Meus encontros com Kafka, por Otto Maria Carpeaux

Meus encontros com Kafka, por Otto Maria Carpeaux

— Kauka.

— Como é o nome?

— KAUKA!

— Muito prazer.

Esse diálogo, que certamente não é dos mais espirituosos, foi meu primeiro encontro com Franz Kafka. Ao ser apresentado a ele, não entendi o nome. Entendi “Kauka” em vez de Kafka. Foi um equívoco.

Hoje, o “Kauka” daquele distante ano de 1921 é um dos escritores mais lidos, mais estudados e — infelizmente — mais imitados do mundo. Mas só Deus sabe quantos são os equívocos que formam essa glória. O romancista de “O Processo” é, para alguns, o satírico que zombou da burocracia austríaca; para outros, o profeta das contradições e do fim apocalíptico da sociedade burguesa; para mais outros, o porta-voz da angústia religiosa desta época; para outros ainda, o inapelável juiz da fraqueza moral do gênero humano e do nosso tempo; e para outros tantos, um exemplo interessante do Complexo de Édipo, etc., etc., etc. Tudo, em torno de Kafka, é equívoco. Equívoco também foi aquele meu primeiro encontro com “Kauka”.

Foi em 1921, em Berlim. Embora só contando os anos do século, eu já tinha passado por duras experiências de guerra e revolução. Estudante universitário, agora, que sonhava com uma carreira literária. Berlim, naqueles anos do primeiro pós-guerra, foi um centro de vanguardas: expressionismo, dadaísmo, os primeiros pintores abstracionistas, simpatizantes do comunismo e fundadores de seitas religiosas e vegetarianas, uma boêmia na qual os jovens austríacos desempenhavam papel grande e barulhento — e alguns grandes escritores de verdade: Döblin, Arnold Zweig, Werfel.

No Café Românico, centro da boêmia, esses homens feitos ocupavam mesas especiais, de que ninguém ousava aproximar-se sem ser especialmente convidado; o que não aconteceu nunca. Olhávamos para lá com inveja, escutando para apanhar, talvez, um pedaço de conversa. Rara foi a oportunidade de um convite para as tardes de domingo, no apartamento de um ou outro daqueles escritores, no bairro boêmio, mas elegante, do Bayrischer Platz — hoje um montão de ruínas. E, numa dessas tardes, cheguei a conhecer pessoalmente Franz Kafka.

Conheci poucos entre os presentes. Fui sumariamente apresentado. Sentindo-me um pouco perdido no meio dessa gente toda, não tendo a coragem de aproximar-me do centro da reunião, da grande e belíssima atriz D. F. — que tinha fama de Messalina —, retirei-me para um canto já ocupado por um rapaz franzino, magro, pálido, taciturno. Eu não podia saber que a tuberculose da laringe, que o mataria três anos mais tarde, já lhe tinha embargado a voz. E então se desenrolou “aquele” diálogo:

— Kauka.

— Como é o nome?

— KAUKA!

— Muito prazer.

Foi este o começo e o fim do meu primeiro encontro com Franz Kafka. Ao sair do apartamento, perguntei a meu amigo e introdutor:

— Quem é aquele rapaz magro com a voz rouca?

Respondeu:

— É de Praga. Publicou uns contos que ninguém entende. Não tem importância.

Meu segundo encontro com Franz Kafka, talvez cinco anos mais tarde, foi outra vez em Berlim, no escritório de uma casa editora. Antes de ir para a Itália, onde continuei os estudos universitários, tinha feito alguns trabalhos para aquela editora, chamada Die Brücke (“A Ponte”), mas nunca consegui receber dinheiro. Voltando para Berlim, em 1926, ouvi que a casa acabava de entrar em falência. Fui para lá. O diretor me deixou esperar na antessala mais de meia hora. Num cantinho, vi um montão de livros, todos iguais. Tirei um exemplar, abri: “O Processo”, romance de Franz Kafka. Distraído, comecei a ler sem prestar muita atenção, quando o ex-diretor da ex-Brücke me bateu nas costas.

— Pagar não posso, querido — dizia o homem —, mas, se você quiser, pode levar, em vez de pagamento, esse exemplar e, se quiser, a tiragem toda. O Max Brod, que teima em considerar gênio um amigo dele, já falecido, me forçou a editar esse romance danado. Estamos falidos. Nem vendi três exemplares. Se você quiser, pode levar a tiragem toda. Não vale nada.

Fiquei triste. Tinha esperado um pagamento de 130 marcos, e o homem me quer dar seu encalhe. Agradeci vivamente, e com certa amargura. Mas levei comigo aquele exemplar que já tinha aberto.

Foi a maior burrice de minha vida inteira. Toda aquela tiragem foi vendida como papel velho e inutilizada. Um exemplar da 1ª edição de “O Processo” é hoje uma raridade para bibliófilos. Nos Estados Unidos, paga-se mil dólares por um livro desses, ou mais. Se eu tivesse aceito o presente, seria hoje milionário…

Aliás, fugindo da fúria nazista, em Viena, março de 1938, perdi minha biblioteca inteira, que foi depois confiscada e dispersada. Mas cheguei, mais tarde, a receber na Bélgica um grupo de volumes que tinha, pouco antes do desastre, emprestado ao cônsul-geral dos Estados Unidos em Viena, e que este fez questão de devolver ao legítimo dono. Um desses livros foi aquele exemplar da 1ª edição de “O Processo” que, desse modo, fica até hoje comigo. E não me pretendo separar jamais do livro, pois foi meu segundo encontro com Kafka.

Li mesmo, naqueles dias distantes de 1926, “O Processo”: a história de um homem, de vida normalíssima, que é, certo dia, preso por esbirros de um tribunal desconhecido, interrogado em porões sinistros, denunciado por ter cometido crime do qual ignora a natureza, instruído numa catedral escura e vazia que “a culpa sempre está acima de todas as dúvidas”, condenado e executado.

Li, sem compreender o alcance e significação do relato. Mas impressionou-me fundo o ambiente do romance, as ruas estreitas, as casas decaídas e sinistras, a catedral escura e vazia, a irrupção do incompreensível e irracional em nossa vida de rotina. O romance deu-me a impressão do déjà vu: quando nos encontramos, no sonho, numa paisagem onde nunca estivemos e que, no entanto, nos é estranhamente familiar, como se já a tivéssemos visto. Um pesadelo.

Deu-me a mesma impressão no segundo romance, “O Castelo”, que saiu naqueles dias, levando à beira da falência mais outra editora. A história de um homem que pretende fixar residência numa cidade tiranicamente dominada pelos senhores do imponente castelo em cima da colina. Não lhe dão permissão para ficar. Só precariamente lhe toleram a existência incerta. É uma luta desesperada, e a autorização de residir só a alcançará o homem na agonia. Outro mau sonho, do qual custou despertar.

Nesse meu segundo encontro com Kafka, despedi-me dos seus livros com a firme convicção de se tratar de visões de extrema irrealidade. Como se Kauka estivesse morto e Kafka nunca tivesse existido.

Descobri a realidade de Kafka em Praga — onde nunca antes estivera.

Naqueles anos, fiz várias vezes a viagem Berlim–Viena, ida e volta, passando por Praga. Mas nunca antes me ocorrera saltar do trem na Estação Presidente Wilson, situada fora da cidade, que mal vi de longe — as luzes noturnas ou, então, a névoa fina da madrugada.

Numa madrugada assim — parece que foi em 1930 — assaltou-me a vontade de descer do trem para ver a cidade. Não sei o tcheco, e tinham-me dado o conselho de falar francês, de preferência ao alemão, pois era tensa a atmosfera em Praga; quase todos os dias, choques violentos entre tchecos e alemães. Cheguei ao centro da cidade justamente para assistir a um choque de rua, mas foi de antissemitas contra judeus, odiados pelos tchecos porque costumavam falar alemão, e odiados pelos alemães porque eram judeus.

Contaram-me um pequeno diálogo entre dois judeus praguenses:

— Veja como estamos sendo perseguidos.

— Em compensação, somos o povo eleito por Deus.

— Mas eu acho que já está na hora de Deus eleger um outro povo…

Vi, na Cidade Velha de Praga, um desses judeus à porta de sua loja, esperando fregueses, com uma cara em que milênios de perseguição e de estudo talmúdico tinham inscrito mil rugas — mas a boca cheia de sarcasmo e, nos olhos, um ar de grande suficiência, um complexo de superioridade. Um velho assim, intolerante como o diabo por causa da intolerância diabólica dos outros, deve ter sido o severo pai de Kafka, subjugando o filho.

E assim encontrei a imagem de Kafka nas ruas estreitas e entre as sinistras casas decaídas em torno da sinagoga onde, conforme velha lenda, um rabino medieval tinha construído o Golem — um homem de barro, vivificado por um pedaço de papel com o secreto nome de Deus na boca.

Certamente, uma daquelas lojas tinha pertencido ao velho Kafka. Certamente, nos porões daquelas casas tinha-se reunido o misterioso tribunal que condenou à morte o inocente culpado de “O Processo”… Preferi fugir desse ambiente.

Mas Praga é Praga. É uma das cidades mais belas do mundo. Atravessando o rio — o Vltava, imortalizado pelo poema sinfônico de Smetana —, levantei, na ponte, os olhos e vi, lá em cima na colina, o enorme Hradschin, o antigo Palácio Real, muito perto e, no entanto, parecendo inacessível nas alturas; e reconheci o “Castelo” de Kafka. Subi. Entrei, ao lado do castelo, na catedral gótica de São Vito, escura e vazia: e reconheci a igreja na qual o condenado, em “O Processo”, ouve a voz da Lei. Enfim, eu tinha encontrado a realidade atrás daquele sonho fantástico.

Foi este meu terceiro encontro com Franz Kafka. Tinha-o reconhecido como filho de sua cidade de Praga, que lhe foi madrasta: o homem era austríaco, alemão, tcheco e judeu ao mesmo tempo, tipo dos “displaced persons” cujo lamento enche este nosso século. Kafka antecipara o destino de milhões de judeus e alemães, italianos e franceses, holandeses, poloneses e russos — “displaced persons”, todos eles. E, por isso, tinha ele sentido tão bem que o próprio gênero humano é uma “displaced person” no Universo.

E sua obra estava destinada a tornar-se expressão simbólica da angústia do nosso tempo.

Pouco depois, eu mesmo era “displaced person”. Vim, enfim, para o Brasil, onde escrevi, salvo engano, o primeiro artigo em língua portuguesa sobre Franz Kafka. A repercussão foi considerável. Não teria sido tão grande se não começasse, logo depois, a “onda de Kafka” nos Estados Unidos e, depois, no mundo inteiro. E tão imitado se tornou o escritor de Praga que, enfim, se chegou a confundir o original e as cópias — até nosso grande poeta Carlos Drummond de Andrade, secamente acertando como sempre, notar: “FRANZ KAFKA, escritor tcheco, imitador de certos escritores brasileiros”.

