Por Bruno Freixo, no Facebook
Quando se fala em tráfico de drogas, o imaginário popular corre para o morro. Mas a real estrutura do crime está bem longe dali, em fazendas, clínicas de estética, postos de gasolina, funerárias, bingos, casas de câmbio, lojas de empréstimo rápido, lojas de venda de veículos seminovos, imobiliárias, empresas de transporte, de CACs, de segurança privada, náutica, restaurantes, igrejas evangélicas e até lojas de roupas. Fazendeiros, empresários, agentes públicos da Receita Federal, das Forças Armadas e da PF.
A multinacional do crime organizado no Rio de Janeiro e no país não opera nas comunidades nem nas periferias. Ela lava dinheiro nos lugares mais insuspeitos, instala laboratórios e depósitos para armazenagem de drogas em áreas rurais, mantém rotas de escoamento de drogas e armas em pistas de pouso clandestinas e estradas de grandes fazendas, pagam grileiros e milícias locais pra manter controle territorial e, por último, distribuem o carregamento para as favelas, que funcionam como varejo da droga, ou seja, é o último lugar a ter importância nessa cadeia produtiva. A favela é o subsolo da pirâmide no tráfico de drogas, e sua escolha como ponto de venda não se deu por uma casualidade histórica.
A favela surge historicamente por uma geografia de abandono, onde o centro “civilizado” abrigou a elite e, a periferia “desorganizada”, foi o resto onde o povo preto e pobre foi despejado para “higienizar” as áreas centrais da cidade. Esses territórios periféricos foram criminalizados bem antes da chegada do crime organizado, e são estigmatizados, desde o final do século XIX, como o lugar a ser evitado, de pessoas selvagens e perigosas.
Quando o tráfico de drogas se expande de forma organizada nas cidades, a partir do final dos anos 1970, acompanhando a crise econômica e o aumento do desemprego, foi necessário definir o papel dos territórios. O varejo da droga – que exige mão de obra barata e jovem – ficou a cargo das favelas, enquanto o atacado e a logística se estabeleceram nas mãos de redes empresariais com forte lobby nos poderes legislativo e judiciário municipais e com o Poder Legislativo nacional.
A favela virou o rosto do crime por já ser um território historicamente estigmatizado pela sociedade e pelo Estado. Da capoeira no início do século XX ao funk do século XXI: qualquer atividade cultural vinda das favelas sempre foi duramente reprimida. Nesse sentido, por trás do discurso de combate ao tráfico de drogas está o combate a territórios e corpos. Corpos pretos, claro. O jargão da “guerra às drogas” esconde o controle social dessas populações, neutralizadas nos lugares já invisibilizados pelos Estado.
Só que não faz sentido atacar o varejo e fazer vista grossa para o atacado que o alimenta. As operações policiais são concentradas nas favelas por uma lógica eleitoral. O ódio à favela une pessoas, especialmente pessoas que moram próximo a comunidades. O discurso da violência, o fetiche ao policial como Rambo fardado que caça o corpo preto, a produção de conteúdo de esquartejamento para compartilhamento no WhatsApp, programas pinga-sangue na TV, expressões fascistas de efeito como “soma ou suma”, são expedientes que alimentam o imaginário de uma população que, de fato, já está arruinada com a violência urbana, com assaltos e latrocínios, mas que é cooptada eleitoralmente com discursos passionais para votar nos mesmos representantes que alimentam esse sistema há décadas.
E, na hora do desespero, qualquer caminho serve. A percepção da violência no Rio, do Túnel Rebouças pra lá, é a pior possível em relação à percepção da violência nos bairros bolhas da zona sul.
Por outro lado, a percepção generalista de que a polícia é o braço armado do Estado burguês, ignora que, por trás da figura do policial, tido como herói no senso comum, existe um profissional subvalorizado, sem apoio psicológico, atuando sob jornadas exaustivas, sem direitos trabalhistas e que, tanto quanto o morador inocente da comunidade, é colocado na linha de frente dentro da favela, preparado para matar e morrer, como um produto descartável.
Por isso, o discurso pejorativo sobre a instituição Polícia Militar, apesar de parcialmente legítimo, não comunica. Muito pelo contrário: abre uma oportunidade para que entidades religiosas – como a Igreja Universal, por exemplo – se aproveitem dessa lacuna de apoio social para cooptar esses policiais com intenções duvidosas, movidas por projetos ideológicos particulares, ferindo premissas básicas de um Estado laico ao unir, de forma perigosa, religião com política e militarismo. O abandono simbólico do policial – assim como o vácuo de poder do Estado nas favelas, periferias e presídios – é capturado pelo discurso teocrático.
Culpar o usuário pela existência do tráfico também é moralismo barato. Em toda história da humanidade, o uso de psicoativos e vícios sempre existiu. O proibicionismo é eleitoreiro, joga com o senso comum e atrai conservadores e, principalmente, religiosos. A diferença é que o álcool, o tabaco e o açúcar estão sob controle do Estado. A maconha, a cocaína e outras drogas funcionam sob a lógica do livre mercado. Quando o Estado proíbe o uso e terceiriza o lucro, o crime vira negócio e, o Leviatã, passa a ser o mercado. Nesse caso, o mercado clandestino.
A questão é que, Cláudio Castro, que é herança do governo Witzel, se prepara para a candidatura ao Congresso ano que vem. Isso, inclusive, o blindará de ser o próximo governador do Rio preso. Sua turma de delegados blogueiros, bastante atuante em redes sociais e com discursos acentuadamente populistas, provavelmente estará também na disputa do Legislativo em 26 – e com grandes chances de vitória, pois comunicam diretamente para o imaginário policialesco do cidadão médio.
Por trás de toda chacina existe antes um ato político e, depois, um aproveitamento eleitoral. No caixão dos quatro policiais mortos que o governo do Rio diz se compadecer, há um palanque eleitoral de setores conservadores, que já se apressaram para criar o “Consórcio da Paz”. Uma paz que deixa famílias órfãs como herança e mergulha o Estado em uma incerteza profunda. Um cálculo do horror, em que morro e asfalto dividem o sofrimento por conta de uma violência generalizada entre Estado e varejistas do crime, que há mais de 40 anos nunca resolveu nada.
O Rio não é para amadores e a favela, definitivamente, não abriga os profissionais do tráfico de drogas e do crime organizado. A maior facção criminosa do país não é o Comando Vermelho, o Terceiro Comando ou o PCC. É o próprio Estado brasileiro.




