Mais duas dos meus filhos no Dia da Criança

Estávamos no carro indo a algum lugar, a Bárbara na cadeirinha e o Bernardo já no banco, como se fosse crescido. Passávamos à beira do Guaíba. Paramos. Eu olho para trás a fim de ver como estavam eles. A Bárbara estende o pescoço para ver melhor a paisagem. Sem tirar os olhos da janela, ela faz uma cara de profunda admiração e diz:

— Que piscina gandi!

Eu lavava a louça e o Bernardo estava brincando no chão da cozinha com um caminhão de madeira que eu tinha dado pra ele — eu sempre tinha sonhado em ter um quando criança e nunca tive, confesso que tinha até ciúmes da coisa. O Bernardo pegava um limão, fechava ele dentro do caminhão e anunciava “Entlô!”. Pegava uma laranja e anunciava “Entlô”. Pegava uma maçã e dizia “Entlô”. Pegou um mamão e disse “Não entlô!”. Então eu ouvi algo como RAAAASCH e ele disse:

— Agola entlô!

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Já que é Dia da Criança, duas historinhas

Bernardo, hoje com 34 anos: ele devia ter uns 5 anos e tinha a cabeça lotada de documentários da Discovery Channel ou de outros canais assemelhados. Estávamos chegando na Escolinha dele e, logo em frente, na calçada, um grupo de trabalhadores do DMAE tinha aberto um enorme buraco na rua, fazendo algum conserto no esgoto. O Bernardo olha pra mim bem sério e pergunta:

— Pai, são arqueólogos?

Bárbara, hoje com 31 anos, entra correndo, toda feliz, em casa. Devia ter uns 2 anos e não se aguenta, tem que contar que viu um pássaro falando bem alto, repetindo as mesmas palavras. Pergunto-lhe qual era o pássaro que fazia algo tão incrível:

— Tu não conhece? É o pucabaio!

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XIV – O Anão, de Pär Lagerkvist

Neste momento, há três exemplares de O Anão à venda na Estante Virtual. A única edição nacional é da Civilização Brasileira, dos anos 70. Não é um livro grande, é um volume de 150 páginas. O valor mais barato praticado é de R$ 189,90; o mais caro, R$ 250,00. Não me surpreende. Tornou-se raro e é uma obra-prima daquelas que tem de ser levadas para a ilha deserta.

(Tenho certeza que meu exemplar está lá em casa. Mas agora, sabedor do que ele vale, vou dar uma conferida).

O Anão é a história de Picolino, o bobo da corte de um príncipe italiano da Renascença. Sua função é a de divertir e ele a cumpre; só que ele odeia minuciosamente a todos os seus amos e quase todos são seus amos, claro. A repugnância que sente, a repulsa que Picolino dedica a todos é descrita de forma estupenda — com um foco narrativo que tentaremos explicar à frente — pelo Nobel de 1951, assim como também a forma como passa a influenciar os assuntos políticos da corte, sempre com a única e exclusiva intenção de prejudicar a todos. É um romance originalíssimo sobre o mal, a inveja e o desprezo.

A cidade-estado renascentista onde ocorre a ação não é clara, mas há um personagem chamado Bernardo, que é sem dúvida inspirado em Leonardo da Vinci, o que nos faz pensar no final do século XV. Também há referências a igrejas que se encontram na região de Florença. Ao mesmo tempo, o anão, narrador do romance, fala em criações como A Última Ceia e a Mona Lisa, a primeira delas pintada em Milão e segunda provavelmente em Florença. Além disso, o príncipe parece ser César Bórgia, que empregou Leonardo da Vinci como arquiteto militar… Desta forma, há muitas referências históricas dançando incontrolavelmente no contexto do romance.

Como disse, o anão é o narrador e tudo é contado retrospectivamente alguns minutos, horas ou semanas após a ocorrência dos fatos e antes dos seguintes. Tal artifício faz com que todos os acontecimentos sejam quentes, contados com emoção, e que O Anão planeje no papel seus próximos passos. Ou seja, a colocação do foco narrativo é muito inteligente, fazendo com que o leitor sinta a respiração do anão-monstro arquitetando suas vinganças, incorporando o mal e curtindo seu ódio de misantropo.

Ele ama a guerra, claro, e quando lhe pedem para cometer um crime, ele o expande sob o pretexto de beneficiar o príncipe… Todos mudam durante o romance, todos mudam na cabeça do narrador, menos ele, que se mantém coerente da primeira à última página. Curiosamente, é profundamente religioso, mas sua crença inclui um Deus que nunca perdoa. Mesmo impressionado com a ciência de Bernardo, sente repulsa pela busca que este empreende para chegar à verdade e ao âmago das coisas.

Por tudo isso e muito mais, este clássico de 1944 é de leitura obrigatória, o que justifica (ou não) seu preço (abusivo).

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!