O âmbito enorme dessa glória póstuma, uma das maiores do século XX, senti-a mais vivamente quando, em 1953, passei uns meses na Europa. Vi livros de Kafka, no original e em traduções, e estudos sobre Kafka nas livrarias da França e da Itália, da Espanha e da Bélgica, da Dinamarca e da Holanda, da Alemanha e da Iugoslávia, assim como na Inglaterra e na Suíça. Vi artigos sobre Kafka nas revistas literárias. Encontrei frases de Kafka, que há poucos anos ainda eram propriedade exclusiva de herméticas seitas literárias, citadas em artigos de fundo político. Em toda parte. E na Áustria?

Franz Kafka não foi tcheco, porque escreveu em alemão. Não foi alemão, porque se considerava judeu. Não foi judeu, porque não tinha a fé dos seus antepassados nem o sentimento nacional dos seus contemporâneos. Foi aquilo que eram todos os cidadãos de Praga — fossem tchecos, alemães ou judeus — nascidos nos anos de 1880: um austríaco. Mas ninguém é profeta em sua terra. Na Áustria de hoje, Kafka ainda é, apenas, objeto de discussões entre literatos. Os outros… Bem, eu fiz a experiência; e foi meu quarto encontro com Franz Kafka.

Em Viena, o escritor nunca se tinha demorado muito. Nada, na cidade, lembra sua presença invisível. E, se tivesse, os oito anos de dominação nazista teriam tido tempo suficiente para apagar os vestígios. Mas ninguém pode apagar a morte, não é? Pois, em Viena, Kafka morreu.

Ou antes, perto de Viena: na pequenina cidade de Kierling. Ali existe, ou existia naquele tempo, uma casa de saúde para a qual o transportaram doente e onde morreu. Fiz a peregrinação para Kierling.

Foi no mesmo mês em que Kafka, em 1924, morrera: junho. A paisagem mais risonha do mundo, vinhedos em toda parte, o sol do meio-dia não é forte demais, como no Mediterrâneo, mas basta para fazer amadurecer um vinho inebriante. Ao longe, já desapareceu a cidade de Mozart e Beethoven. O trem — bitola estreita e muita fumaça — para quase em frente à igreja. Um carregador aproxima-se. Estou sem malas. O homem me quer mostrar o caminho para o lugar onde se vende o melhor vinho.

No silêncio do meio-dia de verão, fiz a volta da casa fechada. Através das grades, olhei para dentro do jardim. Debaixo das árvores, umas velhas cadeiras. Certamente, ali repousaram os doentes. Uma janela meio aberta: um quarto pequeno, cama branca, na mesinha uma garrafa de água. Talvez ali Franz Kafka morreu em 3 de junho de 1924, ao meio-dia.

Trinta anos é muito tempo. Ninguém, em Kierling, se lembra. Mas onde foi enterrado?

O vigário é um bocado mais amável que o Dr. Hoffmann Filho. Abre o livro de registros, depois vira-se para mim:

— Kafka? Kafka? Não será nome judeu? Mas então ele não consta do meu livro de óbitos. Isto é uma paróquia católica apostólica romana.

— E os registros civis?

— Ah, estes foram transportados para Viena em 1930. Já tivemos um caso assim, questão de uma herança. Não adianta, os registros perderam-se em 1944, quando a cidade foi bombardeada.

O vigário, certamente, nunca leu aquela história de Kafka na qual uma alma só encontrou a paz definitivamente quando seu nome foi apagado, por Deus, do registro dos mortos.

Voltei de Kierling para Viena, ignorando que ali encontraria, mais uma vez, a sombra de Franz Kafka.

Amigos explicaram-me o caso do Dr. Hoffmann: provavelmente um ex-nazista que se assusta ao ouvir nome de judeu morto, com medo de ser denunciado como assassino. Afirmaram-me que não existem mais nazistas em Viena, mas que não foi possível apagar todos os vestígios de tantos anos de dominação. As bibliotecas públicas ainda estariam mais ou menos expurgadas; falta dinheiro, não é possível comprar todos os livros que foram destruídos. Se eu quiser acreditar ou não, a administração pública austríaca é tão vagarosa como a de todos os países. Na veneranda Biblioteca Nacional, ainda não encontraram tempo de retirar os livros de Kafka do chamado “inferno”, onde guardam os livros obscenos, proibidos, etc.

Parecia-me, por minha vez, que um “inferno” é o melhor lugar para os livros de Franz Kafka, cujos personagens nunca chegaram a entrar no Castelo e foram condenados à morte sem culpa formada. Mas a curiosidade não me deixou em paz.

A Biblioteca Nacional da Áustria é uma das mais ricas do mundo. Está abrigada num palácio barroco que é, talvez, o maior e o mais suntuoso da cidade. Quando rapaz, nunca entrei na grande sala de leitura — que antes parece salão para a coroação de um imperador — sem sentir bater o coração, no silêncio dos livros e no silêncio dos bibliotecários. Perturbar-lhes a paz, um pouco, seria obra salutar; e divertida.

Pois os bibliotecários na Europa não são como os daqui. Entre nós, são moças encantadoras que sabem tudo de catalogação e classificação, mas não entendem nada do que está nos livros. Em compensação, são bonitas. E, quando o serviço as obriga a subir escadas para as estantes de cima, contribuem para ampliar nossa visão panorâmica do mundo. Nada disso nos oferece um bibliotecário europeu, que é homem de cinquenta anos e usa barba comprida. Em compensação, sabe o que está dentro dos livros — mas só de certos livros. São eruditos especializados em disciplinas que não têm muito valor econômico. São assiriólogos, peritos em astrofísica, especialistas em histórias dos impérios iranianos da Idade Média, estudiosos das línguas dos índios peruanos ou da filosofia pré-socrática, ou da flora e fauna da Groenlândia. Ninguém pode viver disso, mas é preciso que alguém estude isso — e, para esse fim, o Estado os emprega como bibliotecários. Sabem tudo das suas ciências abstrusas. Mas qualquer pergunta fora disso nos abre panoramas da sua ignorância enciclopédica.

Fui para a Biblioteca Nacional. Nos fichários, procurei em K: não achei nada. O bibliotecário encarregado dos catálogos encaminhou-me para o subdiretor, lá na poltrona. Homem velho, mal-humorado porque interrompido na leitura de um manuscrito medieval. Expliquei a necessidade urgente de verificar o texto exato de uma frase numa obra de Kafka. O erudito olhou-me por cima dos óculos, como penetrando o fundo de minha alma. Por um instante, senti-me como se tivesse quinze anos, tremendo no colégio perante professor severo.

Mas a resposta restabeleceu-me a serenidade — até me teria alegrado, se não se misturasse com a hilaridade uma ponta de tristeza, de tantos anos passados e de tanta vida perdida.

Pois a resposta do Sr. diretor foi esta:

— Não conheço. Como foi o nome? KAUKA?

Ensaio publicado no livro “Reflexo e Realidade”, de Otto Maria Carpeaux.

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Tempos vividos, sonhados e perdidos, de Tostão

Tempos vividos, sonhados e perdidos, de Tostão

Quando Tostão deixou o futebol, eu tinha 16 anos. Vi-o jogar e fazer gol de falta pelo Cruzeiro contra o Inter nos Eucaliptos ou no Olímpico. Lembro do gol, não do estádio. Um golaço, de longe, no ângulo. Vi-o também pela Seleção Brasileira no dia seguinte à inauguração do Beira-Rio: Brasil 2 x 1 Peru, numa segunda-feira à noite. Pelé estava em campo, mas os gols foram de Jairzinho e Gérson. Muito bom jogo. Mas voltemos à Tostão. Foi um tremendo jogador que teve de largar o futebol aos 26 anos, quando sofreu um segundo descolamento de retina e os médicos mandaram-lhe parar. Parar com o futebol, pois Tostão (ou Eduardo Gonçalves de Andrade) não parou. Evitou as entrevistas e o coitadismo (abraço, João Carlos Martins!), estudou como um louco, formou-se em medicina, foi professor, mas um dia não aguentou e voltou ao futebol como comentarista. É um observador e pensador de primeira linha, tanto que recebeu vários prêmios por seus escritos sobre futebol, sempre no exterior, é claro. É alguém que levou efetivamente sua inteligência em campo para outras áreas.

Mais do que uma autobiografia, o livro é uma coleção de crônicas e ensaios onde Tostão analisa o futebol moderno, comparando a era de ouro dos anos 1970 com o futebol atual, desde o ponto de vista tático até o comercial. Em textos simples e diretos, relembra momentos históricos: suas vivências na Copa de 1970, o convívio com Pelé, a aposentadoria precoce… Também toca na cultura e na política — sobre como o futebol reflete as contradições do Brasil, da desigualdade social ao heroísmo improvável dos ídolos, tudo longe do ufanismo tão comum.

A nostalgia chega sem romantismo e alguns textos assumem que você tenha conhecimento prévio de fatos históricos do futebol. Tostão celebra o passado sem ignorar os problemas. O livro é para os adeptos do futebol que buscam análises além dos clichês. Não é uma biografia — quem busca detalhes da vida pessoal de Tostão vai ficar frustrado.

Acumulei algumas coisas no parágrafo anterior para chegar logo ao capítulo 17, “Não foi por acaso”. Em suas 16 páginas, Tostão faz surpreendente e lúcido apanhado sobre a evolução do futebol, falando nos vários esquemas táticos, na supervalorização dos técnicos — tanto no campo e quanto nas análises da imprensa e dirigentes –, na malandragem, na grana… Enfim, só este capítulo já vale o livro.

Tem na Bamboletras, claro.

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Em caso de desgraça, de Georges Simenon

Em caso de desgraça, de Georges Simenon

Que livro bom! Mais um Simenon arrasador! Em caso de desgraça (1956) foi publicado no Brasil pela Nova Fronteira em 1984 e parece que nunca houve ume reedição. Coisas de nosso país. Hoje só pode ser encontrado em sebos.

Em uma Paris sombria, André Gobillot, um advogado de meia-idade bem-sucedido e casado, vê sua vida burguesa virar de cabeça para baixo quando Yvette, uma jovem garçonete de origem humilde, aparece em seu escritório. Acusada de assassinar acidentalmente um amante durante um roubo fracassado, Yvette desperta em Gobillot uma obsessão autodestrutiva que mistura desejo, compaixão e culpa. O caso se transforma em um jogo perigoso de poder e submissão, arrastando algumas pessoas junto.

É daquele jeitinho Simenon que a gente adora: prosa econômica e afiadíssima, frases curtas, descrições mínimas e diálogos que revelam mais pelo que escondem do que pelo que dizem. A narrativa e os ambientes são claustrofóbicos, concentrando-se na psicologia dos personagens e na atmosfera opressiva de um mundo onde ninguém é inocente.

A anti-heroína Yvette é não é de modo nenhum uma femme fatale tradicional, é antes vulnerável, infantil e profundamente humana. Ela tem um jovem apaixonado por ela, mas deixa-se envolver por Gobillot. Parece estar como um ioiô entre os dois. Sua fragilidade é uma mistura de desespero, ingenuidade e violência. Enquanto isso, o respeitável Gobillot não é um vilão, mas um homem fraco que todos veem como forte. Afinal é o advogado implacável. Sua obsessão por Yvette é, acima de tudo, uma fuga do vazio de sua vida. Ele defende Yvette — assim como defende muitos criminosos — não por justiça, mas por uma necessidade de sentir-se vitorioso.