Gosto muito de Muriel Spark (1918-2006). Seus pequenos romances são inteligentes, bem-humorados e sinceros. Não é muito difícil se identificar com um outro personagem, mesmo que haja um crime ou um fato muito lúgubre. Um eco muito distante (A Far Cry from Kensington, 1988) é um dos romances mais refinados e enigmáticos de Muriel Spark, um livro que combina a leveza irônica de seu texto com uma reflexão profunda sobre ética, memória e poder — tanto o poder da linguagem quanto o das pequenas tiranias cotidianas.

O Primeiro e o Segundo Homem é um livrinho que efetivamente merece o tom de reverência que lhe é habitualmente reservado. Publicado em 1988, esta coleção de contos ocupa um lugar distinto, mais ou menos o mesmo que Guimarães Rosa ou Simões Lopes Neto ocupam — sem comparações. É aquele lugar entre o mito e a memória, o sagrado e o cotidiano, ou do cotidiano tornado sagrado. O gaúcho rural de Luiz Sérgio Metz (1952-1996) é o missioneiro e é bem diferente dos arquétipos literários comuns ao gauchesco. O protagonismo de índios guaranis em vários dos contos é uma das bem-vindas anormalidades que mudam o imaginário do leitor. Metz — seus amigos o conheciam mais pelo apelido de Jacaré — constrói narrativas de uma alta densidade poética que parece brotar ou da terra ou do sonho. Seus personagens habitam um mundo arcaico, quase bíblico, violento e nostálgico, todos falando gauchês, porém carregando ecos profundos da experiência contemporânea: a pobreza, a solidão, a culpa, a perda do sentido, o trabalho que ofende. Metz escreve com uma intensidade que me fez lembrar do lirismo seco de João Cabral — Não sei porque estou me esforçando para encontrar paralelos para um livro tão diferente, denso e musical.









À margem do lago, de Naia Oliveira, é um pequeno livro de memórias, de afetos e resistência. Nascida nos anos 50 em Guaíba, do outro lado do lago que banha igualmente Porto Alegre, a autora nos convida a sentar à beira do tempo e escutar suas histórias que pulsam como uma coleção de instantâneos da vida, ou como “cristalizações do fugidio”, como dizia Erico sobre as fotografias. Naia transforma cada parágrafo em um pequeno caso — às vezes terno, às vezes duro — que revelam tanto a intimidade e os detalhes de uma infância à beira do lago quanto a intensidade de uma juventude vivida sob a sombra da ditadura militar. Lírico na simplicidade, forte na memória, é um testemunho delicado sobre viver, lembrar e não se calar. A prosa de Naia flui como as águas do Guaíba: calmas na superfície, mas carregadas de histórias no fundo.