas estejam prontas para trabalhar para quem tem grana. São capítulos curtos e matadores, colocando o foco aqui e ali. Uma das maiores qualidades de Vera é a colocação lado a lado de duas realidades, a da vila e a da cidade burguesa, muitas vezes em capítulos alternados. São contextos chocantemente diversos, o que explica certa (ou a total) incompreensão de lado a lado. O que os ensaios sociológicos dificilmente conseguem, parece ser obtido facilmente por Falero: ele toca a realidade.
A ação acontece na vila, dentro da grande família de Vera, e na cidade, no prédio onde Vera trabalha como doméstica. Se as diferenças de ambiente são grandes, os homens demonstram que o machismo tem várias faces — eles somem, desrespeitam, são sutis, assediam, batem e até pagam pelo silêncio. São como na vida real — figuras sensivelmente mais idiotas do que as mulheres, com destaque para a impagável cena onde o porteiro descobre um preservativo no lixo, escondido dentro de uma embalagem de biscoito. Ele conclui, evidentemente, que a mulher na qual estava de olho dava pra todo mundo.
Após a apresentação vem a parte mais acelerada do romance, onde as várias histórias convergem para algum desenlace. Há momentos muito bonitos: a ida de Davi ao circo, a falta de jeito de Aroldo para abordar Vera, a negação e certeza da mãe de Camila, a TV de Vanderson. E outros momentos lamentáveis em que a opressão, a loucura e o preconceito aparecem. A tentativa do patrão com Vera e o receio dele de ser denunciado — coisa que jamais pensamos que Vera iria fazer — são grandes momentos do livro. Se Falero diz que Vanderson é o personagem principal do livro, não vamos discutir, mas esta primeira parte é de Vera.
A oralidade e a verossimilhança de tudo é absoluta, ainda mais para quem mora em Porto Alegre. São personagens vívidos e próximos, com quem nos encontramos todo dia. Não adianta, Falero é um mestre. Nasceu assim. Sabe e obtém o que precisa para contar suas histórias, desta vez uma inteiramente diversa do que fizera anteriormente. Ele consegue ser delicado e forte, tudo no momento certo. O resultado é vigoroso e impactante. O problema é esperar o segundo volume.