Tudo é culpa. Ele, por desejá-la; ela, por existir como uma excrecência social. A Justiça é uma farsa, um palco onde os verdadeiros crimes (a desigualdade, o moralismo) não são julgados. E há a solidão. Yvette está isolada pela pobreza, Gobillot, pelo vazio de sua existência, a mulher de Gobillot busca companhia nas amigas e nos cerimoniais que seu bom casamento lhe proporciona. Não parece estar nem aí com Yvette. Sabe de tudo e suporta.

Yvette “não era bonita, não era inteligente, mas tinha algo que ele não encontrava em nenhum outro lugar: a coragem de ser desgraçada. E isso, Gobillot não perdoa”.

Recomendo. Ideal para fás de Dostoiévski e Camus.

Simenon nos anos 50

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O Infinito em um Junco, de Irene Vallejo

O Infinito em um Junco, de Irene Vallejo

Um excelente livro. Curiosamente, uma amiga comprou-o na Bamboletras e fez questão que eu o lesse. Sei lá como, ela sabia que me fazia falta. Em O Infinito em um Junco, da filósofa, filóloga e escritora espanhola Irene Vallejo, a evolução da sociedade e do livro estão profundamente entrelaçadas, são duas linhas quase paralelas que se juntam, às vezes se afastam, porém sempre se influenciam mutuamente. A obra traça uma história cultural do livro, desde os primórdios da escrita até a invenção da imprensa, mas dando frequentes saltos até a era digital e a fatos de nossa cultura contemporânea para certeiras analogias com as transformações sociais, políticas e tecnológicas. E, é fato, o livro é um objeto revolucionário.

Não costumo fazer resenhas de ensaios, então não me permitirei grandes liberdades. Vou tratar de organizar as ideias de forma cronológica e talvez burra: Vallejo parte da invenção da escrita (na Mesopotâmia e no Egito), de como ela surgiu de necessidades práticas (contabilidade, registros), mas logo se tornou veículo de literatura e poder. Os papiros egípcios e a biblioteca de Alexandria simbolizam o livro como instrumento importante para os poderosos dos impérios, mas também de resistência (como os textos salvos por copistas anônimos). Na época, poucos sabiam ler e a leitura era uma prática em voz alta, para grupos. Pasmem, a prática da leitura íntima é relativamente moderna.

Depois, passamos à Grécia e à primeira revolução. A democratização parcial da escrita na Grécia antiga (com o alfabeto fonético) permitiu que ideias como as de Homero ou Platão circulassem além das elites. Esta parte grega é deliciosa, cheia de fofocas do pessoal do Olimpo. Vallejo descreve como a Grécia migrou da tradição oral (Homero) para a escrita, criando os primeiros “best-sellers” da História (como os rolos de A Ilíada). A biblioteca de Alexandria, no Egito helenístico, tornou-se um santuário do saber grego, com obras copiadas e catalogadas em papiro. (Imaginem o quanto se perdeu dentre obras que não foram copiadas e recopiadas). O alfabeto grego (fonético) era mais acessível que os hieróglifos, permitindo que cidadãos comuns lessem — apesar de os livros ainda serem caros e raros. Vallejo relembra a famosa crítica de Sócrates à escrita: ele a via como uma “memória morta”, incapaz de dialogar e defendia a oratória. Eu estaria ralado, pois escrevo direitinho, converso melhor ainda, mas meus discursos são os de um idiota.

Já Roma era envergonhada de sua incultura e da alta cultura de seus colonizados, os gregos. Eles compravam gregos escravizados para ensinarem seus filhos, numa estranha inversão. O escravo era culto e tinha que ensinar seus filhos para que não crescessem ignorantes como os pais. Os romanos popularizaram o códice (páginas encadernadas, antepassado do livro moderno), mais prático que os rolos. Em Roma, surgiram as primeiras livrarias e editoras (escravos copistas trabalhavam em série). Alguns imperadores como Augusto usaram livros para propaganda, enquanto outros (como Calígula) os queimavam por medo de críticas. Ironia: apesar da repressão, obras com claros propósitos políticos, como Eneida, de Virgílio, sobreviveram como ferramentas de identidade nacional. E foi Roma quem copiou e preservou textos gregos como os de Aristóteles, mas também apagou outros — reciclando papiros para escrever documentos burocráticos.

A queda do Império Romano e a ascensão do cristianismo transformaram o livro em objetos praticamente sagrados, tendo os mosteiros como guardiões de textos clássicos. Enquanto a Europa feudal era fragmentada, os monges copistas mantiveram viva a herança escrita, demonstrando como o livro desafiou o colapso social. O islã teve um importante papel: enquanto o ocidente medieval perdia acesso a textos, bibliotecas como a de Córdoba — a da Espanha, claro — preservaram obras gregas e romanas.

Vallejo descreve como a sociedade pós-feudal — com a burguesia urbana e as universidades, com Gutenberg e a imprensa a partir do século XV — demandava livros acessíveis. A imprensa acelerou a Reforma Protestante, a ciência e as revoluções políticas. A industrialização barateou o papel, e o livro virou símbolo de ascensão social. Lembrem dos romances de Dickens, dos folhetins.

O Infinito em um Junco vai até a era digital. Como em Alexandria e em Borges, há hoje uma biblioteca infinita (Google), mas com riscos de monopolização e desinformação. Ela também enfatiza que, sem a obsessão greco-romana pelo livro, o surgimento da literatura ocidental atrasaria sua chegada. A dualidade entre preservação e destruição, elitismo e popularização, ecoa até hoje em debates sobre acesso ao conhecimento. Obviamente, Vallejo vive cercada por livros e faz a apologia do livro físico como objeto de afeto, resistindo bravamente à lógica do descartável. Ela comprova facilmente que a história do livro é um espelho da humanidade — com ambições, medos e reviravoltas. Cada avanço social — democracia, educação massiva — dependeu do livro e cada crise — autoritarismos, colonialismo — tentou controlá-lo.

Um baita e envolvente livro. Recomendo muitíssimo. Tem na Bamboletras.

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Bloomsday: Nem Jesus Cristo tem um dia no calendário. Leopold Bloom tem

Bloomsday: Nem Jesus Cristo tem um dia no calendário. Leopold Bloom tem

Por Marcelo Costa, na Revista Bula

Leopold Bloom acorda todo dia 16 de junho. Não importa o ano. Nem importa o mundo. Pode haver guerra, ruína, Wi-Fi, greve dos transportes, um eclipse total ou um desfile de patos; Bloom acorda. Com fome, quase sempre. Uma fome serena, doméstica, trêmula de humanidade — a mesma que fez Joyce prender aquele homem comum no labirinto de vinte e quatro horas eternas. Sim, o tempo não é de verdade. O tempo é Dublin fingindo que é um dia só. O dia em que tudo acontece, e nada acontece, e o leitor se afoga no tédio vivo de existir. Bloom vai ao banheiro. Pensa em rins. Vai ao mercado. Lembra de Molly. Compra limões. Evita lembranças. Sorri para ninguém.

E na cidade real, do lado de fora do livro, pessoas se fantasiam de passado para perseguir uma ficção que os ultrapassou. Gravatas tortas, suspensórios anacrônicos, vestidos com cheiro de brechó e uma vontade insaciável de pertencimento. Em frente ao Sweny’s Pharmacy, onde não se vendem mais remédios, só relíquias — o sabonete de limão, a sombra de um parágrafo, o pó da linguagem —, um grupo lê em voz alta um trecho que talvez ninguém entenda por completo. Mas não é isso o amor? Repetir aquilo que nos escapa, como quem aprende uma música de ouvido? O Bloomsday é isso: um ritual que nunca cura, mas também nunca adoece de vez.

Ulysses
Ulysses, de James Joyce (Companhia das Letras, 848 páginas, tradução de Caetano W. Galindo)
Um senhor com chapéu-coco declama a lista de compras de Bloom como quem recita um poema sagrado. Ao lado, uma mulher de olhos azuis como uma promessa esquecida segura um exemplar gasto de “Ulysses”, cheio de notas à margem — algumas datadas, outras apagadas. Em Dublin, neste dia, todo mundo fala com livros. O sotaque da língua inglesa parece curvar-se, arrastado, como se cada sílaba carregasse pedras nos bolsos. Um turista francês, perdido e feliz, pergunta onde fica a Martello Tower. Alguém responde com um gesto largo, como se apontasse para um sonho.

E há isso: o Bloomsday não é uma celebração. É uma insistência. Uma recusa em deixar morrer um dia que nunca existiu de verdade. Joyce, esse irlandês que saiu da Irlanda para poder escrever sobre ela, talvez estivesse rindo agora. Ou não. Talvez esteja calado, observando de algum lugar onde a ironia já não importa. Criar um feriado para um personagem que passa o dia vagando pelas ruas, distraído, obsessivo, frágil, é como construir uma catedral para a hesitação. E as pessoas entram, comovidas.

Às vezes, há uma encenação no pub. Um Bloom encenado que coça a barba e observa um mundo que se faz de século 20. Mulheres imitam Molly sem pudor. Ou com todo o pudor possível. Depende do vinho. Depende da memória. Há quem chore. Há quem durma. Joyce escreveu um livro ilegível para que ninguém o lesse sozinho. E ele sabia. Cada frase é um quebra-mapa. Cada cena uma dobra no tempo. Como se a narrativa se recusasse a seguir a lógica dos homens. Dublin torna-se um tabuleiro. Uma cidade que se interpreta a si mesma, em voz alta.

Na esquina da Eccles Street, onde Bloom morava, já não mora ninguém. A casa 7 foi demolida. No lugar, uma parede. Uma plaquinha. Um aviso de que algo já foi ali. E não é isso, também, o que somos todos? Placas em carne viva. Avisos de que algo já esteve aqui. Cada leitor de “Ulysses” é um arqueólogo emocional. Tenta decifrar uma frase, encontra o espelho. Tenta seguir a trama, descobre um atalho. E tropeça. E volta. E não entende. E insiste. Porque o livro não está interessado em ser entendido. Ele quer ser vivido, como uma febre lenta, uma ressaca sem bebida, um sonho que gruda nos dedos.

James Joyce escreveu o dia mais longo da literatura com a crueldade amorosa de quem sabia que ninguém escaparia dele. Nem os personagens. Nem os leitores. Nem a própria cidade. A cidade agora se contorce para caber no molde do livro. Como se a ficção exigisse da realidade um reencontro impossível. Mas é isso que o Bloomsday pede: que o mundo repita o que já não pode ser vivido. Uma coreografia do esquecimento. Um teatro íntimo. Um delírio coletivo que não se pretende lúcido.

Alguém toca flauta. Um grupo improvisa um almoço à moda de 1904. A manteiga derrete como naquele parágrafo em que ela não tem nenhuma importância, e por isso é essencial. A chuva ameaça, como deve. Joyce detestava explicações. Então ninguém explica nada. Apenas fazem. Caminham. Leem. Escrevem à mão. Vestem-se de Bloom. De Stephen Dedalus. De sombras. De futuros passados. Uma mulher com olhos de vidro recita o monólogo de Molly na beira do Liffey. Quase sussurrando. Como se fosse um segredo que se diz por amor ao silêncio.

Em outros cantos do mundo, outras cidades tentam o mesmo. Nova York, Trieste, São Paulo, Melbourne. Réplicas involuntárias. Miniaturas sentimentais. O Bloomsday virou um gesto. Uma dobra do calendário. Um dia sem explicação oficial. Não há presentes. Nem hino. Nem herói. Apenas Bloom — esse homem que pensa demais, que sente demais, que anda demais. Ele que não faz nada de épico, nada de cinematográfico. Mas que carrega consigo o peso exato do dia. Como qualquer um de nós. Só que escrito.

E talvez seja isso que move os leitores de Joyce: a ideia de que há grandeza no banal. De que a literatura pode ser tão árdua quanto respirar. De que entender é uma tarefa menor diante da experiência. Porque Bloom, Molly, Stephen — todos eles são o que resta quando a história desiste de nos salvar. Não há redenção em “Ulysses”. Há apenas o tempo. O corpo. O pensamento. A solidão desfiada em frases longas, sujas, belas, impossíveis.

Dizem que há algo de religioso no Bloomsday. Mas é um culto sem dogmas. Uma fé em ruínas. As pessoas não vêm rezar. Vêm participar do abismo. Um abismo cheio de palavras. E ninguém precisa saltar. Basta ler. Ou fingir que lê. Ou fingir que entende. E continuar andando. Pelas ruas que não mudam. Pelos cafés que já não existem. Pelas livrarias que vendem mais chaveiros do que livros. Não importa. Porque há algo em repetir esse gesto — de acordar com Bloom, de seguir seus passos, de habitar esse dia como se fosse real — que cura sem remédio.

Num banco de praça, um garoto de quinze anos tenta ler a primeira página. Franze a testa. Olha ao redor. Fecha o livro. Depois abre de novo. E ri. Talvez tenha entendido algo que nenhum professor saberia ensinar. Talvez só tenha gostado da palavra “yes”. Porque “Ulysses” termina assim. Com esse sim que é corpo, memória, excesso. Um sim que não explica. Que não justifica. Que apenas diz: estou aqui. Estou vivo. E isso basta.

Hoje é 16 de junho. E, mais uma vez, Bloom está entre nós. Ele respira onde não há fôlego. Ele anda onde não há mapa. Ele pensa como quem não sabe se volta para casa ou se já está em casa. Dublin se dobra em sua homenagem — não como quem reverencia, mas como quem se confunde. Porque Bloom não é personagem. É presença. Uma presença que atravessa o tempo, rindo baixo. Como se soubesse que todos nós, no fundo, só queríamos encontrar um dia que fizesse sentido.

E nunca encontramos. Mas seguimos procurando.

James Joyce e Nora Barnacle, no dia de seu casamento, Londres, 1931

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Thomas Mann e Herbert Caro

Thomas Mann e Herbert Caro

Além da mãe brasileira, Thomas Mann teve a sorte de contar com Herbert Caro traduzindo seus livros no Brasil. Se “A Montanha Mágica” tem o formato de uma composição musical, como disse Adorno e o próprio Mann, seu tradutor no Brasil era um crítico musical de primeira linha. Sorte de Mann ter achado alguém “compreensivo”. (O Dr. Caro usava “compreensivo” no sentido de quem entendia as coisas com clareza).

Nos anos 70-80, conversava bastante com ele e nossas conversas eram sobre música e nosso amado Vermeer. Os encontros eram aos sábados pela manhã numa loja de discos de Porto Alegre. Há coisas que a gente perde por ser jovem, né? Ele foi o lendário tradutor de Mann, Hesse, Canetti e até Steinbeck. Mas pouco falamos sobre suas traduções. A música tomava quase todo espaço.

P.S. — Eu não sabia que hoje é o aniversário de Thomas Mann, 150 anos de nascimento.

Herbert Caro

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Daniel Deronda, de George Eliot

Daniel Deronda, de George Eliot

Daniel Deronda (1876) foi publicado no Brasil pela Paz e Terra em 1997. Mesmo sendo um livro de George Eliot (1819-1880) — autora daquele que é, para a maioria, o melhor livro da literatura inglesa, o notável Middlemarch (1871-2) –, não deve ter vendido nada e caiu na Grande Vala Nacional dos Livros Mortos, a qual é lotada de joias. Deronda é o último romance de Eliot, que parou de escrever após a morte de seu marido-amante George Henry Lewes. Aos desavisados, alerto que George Eliot era uma mulher, de nome oficial Mary Ann Evans.

O livro, de 700 páginas na edição brasileira, tem mais de 1000 nas edições com tamanho de letra normal, e é lento, meditativo, com longas passagens repletas de pensamentos e argumentações. É confortável de ler. Não é Tolstói mas traz enormes problemas morais que os personagens se debatem para resolver. Eliot gostava de unir narrativas aparentemente desconexas e repete o feito neste livro: há a tragédia aristocrática de Gwendolen Harleth e a busca identitária de Daniel Deronda, um jovem que foi criado por um “tio” e que desconhece suas origens. Mais do que um ousado romance social, a obra é uma exploração filosófica sobre culpa, redenção e a força do legado cultural.

Então, no primeiro dos eixos está Gwendolen, a bela heroína antiética e egoísta, cujo casamento falido com o sádico Grandcourt leva-a a um desespero moral. Sua vida é descrita com puro realismo psicológico, mostrando o funcionamento da opressão feminina numa sociedade que a ensinou a ser ornamental, mas não humana. Já Daniel Deronda é o protagonista enigmático, criado como um aristocrata inglês, mas atraído pelo misticismo judaico após salvar a judia Mirah Lapidoth. Sua história é uma espécie de alegoria, vinculando a desconhecida identidade a uma intuição de dever coletivo. A assimetria de ambos os personagens é justamente o cerne do livro: Eliot contrasta o vazio da elite britânica com a riqueza da tradição judaica, então marginalizada.

Falar elogiosamente em judaísmo e sionismo em dias de real genocídio palestino é quase proibido, mas neste romance, escrito há 149 anos atrás, uma autora não-judia retratava pela primeira vez na literatura inglesa a cultura judaica com profundidade e respeito. O sionismo de Daniel (antes mesmo do termo existir) e o sofrimento de Mordecai, um intelectual judeu — bem chato, aliás –, refletem o debate sobre a diáspora e a terra prometida. Eliot sugere que o pertencimento, a herança e a escolha poderiam ser antídotos para a superficialidade.

Enquanto Daniel encontra o judaísmo, Gwendolen é a vítima de uma sociedade que a educou para ser frívola. Seu casamento com Grandcourt (um verdadeiro vilão que se comporta com típico hômi machista) é a perfeita representação do preço pago pela dependência feminina. Sua jornada — ou sua tentativa — de ir da arrogância para a humildade é das mais comoventes. “Eu vejo o que sou… Uma mulher que errou em tudo”.

A texto é denso, quase filosófico, mas seus diálogos afiados antecipam claramente o modernismo. Li que, na época da publicação, os judeus agradeceram, os críticos acusaram o livro de didático e o público não gostou. Mas hoje, Daniel Deronda é visto como um precursor do romance multicultural e do feminismo literário. Mesmo com suas imperfeições e com o chatíssimo Mordecai, é efetivamente um romance à frente de seu tempo.

Por que é imperfeito? A trama de Daniel e Mordecai pode parecer forçada, e o final de Gwendolen é abrupto. Mas a ousadia em discutir etnia, gênero e espiritualidade num período de nacionalismos estreitos o torna essencial. Como escreveu o crítico Harold Bloom: “Eliot não quis escrever um grande romance; quis escrever um livro que mudasse consciências”. Daniel Deronda é uma espécie de farol torto escondido no cânone vitoriano.

Sobre os judeus do romance

O amante de Eliot, o jornalista e filósofo George Henry Lewes, previra: “O elemento judaico não vai satisfazer ninguém”. O tema é bastante incomum para a época: a posição dos judeus na sociedade britânica e europeia. Deronda é um jovem aristocrata idealista que resgata uma jovem judia e, em suas tentativas de ajudá-la a encontrar sua família, acaba se envolvendo cada vez mais na comunidade judaica e na efervescência da política sionista inicial.

A aparição deles no livro foi tão indesejada para alguns dos leitores quanto para alguns dos personagens. Enquanto Lady Mallinger lamenta o fato de Daniel “enlouquecer dessa forma pelos judeus”, um amigo de Eliot, John Blackwood, observou: “Os judeus deveriam ser as pessoas mais interessantes do mundo, mas nem mesmo sua caneta mágica consegue torná-los imediatamente um elemento popular em um romance”. Muitos anos depois, um crítico alucinado pediu que as seções judaicas do romance fossem completamente eliminadas, criando um romance chamado Gwendolen Harleth, em homenagem à gentia fatalmente egocêntrica que se apaixona por Deronda.

Falemos sério, um Daniel Deronda sem judeus teria sido impossível – mas parece que as pessoas continuaram tentando. Li que na elogiada adaptação da BBC de 2002 , o foco – além de uma breve cena da judia Mirah às margens do Tâmisa – é o romance entre Daniel e Gwendolen.

Por que Eliot se interessava tanto pela vida judaica? Ela foi criada como anglicana, mas desde cedo interessou-se pela história das religiões e, aos vinte e poucos anos, se integrou a um grupo de livres-pensadores em questões políticas e religiosas. A diversidade e a mistura de raças também era um assunto de seu interesse após a publicação de A Origem das Espécies, de Charles Darwin.

Na década de 1860, Eliot conheceu Emanuel Deutsch, um estudioso judeu e um dos primeiros sionistas. O personagem Mordecai — o estudioso e místico judeu — parece ter sido parcialmente baseado nele. Eliot escreveu a Harriet Beecher Stowe após a publicação de Deronda que “para com os hebreus, nós, ocidentais, que fomos criados no cristianismo, temos uma dívida peculiar e, quer reconheçamos ou não, uma especial profundidade de comunhão em sentimentos religiosos e morais”. Ela permaneceu interessada no judaísmo ao longo de sua vida, publicando um ensaio contra o antissemitismo três anos depois.

O que Daniel Deronda nos mostra sobre o lugar dos judeus na Grã-Bretanha no final do século XIX? Primeiro, que eles eram impopulares, sofrendo preconceito mesmo durante o governo do judeu Benjamin Disraeli. Eliot faz questão de nos mostrar o que ela considera a visão típica dos judeus — desde as classes altas (que se referem arrogantemente a Mirah como uma “pequena judia”), às classes médias (a Sra. Meyrick imediatamente presume que Mirah possa ter “pensamentos malignos”), até as classes trabalhadoras (cena do homem no bar).

Mas Eliot não está isenta de preconceitos contra um certo tipo de judeu. Ela presume que o leitor não se identificará com a família Cohen, chefiada por dono de uma loja de penhores, e até se desculpa no último capítulo por permitir que eles comparecessem a um determinado casamento. Enquanto isso, sua representação da inocente Mirah oscila para o outro lado. Ela é tão santa que tem nuances de bom selvagem. É tão infantil que, quando finalmente encontra um romance, este soa estranho. Achei muito esquisito quando ela beijou…

No entanto, Mordecai, o intelectual visionário que encanta Daniel, é um personagem complexo com lados simpáticos e antipáticos, e revela o fascínio da autora pelos detalhes do judaísmo, suas práticas religiosas e cultura. O fato de Daniel se tornar discípulo de Mordecai e concordar em continuar seu trabalho de busca de uma pátria para os judeus após sua morte — uma ideia tão desconcertante para os leitores de Eliot quanto para a maioria dos personagens do livro — também demonstra um real comprometimento da autora com o tema.

Hoje, o sionismo está manchado pelo governo do direitista Benjamin Netanyahu e seu apartheid. Já Mordecai é o judeu errante, eternamente estrangeiro em terra estrangeira, nunca em casa, “um povo que conservou e ampliou seu estoque espiritual justamente na época em que era caçado com um ódio tão feroz quanto os incêndios florestais que afugentam os animais de seus esconderijos”. A visão otimista de Mordecai de um futuro Israel como “uma nova Judeia, situada entre o Oriente e o Ocidente — uma aliança de reconciliação — um ponto de parada para inimizades, um território neutro para o Oriente” não pode deixar de ser lida como sombriamente irônica hoje.

George Eliot

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A minha lista, cara Folha de São Paulo

Em 24 de janeiro, publiquei no Face uma lista daqueles que seriam, na minha opinião, os 10 melhores romances brasileiros do século XXI.

Minha lista não é TÃO diferente da publicada neste domingo pela Folha. A ordem é alfabética.

– Budapeste, de Chico Buarque
– Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino
– Leopold, de Luís Antônio de Assis Brasil
– Minúsculos Assassinatos e Alguns Copos de Leite, de Fal Azevedo
– O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório
– O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli
– O Drible, de Sérgio Rodrigues
– Os Supridores, de José Falero
– Pornopopeia, de Reinaldo Moraes
– Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves

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O Livro Sem Qualidades

O Livro Sem Qualidades

Se há uma obra clássica que acho bem ruim é O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil. Hoje, ouvi uma bela definição do livro: é uma mistura do pior Thomas Mann e do pior Nietzsche, criada após demitirem o editor.

Sim, eu li tudo. 1200 páginas de total indireção.

Para piorar, o autor morreu antes de terminar. Mas acho — e nesta impressão estou muito bem acompanhado — de que o livro não teria fim, seria infinito.

Se fosse você, fugiria dele.

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Lançamento de “Imitando os negrinhos, hein?” neste sábado (24)

Lançamento de “Imitando os negrinhos, hein?” neste sábado (24)

Neste sábado (24), teremos o lançamento do livro IMITANDO OS NEGRINHOS, HEIN? – UMA HISTÓRIA POPULAR DO SPORT CLUB INTERNACIONAL. De autoria de Fabiano Neme (Condor F.C. – o uso político do futebol nas ditaduras da América Latina), o livro conta a história do Clube do Povo do Rio Grande do Sul pela perspectiva da cultura popular e de arquibancada.

Publicado pela editora De Letra Livros (@deletralivros no Instagram), IMITANDO OS NEGRINHOS, HEIN? inicia com a chegada da família Poppe a Porto Alegre e vai até a reinauguração do Beira-Rio, reformado para a Copa do Mundo de 2014.

Não se trata de um livro de história, mas sim de um livro de histórias. Assim, o leitor terá contato com crônicas que vão desde a uma reconstituição de um dia na vida do torcedor Charuto, passando pelo relato da polêmica entre Bráulio e os mandarins e pelo mítico “Grenal do Daniel Carvalho”.

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Como a infância conturbada de Charles Dickens influenciou sua produção literária

Como a infância conturbada de Charles Dickens influenciou sua produção literária

Por Peter Conrad

Em fevereiro de 1844, Charles Dickens (1812-1870) pôde entender, feliz, que seu filho era um sinal da alegria universal. Anos antes, o mundo parecia mais inclinado a outra coisa. Em 1823, com menos de doze anos e “tão pequeno”, como lamentosamente disse, Charles foi retirado da escola e enviado para trabalhar a fim de ajudar a pagar as dívidas de seu pai.

John Dickens e a esposa, presos por dívidas em Marshalsea até se acertarem com seus credores, deixaram Charles com uma velha rabugenta que alugava quartos para crianças. De segunda-feira de manhã até sábado à noite, ele colava rótulos em garrafas de graxa de sapato em um armazém no Strand (Londres), guardando um pãozinho e um pedaço de queijo no armário da velha para suas refeições. Seu passatempo de domingo era visitar os pais na prisão. Depois de um ano, uma herança permitiu que seu pai pagasse o que devia. Libertado de Marshalsea, ele libertou Charles da fábrica de graxa, embora sua mãe preferisse deixá-lo lá…

Dickens pensava na infância como um inferno que sempre estava sujeito a retornar do passado para prendê-lo.

Envergonhado e profundamente ferido por sua provação, Dickens manteve-a em segredo e só revelou os detalhes em um livro de memórias que confiou a John Forster em 1847. Seu tom neste fragmento de autobiografia é desanimadamente irônico. “É maravilhoso para mim”, escreveu ele, “como pude ter sido tão facilmente rejeitado em tal idade”.

Com o mesmo ressentimento afiado, ele descreveu seu trabalho árduo como uma iniciação profissional, o início de sua “vida empresarial”. Sua tarefa era cobrir os potes com camadas de papel, aparar as bordas e, então, uma vez atingido o “nível de perfeição”, aplicar os rótulos impressos. “Perfeição” era sua piada amarga sobre um padrão estético. Ele declarou que, durante esse período, não recebeu “nenhum conselho, nenhuma orientação, nenhum encorajamento, nenhum consolo, nenhum apoio, de ninguém que eu possa lembrar, que Deus me ajude”.

Quinze anos depois, ele se referiu em uma carta à “miséria inesquecível daqueles tempos antigos” e tentou esquecê-la transferindo-a para “uma certa criança malvestida e mal alimentada” — uma criança abandonada, indigente e anônima que ele talvez tivesse visto na rua, seu Doppelgänger de tamanho reduzido. Invertendo a precedência biológica, Wordsworth sustentou que “a criança é o pai do homem” e esperava nunca perder o espírito infantil de “piedade natural” do qual sua poesia dependia. Dickens parafraseou essa declaração, mas frustrou sua alegre esperança em um relato de um passeio de infância no Household Words, quando descreveu um menino desleixado que então identificou como o “pai extremamente desconfortável e desonroso do meu eu atual”.

Foto de uma parede do Museu Dickens (a casa onde o escritor viveu), de Londres | Foto: Milton Ribeiro

Dickens manteve a visão fresca e vibrante que Charles Baudelaire invejava nas crianças, que “veem tudo como novidade” e parecem “sempre embriagadas”, mas sua euforia era sempre marcada pelo pavor. Em um dos poemas de Wordsworth sobre seus primeiros anos, um menino coloca as mãos em concha sobre a boca e sopra “piadas mímicas para as corujas silenciosas / Para que elas possam lhe responder”; o grito se transforma em gritos de alegria que Wordsworth resume sobriamente como “confluência selvagem / De estrondo alegre!”

Os garotos de Dickens são mais propensos a mendigar ou furtar bolsos do que a brincar pela paisagem em dueto com pássaros, e seu equivalente mais próximo a esses gritos poéticos surge em David Copperfield, quando um imundo negociante de roupas usadas — um “louco bêbado” que dizem ter se vendido ao diabo — apimenta cada uma de suas declarações a David com uma exclamação louca e estende essa explosão áspera a “uma espécie de melodia… como uma rajada de vento”.

Para Wordsworth, a infância era um paraíso perdido no tempo, mas que poderia ser recuperado no espaço, e ele o recuperava em suas perambulações pelas paisagens em que cresceu em Cumberland. Dickens, no entanto, considerava a infância um inferno sempre propenso a retornar do passado para prendê-lo. Na meia-idade, ainda olhava para o outro lado ao passar por Charing Cross, para não ver a rua que descia até o rio onde ficava a fábrica de graxa.

Duas trocas em Dombey e Filho transmitem sua convicção de que sua infância, em vez de ter sido perdida, lhe foi roubada. O Doutor Blimber, diretor da escola onde o desconsolado Paul está matriculado, faz uma pergunta retórica sobre seu aluno doente: “Vamos fazer dele um homem?” Paul responde: “Eu preferiria ser criança”, mas isso não é uma opção. Nem para Edith, que cinicamente se casa com o pai de Paul após a morte de sua primeira esposa. “Quando eu fui criança? Que infância você me deixou?”, ela pergunta à mãe, a coquete esfarrapada Sra. Skewton.

Uma infância alegre como a de Wordsworth era um luxo, como Dickens reconheceu ao escrever duas frases que acabou apagando do manuscrito de A Pequena Dorrit porque a verdade que contavam era cáustica demais: “Os pobres não têm infância. Ela precisa ser comprada e paga.” Na ausência de alguém para pagar, seu conto de Natal O Homem Assombrado e a Barganha do Fantasma nos mostra a criança desacomodada. Um fantasma tutelar aponta para um menino adormecido e o chama de “a última e mais completa ilustração de uma criatura humana, abandonado a uma condição pior que a dos animais, sem alívio de qualquer toque humanizador”. A criança é o fantasma quando jovem e, ao olhar para trás, ecoa o lamento de Dickens em suas memórias. “Nenhum amor abnegado de mãe, nenhum conselho de pai me ajudaram ”, diz ele. Ou seja, ele se compara, como Dickens poderia ter feito, a um pássaro expulso do ninho.

Dickens dota as crianças em seus romances com uma desolada presciência do que as aguarda. O Sr. Chillip, o médico que faz o parto de David Copperfield, mais tarde tem um filho, “um bebezinho franzino, com uma cabeça pesada que não conseguia sustentar e dois olhos fracos e arregalados, com os quais parecia estar sempre se perguntando por que havia nascido”, e em Bleak House, o bebê de Caddy Jellyby é um “pequeno neném de rosto velho”, tristemente pensativo em seu berço. Um dos Espíritos que visita Scrooge transita entre a primeira e a última era do homem. Ele é “uma figura estranha — como uma criança; porém, não tanto como uma criança, mas como um velho, visto por algum meio sobrenatural, que lhe dava a aparência de ter desaparecido de vista e estar reduzido às proporções de uma criança”.

Dickens foi repreendido por não permitir que seus personagens crescessem e mudassem; ele dificilmente conseguia fazer isso, pois via a vida como circular, em vez de evolutiva. Começo e fim se unem para comprimir o meio. A Sra. Skewton, por exemplo, usa um manto de viagem “bordado e trançado como o de um bebê velho”, e o avô da Pequena Nell ingenuamente se torna vítima de jogadores por ser uma “criança de cabelos grisalhos”. A emocionalmente adormecida Sally Brass em The Old Curiosity Shop “passou a vida em uma espécie de infância”; ao longo do caminho, ela consegue gerar uma filha ilegítima, que é igualmente atrofiada — “uma criança antiquada”, ela aparentemente esteve “trabalhando desde o berço”. Uma segunda infância talvez seja mais feliz do que a primeira, já que pelo menos terá um término definitivo.

Em Um Conto de Duas Cidades, Sydney Carton pergunta ao velho banqueiro Lorry se, na velhice, a infância parece distante. Lorry responde, comovente, que quanto mais se aproxima do fim, mais próximo se sente do começo: é “um daqueles gentis aplainamentos e preparativos do caminho”. O sentimento é recorrente em O Mistério de Edwin Drood, onde as lembranças carinhosas da “época da creche” em Cloisterham têm uma segunda volta quando aqueles que cresceram lá chegam às suas “horas da morte”.

Em um ensaio sobre suas frequentes visitas ao necrotério parisiense, Dickens fala da infância como um “período impressionável”. “A observação de uma criança inteligente”, diz ele, é notável por sua “intensidade e precisão”, e — certamente desnecessariamente — ele alerta “alguns que cuidam de crianças” contra levar seus pequenos protegidos em passeios para ver os cadáveres inchados pescados no Sena. Já é ruim o suficiente, acrescenta, mandar crianças para o escuro ou enclausurá-las sozinhas em um quarto como presas do “grande medo”; se você trata uma criança dessa maneira, “é melhor assassiná-la”.

Quando Wordsworth disse em O Prelúdio que “cresceu / Criado tanto pela beleza quanto pelo medo”, ele estava pensando em uma “impressionante disciplina do medo” muito mais branda do que o horror incapacitante experimentado por Pip no cemitério em Grandes Esperanças, quando o condenado Magwitch se ergue atrás das lápides, ou por Oliver Twist quando é levado para visitar Fagin na cela dos condenados. A disciplina de Wordsworth não se estende aos açoites administrados a David Copperfield por seu padrasto Murdstone; na pior das hipóteses, o medo de Wordsworth é sua sensação de reverência de que a natureza o repreende silenciosamente quando ele devasta uma árvore para se banquetear com sua colheita de avelãs.

O relato de Wordsworth sobre sua “época de semeadura” presta homenagem grata à terra verde como “a ama, / A guia, a guardiã do meu coração e alma / De todo o meu ser moral”. Aos seis anos de idade, Dickens tinha um equivalente amoral em sua ama, Mary Weller, que tinha apenas treze anos quando foi contratada para cuidar dele. Ele a homenageava como uma “barda” e pensava que ela devia ser descendente “daqueles terríveis e velhos Skalds”, os Skalds que recitavam poemas sobre heróis nórdicos.

À noite, como ele afirma em The Uncommercial Traveller, ela lhe contava histórias que eram “completamente impossíveis… mas nem por isso menos alarmantemente reais” — sagas sobre um assassino em série aventureiro, ou um construtor naval que faz um pacto diabólico e, como resultado, é forçado a navegar em um navio infestado de ratos, que roem as tábuas e o afundam, afogando todos os tripulantes. A natureza cuidou de Wordsworth “com uma espécie de mente maternal”, mas em vez de acalmar Dickens maternalmente, Mary o enviou para “os cantos escuros para os quais somos forçados a retornar, contra a nossa vontade”. Ele se referia aos cantos mais obscuros de sua mente: o que pode soar como uma punição também era uma iniciação literária.

Caneca vendida no Museu Dickens. Ela se refere a uma frase de Oliver Twist que ainda estava com fome e desejava comer mais. Claro que a comida lhe foi negada. Em resposta, ele recebeu risadas sarcásticas | Foto: Milton Ribeiro

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Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, completa 100 anos hoje

Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, completa 100 anos hoje

Temos o livro na Livraria Bamboletras, claro.

Version 1.0.0

Elaborando a Sra. Dalloway : como Virginia Woolf começou sua obra-prima

Por Mark Hussey, em 14 de maio de 2025 (na Literary Hub)

Virginia Woolf era desorganizada. Seus rascunhos remanescentes costumam estar manchados de cinza de cigarro ou de pegadas de cachorro. As grandes mesas de madeira que ela preferia em seus escritórios estavam cobertas de manuscritos, tinteiros, cinzeiros transbordando e os cadernos que ela mesma fazia, contornando cada página com um lápis azul grosso. Ela não escrevia à mesa, porém, sentava-se todas as manhãs em uma poltrona baixa, com uma tábua na qual colava um tinteiro equilibrada sobre os joelhos para apoiar o caderno no qual escrevia seus rascunhos. Ela acompanhava seu progresso, datando o trabalho do dia, às vezes somando quantas palavras havia escrito e anotando onde estava quando rascunhou um trecho específico.

À tarde, ela digitava na máquina de escrever o que havia escrito, revisando-o à mão e, em seguida, redigitando as páginas até que estivessem prontas para serem enviadas a um datilógrafo profissional e, em seguida, à gráfica. Ela também continuava revisando a fase de provas — uma vantagem de ser sua própria editora.

A vida de Leonard e Virginia Woolf tinha um ritmo definido pelo trabalho e pelas viagens entre suas casas em Londres e sua casa de campo. A Sra. Dalloway foi escrita em três lugares: Monk’s House, na vila de Rodmell, em Sussex; Hogarth House, na Paradise Road, em Richmond; e Tavistock Square, 52, em Bloomsbury (Londres). Anos antes de ela ou sua irmã encontrarem as casas em Sussex onde se estabeleceriam, Virginia imaginou para Vanessa um refúgio no campo com “uma pequena casa de campo entre as árvores, no fundo do jardim”.

Naquela casa de sonho, Virginia esperava ter um quarto com uma mesa, livros, um espelho e “um armário curioso, cheio de pequenas gavetas”, onde os filhos de sua irmã procurariam segredos. Woolf nunca teve um quarto na casa de sua irmã, mas no verão de 1921, ela ficou emocionada ao relatar que ela e Leonard estavam convertendo um galpão de ferramentas na Casa de Monk em um quarto de jardim. Teria grandes janelas através das quais ela poderia ver os prados de South Downs até o Monte Caburn.

Naquele quarto de jardim na Monk’s House, em agosto de 1922, Woolf anotou em seu diário alguns planos para o trabalho que desejava realizar naquele verão antes de retornar a Richmond no outono. Ela e Leonard voltaram para Londres de trem de Lewes em 5 de outubro. No dia seguinte, ela abriu uma nova página em um dos cadernos em que havia rascunhado seu terceiro romance, “O Quarto de Jacob” , para registrar algumas ideias sobre “um livro que talvez se chamasse ‘Em Casa’ ou ‘A Festa’. “O Quarto de Jacob” estava prestes a ser publicado, mas a mente de Woolf estava cheia de ideias para seu próximo romance. Ela pretendia que fosse um livro curto que terminasse com uma festa. O primeiro capítulo se basearia em uma história que ela acabara de escrever, “A Sra. Dalloway em Bond Street”. Isso, ela pensou, poderia ser seguido por outra história em que ela estava trabalhando, intitulada “O Primeiro-Ministro”.

Mas se os escritores modernistas nos ensinaram alguma coisa, é que nossa experiência do tempo raramente é linear, que sob a superfície de cada momento presente as correntes da memória correm profundamente. A própria Woolf escreveu que a vida “não é uma série de lâmpadas, dispostas simetricamente”, mas sim como “um halo luminoso… que nos envolve do início da consciência ao fim”. Portanto, embora aquele esboço em seu caderno represente Woolf começando a planejar seu próximo romance, reunindo ideias que vinham fermentando há algum tempo, não seria preciso vê-lo como “o” início de Mrs. Dalloway.

Podemos identificar muitas fontes para o mundo criado por Woolf em seu quarto romance, mas nenhuma inspiração original específica. Os personagens que povoam Londres em um dia de junho de 1923, dia em que Clarissa Dalloway dá uma festa e Septimus Warren Smith tira a própria vida, emergiram da imaginação da autora, moldada por suas memórias de crescer em Kensington, de viver a Primeira Guerra Mundial, de seus próprios colapsos mentais e até mesmo, como Clarissa diz no romance, de “pessoas com quem ela nunca havia falado, alguma mulher na rua, algum homem atrás de um balcão — até mesmo árvores ou celeiros”.

Na época em que a Sra. Dalloway começava a tomar forma, Virginia Woolf só recentemente começara a se sentir confiante como escritora, apesar de já praticar seu ofício por duas décadas. Quando Leonard leu o texto datilografado de O Quarto de Jacob em um dia de verão de 1922, ele disse a ela que era “uma obra de gênio”. Ela escreveu em seu diário que finalmente havia descoberto “como começar (aos 40) a dizer algo com minha própria voz”. Depois de “O Quarto de Jacob”, ela sentiu que poderia continuar como escritora sem precisar de elogios. Ela estava animada com o desafio de desenvolver o tipo de ficção experimental curta que vinha escrevendo desde 1917 na forma mais longa de um romance. “O Quarto de Jacob” mostrou a ela como ela poderia fazer isso.

Quando concebeu O Quarto de Jacob pela primeira vez , em 1920, Woolf era autora de dois romances mais ou menos convencionais (embora o aparente enredo de casamento do primeiro, “The Voyage Out”, seja descarrilado pela morte prematura de sua heroína), dezenas de ensaios e resenhas, e também cofundadora da Hogarth Press. Ela e Leonard lançaram sua editora com um panfleto contendo uma história de cada um deles, “A Marca na Parede”, de Virginia, e “Três Judeus”, de Leonard.

Ao começar a pensar na obra que se tornaria “O Quarto de Jacob”, Woolf também estava relendo seus dois primeiros romances, pois uma editora americana havia acabado de concordar em publicá-los nos Estados Unidos (ambos haviam sido publicados na Grã-Bretanha pela Duckworth, a empresa fundada por seu meio-irmão Gerald). Ela pediu a amigos que a avisassem, antes de enviar os livros para a América, se tivessem notado algum erro de digitação. Lytton Strachey a encantou ao dizer que, ao reler “The Voyage Out”, achou-o “extremamente bom”. Ele gostou particularmente da “sátira dos Dalloway” dela.

Clarissa Dalloway, a personagem mais famosa de Woolf, faz uma breve mas significativa aparição em “The Voyage Out”, uma figura glamorosa pegando carona com seu marido político, Richard, em um navio mercante com destino à América do Sul. Woolf disse a Vanessa Bell que Clarissa foi baseada em uma amiga de juventude, Kitty Maxse (nascida Lushington). Ela se lembrou em um livro de memórias de como a mesa de chá na casa alta de seus pais no número 22 do Hyde Park Gate havia sido “fertilizada por um fluxo arrebatador de beleza feminina” cujo “modelo de sagacidade, graça, charme e distinção era, sem dúvida, a adorável Kitty Lushington”. Kitty foi uma das que desaprovaram a mudança dos jovens irmãos Stephen para Bloomsbury em 1904, após a morte de seu pai, o eminente homem de letras do final da era vitoriana, Sir Leslie Stephen. Por meio de boatos, Woolf ouviu que Kitty não gostava de seu segundo romance, “Noite e Dia” — algo que Leonard ironicamente achou um grande elogio.

Diário de 6 de outubro de 1922:

Reflexões sobre o início de um livro que talvez se chamará “Em Casa” ou “A Festa”: Este será um livro curto, composto por seis ou sete capítulos, cada um completo separadamente, mas deve haver algum tipo de fusão. E todos devem convergir para a festa no final. Minha ideia é ter alguns personagens muito [ ], como a Sra. Dalloway em grande relevo: depois, ter interlúdios de pensamento, reflexão ou pequenas digressões (que devem estar relacionadas, logicamente, ao resto), todos compactos, mas não espasmódicos.

Os capítulos podem ser,

1. Sra . Dalloway na Bond Street.
2. O Primeiro Ministro.
3. Antepassados.
4. Um diálogo.
5. As velhinhas.
6. Casa de campo?
7. Flores cortadas.
8. A festa.

Um, mais ou menos, para ser feito em um mês: mas este plano é permitir algumas páginas bem curtas : intervalos, não capítulos inteiros. Deve ser divertido —

E é.

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Anna Kariênina x Guerra e Paz

É uma discussão bem comum. Li ambos e, se Guerra e Paz é um oceano (imenso, cheio de correntes e vida), Anna Kariênina é um abismo (profundo, íntimo e vertiginoso). Eu escolho o abismo e não estou sozinho: tem muita gente boa que leu GP e se atira no abismo. Em AK, Tolstói tem uma precisão que Guerra e Paz, pela própria natureza épica, não exigia. Dezenas de personagens… Prefiro até o mais focado A Cartuxa de Parma. Sabiam que Tolstói podia dizer de cor a cena da batalha napoleônica que Stendhal descreveu na Cartuxa com o Fabrizio del Dongo totalmente perdido? No AK, cada capítulo avança como um movimento de sinfonia — nada está fora do lugar. Tb em AK, Tolstói constrói personagens de enorme profundidade. A desintegração emocional de Anna, sua obsessão, seus ciúmes e desespero são retratados com uma crueza que dói. Mas é claro que compreendo quem prefere GP. É uma questão de gosto. Não sou amante dos painéis, prefiro os microscópios.

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Sobre o Capítulo XXIII de Daniel Deronda

Sobre o Capítulo XXIII de Daniel Deronda

Ontem, lemos um capítulo absolutamente arrebatador de “Daniel Deronda” (1876). Trata-se da cena (Cap. XXIII) em que Herr Klesmer desencoraja Gwendolen a seguir uma carreira artística. É um momento especialmente incômodo, revelando muito sobre os temas da ilusão da emancipação feminina na obra de George Eliot (não esqueçam que Eliot era uma mulher).

Gwendolen, uma jovem bonita, orgulhosa e na pindaíba, considera se tornar uma cantora ou atriz profissional para manter seu status e independência. Ela acredita que seu talento amador e beleza sejam suficientes para o sucesso. No entanto, Klesmer, um pianista e compositor rigoroso (talvez inspirado em Liszt), desmonta suas expectativas com uma crítica honesta, fria e implacável.

Ele diz que o talento de Gwendolen é medíocre e que o mundo artístico exige disciplina e sacrifício — algo que ela não possui. Ele diz que fazer sucesso entre amigos e parentes provincianos é uma coisa, outra coisa é o mundo e suas disputas. Ele sugere que a sociedade não respeita as mulheres de talento medíocre, associando-as ao sexo fácil. Ainda mais quando são bonitas.

E volta aos méritos inexistentes da bela moça: você já tem 21 anos, deveria ter começado a estudar disciplinadamente há mais de sete anos. Está tarde.

Gwendolen fica humilhada, pois percebe claramente que a imagem que tinha de si era uma fantasia. Este banho de realidade fará com que ela arranje um casamento rico ligeirinho, aposto.

Mas George Eliot é genial e deixa um subtexto social: o da frivolidade da educação feminina da época, que preparava mulheres para serem “ornamentos” da sociedade, jamais para profissões sérias. Mesmo que Gwendolen quisesse independência, as opções para mulheres sem talento excepcional eram poucas — muitas vezes, apenas o casamento ou a pobreza.

Eliot, que vivia como escritora profissional, pode estar destacando parte do que viveu. Gwendolen, sem talento, sem opões, certamente acabará presa em um casamento. Já Eliot sempre foi a outra, a amante. Só casou bem mais velha, com um jovem, quando o primeiro morreu.

Voltemos. A intervenção de Klesmer não é apenas sobre arte — é sobre a dura verdade de que nem todos podem escapar de suas circunstâncias apenas pela vontade. Gwendolen, ao contrário de heroínas como Jane Eyre, não tem um talento salvador, e sua tragédia reside nessa limitação.

P.S. — O que faz Romola Garai ornamentando o post? Ora, ela atuou como Gwendolen numa série da BBC.

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Daniel Deronda 1

Daniel Deronda 1

Quando a Elena esteve no hospital, adquirimos o hábito de eu ler livros em voz alta para ela. Claro, agora ela pode lê-los sozinha — aliás, mesmo no hospital ela podia ler, tanto que lia Nabôkov no original “para não perder a inteligência” –, mas ela diz que é fácil se acostumar com o que é bom. Chega a dizer que gosta da minha voz, o que julgo ser totalmente impossível.

Mas o que interessa é que estou lendo o maior de nossos calhamaços até hoje: trata-se de “Daniel Deronda”, de George Eliot e 700 páginas. DD não é um “Middlemarch”, mas é ótimo e cheio de detalhes inusitados para um romance vitoriano.

Quando do primeiro encontro de um casal, ela coloca as falas de cada um e, entre parênteses, o que um está pensando e observando no outro. É um trecho onde brilha o enorme virtuosismo da autora. Disse Marcelo Coelho que George Eliot não é uma artista que nos faça ver o mundo segundo uma perspectiva original, como Kafka fazia, mas, como Tolstói, é uma artista que nos faz ver o mundo de acordo com nossos próprios olhos. Só que “nossos próprios olhos” parecem ganhar lentes de aumento; e em toda a literatura ocidental poucas lentes são tão claras, tão penetrantes, como as que George Eliot nos oferece.

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Uma lista sensacional de melhores romances ingleses

Uma lista sensacional de melhores romances ingleses

Eu sempre tive um caso de amor com os ingleses. Não pensem que eu ignoro o que fez o Império Britânico ou as posições recentes sistematicamente ao lado dos EUA. Não pensem que eu gostava de Thatcher, por exemplo. Na verdade, eu amo três coisas: a literatura inglesa, a cidade de Londres e seus habitantes.

Não sei se um dia voltarei à cidade da qual gosto tanto, mas vou tentar.

Agora, quando cheguei em casa após o Concerto da Ospa, soube que a BBC fizera uma pesquisa com scholars e críticos ingleses para votar nos melhores romances ingleses. Eu disse ingleses, então Joyce, Beckett e outros estão de fora. Também só tem romances na lista. Li os critérios e achei que, opa, esta lista será das boas.

Eram 100 romances e eu fiquei moralmente muito feliz com a lista. Disse aqui em casa que os três primeiros seriam x, y e z, e errei só o terceiro lugar, que apareceu em quarto. Disse que a lista estaria cheia de mulheres e está. Elas têm o “trio vencedor”. Me perguntaram: quantas estarão dentre os dez melhores livros? Respondi que cinco: George Eliot, Virginia Woolf, Charlotte e Emily Brontë e mais Jane Austen. Acertei o número, mas errei uma: Austen ficou fora do top 10, mas em seu lugar entrou Mary Shelley.

E, para meu pasmo, eu li TODOS os 25 primeiros colocados. Ou seja, minha anglofilia literária tem melhor foco do que meus óculos, atualmente.

É meio bobo ficar feliz com isso, mas eu fiquei, sabe?

100. The Code of the Woosters (PG Wodehouse, 1938)
99. There but for the (Ali Smith, 2011)
98. Under the Volcano (Malcolm Lowry,1947)
97. The Chronicles of Narnia (CS Lewis, 1949-1954)
96. Memoirs of a Survivor (Doris Lessing, 1974)
95. The Buddha of Suburbia (Hanif Kureishi, 1990)
94. The Private Memoirs and Confessions of a Justified Sinner (James Hogg, 1824)
93. Lord of the Flies (William Golding, 1954)
92. Cold Comfort Farm (Stella Gibbons, 1932)
91. The Forsyte Saga (John Galsworthy, 1922)
90. The Woman in White (Wilkie Collins, 1859)
89. The Horse’s Mouth (Joyce Cary, 1944)
88. The Death of the Heart (Elizabeth Bowen, 1938)
87. The Old Wives’ Tale (Arnold Bennett,1908)
86. A Legacy (Sybille Bedford, 1956)
85. Regeneration Trilogy (Pat Barker, 1991-1995)
84. Scoop (Evelyn Waugh, 1938)
83. Barchester Towers (Anthony Trollope, 1857)
82. The Patrick Melrose Novels (Edward St Aubyn, 1992-2012)
81. The Jewel in the Crown (Paul Scott, 1966)
80. Excellent Women (Barbara Pym, 1952)
79. His Dark Materials (Philip Pullman, 1995-2000)
78. A House for Mr Biswas (VS Naipaul, 1961)
77. Of Human Bondage (W Somerset Maugham, 1915)
76. Small Island (Andrea Levy, 2004)
75. Women in Love (DH Lawrence, 1920)
74. The Mayor of Casterbridge (Thomas Hardy, 1886)
73. The Blue Flower (Penelope Fitzgerald, 1995)
72. The Heart of the Matter (Graham Greene, 1948)
71. Old Filth (Jane Gardam, 2004)
70. Daniel Deronda (George Eliot, 1876)
69. Nostromo (Joseph Conrad, 1904)
68. A Clockwork Orange (Anthony Burgess, 1962)
67. Crash (JG Ballard 1973)
66. Sense and Sensibility (Jane Austen, 1811)
65. Orlando (Virginia Woolf, 1928)
64. The Way We Live Now (Anthony Trollope, 1875)
63. The Prime of Miss Jean Brodie (Muriel Spark, 1961)
62. Animal Farm (George Orwell, 1945)
61. The Sea, The Sea (Iris Murdoch, 1978)
60. Sons and Lovers (DH Lawrence, 1913)
59. The Line of Beauty (Alan Hollinghurst, 2004)
58. Loving (Henry Green, 1945)
57. Parade’s End (Ford Madox Ford, 1924-1928)
56. Oranges Are Not the Only Fruit (Jeanette Winterson, 1985)
55. Gulliver’s Travels (Jonathan Swift, 1726)
54. NW (Zadie Smith, 2012)
53. Wide Sargasso Sea (Jean Rhys, 1966)
52. New Grub Street (George Gissing, 1891)
51. Tess of the d’Urbervilles (Thomas Hardy, 1891)
50. A Passage to India (EM Forster, 1924)
49. Possession (AS Byatt, 1990)
48. Lucky Jim (Kingsley Amis, 1954)
47. The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman (Laurence Sterne, 1759)
46. Midnight’s Children (Salman Rushdie, 1981)
45. The Little Stranger (Sarah Waters, 2009)
44. Wolf Hall (Hilary Mantel, 2009)
43. The Swimming Pool Library (Alan Hollinghurst, 1988)
42. Brighton Rock (Graham Greene, 1938)
41. Dombey and Son (Charles Dickens, 1848)
40. Alice’s Adventures in Wonderland (Lewis Carroll, 1865)
39. The Sense of an Ending (Julian Barnes, 2011)
38. The Passion (Jeanette Winterson, 1987)
37. Decline and Fall (Evelyn Waugh, 1928)
36. A Dance to the Music of Time (Anthony Powell, 1951-1975)
35. Remainder (Tom McCarthy, 2005)
34. Never Let Me Go (Kazuo Ishiguro, 2005)
33. The Wind in the Willows (Kenneth Grahame, 1908)
32. A Room with a View (EM Forster, 1908)
31. The End of the Affair (Graham Greene, 1951)
30. Moll Flanders (Daniel Defoe, 1722)
29. Brick Lane (Monica Ali, 2003)
28. Villette (Charlotte Brontë, 1853)
27. Robinson Crusoe (Daniel Defoe, 1719)
26. The Lord of the Rings (JRR Tolkien, 1954)
25. White Teeth (Zadie Smith, 2000)
24. The Golden Notebook (Doris Lessing, 1962)
23. Jude the Obscure (Thomas Hardy, 1895)
22. The History of Tom Jones, a Foundling (Henry Fielding, 1749)
21. Heart of Darkness (Joseph Conrad, 1899)
20. Persuasion (Jane Austen, 1817)
19. Emma (Jane Austen, 1815)
18. Remains of the Day (Kazuo Ishiguro, 1989)
17. Howards End (EM Forster, 1910)
16. The Waves (Virginia Woolf, 1931)
15. Atonement (Ian McEwan, 2001)
14. Clarissa (Samuel Richardson,1748)
13. The Good Soldier (Ford Madox Ford, 1915)
12. Nineteen Eighty-Four (George Orwell, 1949)
11. Pride and Prejudice (Jane Austen, 1813)
10. Vanity Fair (William Makepeace Thackeray, 1848)
9. Frankenstein (Mary Shelley, 1818)
8. David Copperfield (Charles Dickens, 1850)
7. Wuthering Heights (Emily Brontë, 1847)
6. Bleak House (Charles Dickens, 1853)
5. Jane Eyre (Charlotte Brontë, 1847)
4. Great Expectations (Charles Dickens, 1861)
3. Mrs. Dalloway (Virginia Woolf, 1925)
2. To the Lighthouse (Virginia Woolf, 1927)
1. Middlemarch (George Eliot, 1874)

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Morreu Vargas Llosa (1936-2025)

Morreu Vargas Llosa (1936-2025)

Morreu Vargas Llosa, um grande autor que alterou seu posicionamento político até o ponto de ser detestado por muitos, inclusive eu. Mas seu “Conversa no Catedral” (*) foi um marco para este humilde leitor. Foi a primeira e arrebatadora demonstração de virtuosismo literário que amei. Gostei muito de outros livros também, como “A Guerra do Fim do Mundo”, “Travessuras da Menina Má” e “A Orgia Perpétua”, sobre Flaubert.

(*) Catedral é um bar.

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Virginia

Hoje acordei com a memória insuportavelmente presente, fazer o quê?

Há exatos 84 anos, num 28 de março, Virginia Woolf, com 59 anos, tirou a própria vida ao entrar no Rio Ouse com pedras nos bolsos porque, tendo sofrido de crises recorrentes de doença mental ao longo da vida, a depressão que a atormentava intermitentemente estava retornando e ela não conseguia mais escrever.

É uma figura fundamental da literatura de seu e de nosso tempo. Seu trabalho sobrevive como uma contribuição significativa para nossa compreensão do início do século XX e como uma grande influência sobre escritores, especialmente mulheres, até hoje.

No primeiro comentário, deixo um link de um vídeo sobre sua vida e obra. Ele ajuda a entender a importância de Woolf e dá uma visão simples, mas informativa, do mundo literário de seu tempo.

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Pequenas coisas como estas, de Claire Keegan

Pequenas coisas como estas, de Claire Keegan

Este é um livro curioso. Parece leve, parece que não chegará a lugar nenhum, mas é poderoso, muito poderoso. Pequenas coisas como estas foi finalista do Booker em 2022 e figurou na célebre lista dos 100 melhores livros do século XX publicada pelo New York Times. A autora Claire Keegan é irlandesa e, como tantos de seu país, tem uma escrita cheia de beleza e suavidade.

O romance é centrado no personagem Bill Furlong. O ano é 1985. Furlong é um pequeno empresário que vende carvão e madeira, mas que não gosta de ficar no escritório, prefere trabalhar num caminhão caindo aos pedaços, fazendo as entregas. É pai de 5 filhas e casado com Eileen. Todos vão à igreja aos domingos. Na superfície de tudo isso, Bill parece estar contente com sua vida e destino. No entanto, conforme Keegan vai desenvolvendo a história, aprendemos que as coisas não são bem assim.

Na cidade há uma Lavanderia de Madalena — também chamadas de Asilos de Madalena –, instituições comuns na Irlanda no século XX. O que eram? Eram essencialmente casas de trabalho para mulheres, especialmente para mulheres jovens e adolescentes que engravidavam fora do casamento. As Lavanderias eram administradas pela Igreja Católica e as famílias lá deixavam suas mulheres para que pudessem esconder suas gestações da sociedade. Uma vez que a criança nascia, ela era frequentemente retirada à força da mãe e posta para adoção. (Após investigações realizadas antes da desativação dessas casas, houve a certeza de que muitas das crianças nascidas nessas lavanderias eram simplesmente mortas). Embora as Lavanderias de Magdalena fossem particularmente severas na Irlanda, estabelecimentos semelhantes existiam em todo o mundo. Como revela o nome, essas casas prestavam serviços de lavanderia para os locais onde estavam implantadas.

Certo dia, quando Bill deixa lenha e carvão na igreja local, ao lado da lavanderia, ele encontra uma adolescente trancada no galpão de carvão. Ela está coberta de sujeira, passa frio e está aterrorizada. Ele a leva para dentro e as freiras recebem a garota e abafam tudo, agindo estranhamente. Tudo o que Bill consegue arrancar da garota é que seu nome é Sarah — o mesmo de sua mãe.

A mãe de Bill, Sarah, era adolescente quando engravidou de Bill. A família Wilson a acolheu e a deixou trabalhar como empregada da casa pagando-lhe uma pequena quantia, além de quarto e alimentação. Todos dizem a Bill que ele deveria ser grato pela gentileza da família Wilson — especialmente quando a alternativa poderia ter sido uma Lavanderia Madalena para sua mãe. No entanto, Bill parece meio cansado de ser grato. Sua frustração parece palpável ​​ao longo do romance.

Enquanto ele constrói uma vida respeitável para si com sua esposa e filhos, a mãe adolescente de Bill é algo de que ele não consegue escapar. De muitas maneiras, ela parece seguir Bill por toda a sua vida e todos, incluindo sua esposa, usam a gravidez adolescente de sua mãe como uma resposta para qualquer momento em que Bill diga algo fora da linha da calma e da paz.

Quando ele vê Sarah no galpão de carvão, aquilo torna-se um fato importante para ele. Não havia serenidade naquele homem tão cordato, mas há paz no romance de Keegan até o final. Aliás, o final é uma joia de tão bem realizado.

Claire Keegan é uma mestra. Ela equilibra tristeza, delicadeza e perplexidade de uma forma extremamente bela. Os ressentimentos de Bill saem das páginas e parecem vivos, pulsantes. Porém, embora o assunto tenso e doloroso, ele alguma forma não é pesado.

Uma frase ecoa em nossa cabeça após a leitura. Ela aparece quando Furlong, meio perdido após suas entregas, pergunta a um homem na beira da estrada onde vai dar aquela estrada:

— Esta estrada vai dar onde você quiser, filho.

Um tremendo pequeno romance.

.oOo.

Obs.: há um filme homônimo baseado no livro. Bill Furlong é vivido por Cillian Murphy, porém o filme é bem ruinzinho.

Claire Keegan (1968-)

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Homo Faber, de Max Frisch

Homo Faber, de Max Frisch

Homo Faber é um romance do suíço Max Frisch (1911-1991) publicado pela primeira vez na Alemanha em agosto de 1957 — o melhor mês do melhor ano. É narrado em primeiríssima pessoa pelo protagonista Walter Faber, um engenheiro brilhante que viaja a trabalho pela Europa e pelas Américas. Mais ou menos como o Ricardo Branco era e fazia. Sua visão de mundo — lógica, probabilística e científica — é desafiada por uma série de coincidências incríveis, fazendo com que o passado ressurja. (Você, que está na minha TL e portanto é inteligente, já sentiu a jogadinha entre Homo Faber e Homo Sapiens, né? Se não se deu conta, fora daqui!)

O livro foi editado pela Guanabara em 1986 e relido por mim agora em voz alta para a Elena. É ótimo. Minha cara-metade também aprovou e queria que eu lesse mais a cada noite. Gostei muito das duas vezes que o li, apesar de algumas reflexões antiquadas.

É uma obra importante e curiosa, pois se fala de um tema bem comum — o de nossa fragilidade — também fala de outro mais incomum — da ilusão do controle que temos sobre nossas vidas. É um livro de uma introspecção também pouco usual: a de um engenheiro. Faber é um homem de meia-idade, especializado em engenharia mecânica, que acredita piamente na lógica, na ciência e no controle técnico sobre a vida. Ele viaja constantemente a trabalho, vivendo uma existência organizada e aparentemente imune ao caos emocional. No entanto, durante uma viagem de negócios tudo começa a se descontrolar, como não aconteceu com o Ricardo Branco.

A narrativa se desenrola em duas partes: na primeira, Faber viaja para a América Central e se envolve em um acidente de avião. Na segunda parte, numa viagem de navio, Faber encontra Sabeth, embarcando numa relação cujo caráter é melhor deixarmos de lado.

Faber representaria o homem moderno, que confia na tecnologia e na razão. No entanto, o acaso o força a se desequilibrar de sua posição. Pode-se dizer que Sabeth é filha de uma ex-namorada sua e acaba por expor sua fragilidade emocional e incapacidade de lidar com complexidades “das humanas”. Frisch critica a crença de que a ciência e a técnica podem resolver todos os problemas humanos, mostrando que a vida é cheia de ambiguidades e incertezas.

Max Frisch foi um arquiteto e escritor influenciado pelo existencialismo e por Brecht. O final do livro é de grande categoria, Frisch sabia mesmo como deixar a gente pensando.

Tradução de Herbert Caro.

Max Frisch

 

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