Amandine Beyer: “Tentamos descobrir onde Bach escondeu as suas surpresas”

Amandine Beyer: “Tentamos descobrir onde Bach escondeu as suas surpresas”

A Sala de Câmara do Auditório Nacional de Música da Madrid acolherá no dia 18 de novembro um concerto extraordinário no âmbito da temporada musical da Fundação Scherzo: trata-se do concerto beneficente Non sei solo in memoriam Javier Rodríguez-Miñón Falero, cuja receita irá para o National Organização de Transplantes e bolsas de estudo para jovens artistas. O programa é composto por cinco concertos de Johann Sebastian Bach para diferentes solistas, em versões da violinista francesa Amandine Beyer e do seu grupo Gli Incogniti, principais intérpretes do repertório barroco.

Entrevista concedida à revista Scherzo
Tradução de Milton Ribeiro, auxiliado pelo Juraci

O que a música de Bach representa para você?

Tenho uma relação muito longa com este compositor. Pela minha parte, tenho imensa admiração, fascínio e renovado espanto pela sua forma de captar em notas a sua visão do universo. Mas também muito respeito, porque compôs as Sonatas e Partitas para violino solo: peças tão complexas com as quais passei tantas horas da minha vida que já não sei o que pensar delas!

Felizmente, Bach também escreveu muitas outras coisas que envolvem o violino, e elas são muito mais acessíveis. Como por exemplo as que incluímos no programa Non sei solo . Este título brinca com o subtítulo que o próprio Bach deu às sonatas e partitas, Sei solo, o que por si só é um mistério (ele queria dizer “seis solos” mas se enganou, porque em italiano seria sei soli, ou ele queria dizer você está sozinho, o que parece um pouco desafiador?).

Como você concebeu o programa Non sei solo?

Este é o segundo volume de uma trilogia de programas onde apresentamos praticamente a totalidade dos concertos compostos por Bach em Köthen. O primeiro teve a presença de flautas e oboés, este segundo limitamos às cordas e o terceiro será repleto de fogos de artifício com os metais e outros sopros. Foi um período extraordinariamente criativo para o compositor, onde pôde contar com uma pequena orquestra de virtuosos a seu serviço, e onde, apesar das vicissitudes da sua vida, “nunca esteve sozinho ” .

O programa bachiano que apresenta em Madrid inclui o Concerto BWV 1064R , que funciona maravilhosamente na reconstrução para três violinos solo. Você pode nos contar sobre ela?

Com muito prazer! É um imenso privilégio poder tocar esta música em Madrid em breve. É uma peça que acabamos de adicionar ao nosso repertório. Apesar de já termos várias reconstruções disponíveis, decidimos fazer a nossa própria “receita” e voltar à partitura de Bach e ver como poderia funcionar para nós. E adoro o processo, porque este concerto, quando tocado na versão para três violinos, ganha uma dimensão completamente diferente. Já tinha feito este trabalho na versão para violino do Concerto em Ré menor para cravo , e tinha sido uma experiência enriquecedora. Obviamente, existem padrões de solo que são pensados ​​para teclado e que devem ser “traduzidos” para o violino, mas também tentando combinar o estilo do compositor e o gosto do intérprete, então, por exemplo, transformei meus solos um pouco a meu gosto e deixei os outros dois solistas, Yoko Kawakubo e Vadym Makarenko, livres para adaptar suas partes aos seus gostos e necessidades. Também fizemos algumas pequenas alterações no acompanhamento orquestral que, na minha opinião, produzem uma textura muito mais italiana. Em tutti, ainda estamos experimentando a oitava adequada e é um trabalho muito divertido. Parece que, afinal, há mais liberdade do que às vezes pensamos…

Em muitos concertos de Bach é evidente a influência italiana, o espírito de Vivaldi, que o compositor combina com uma densidade orquestral mais “alemã”, como no Concerto de Brandemburgo Nº 3 . Na sua abordagem a estas peças, que componente gosta de destacar?

Acho que gostaria de destacar o que acho que Bach gostava na música italiana (ele e todos nós!): a vitalidade, o frescor, a leveza da complexidade e a ludicidade. Existe também esse culto ao violino virtuoso que gera cordas muito enérgicas… sem falar na luz totalmente sulista!

A sua abordagem da música de Vivaldi e da música de Bach é muito diferente?

É difícil dizer como abordo um repertório, um compositor. Há muito carinho, carinho, respeito, humildade, vontade, vontade de fazer bem, em todos os casos. Mas é como amizade. É uma questão de dois! e também depende do momento… Para mim a música do Vivaldi é mais imediatamente acessível, porque ele era violinista. E o de Bach tem que passar por outro filtro, porque sempre sai a veia harmônica do tecladista. Ter sempre um órgão em mente não é o mesmo que pensar nas possibilidades (também infinitas, mas de uma forma diferente) de um violino… Com Vivaldi tudo parece imediato: o lirismo, a genialidade, a surpresa… Em Bach , tudo isso é muito mais elaborado, mas no fundo tudo está lá e deve ser destacado. Às vezes, como a própria música de Bach é excepcionalmente rica, parece que apenas tocar as notas seria suficiente e que uma versão puramente “informatizada” (sem intervenção humana) seria suficiente para mostrar a genialidade por trás dela. Obviamente este não é o nosso caminho. Tentamos descobrir onde Bach escondeu as suas surpresas num complexo tecido contrapontístico, onde está aquela harmonia que nos acaricia cada vez que a alcançamos, e onde a aparente simetria e ordem são interrompidas muito ligeiramente para mostrar uma direção inesperada. E uma vez encontrados, pretendemos transmiti-los ao público para que possam experimentar o mesmo prazer que nos proporcionam.

Você pode nos contar algo sobre os solistas que atuam ao seu lado neste concerto?

No Gli Incogniti tenho a sorte de compartilhar a vida musical e os palcos com pessoas especiais. Tocamos muito juntos em partes iguais, ou acompanhando um ao outro, ocasionalmente em tutti, ocasionalmente solo, e adoro essa flexibilidade. A todo momento surge a amizade, e isso é o mais importante para mim. Além disso, fico hipnotizada cada vez que Anna Fontana deixa as harmonias de seu fantástico continuo para exibir seu solo no imenso Concerto para cravo em Fá menor, quando Marco Ceccato assume a liderança com seu violoncelo para Haydn ou Vivaldi ou o que posso dizer? Tenho também as notáveis Alba Roca e Marta Páramo. Já mencionei Yoko e Vadym, mas há também Ottavia Rausa e Baldomero Barciela, sem esquecer Francesco Galligioni e Dmitri Kindynis, nossos convidados especiais em duplo papel de violoncelo/viola da gamba… Todo um grupo de pessoas deliciosas e talentosas com quem me relacionei. ter a sorte de viajar, rir (às vezes de excitação, às vezes de frustração ou cansaço), comer e ensaiar, porque um grupo não é só concerto. São acima de tudo pessoas que se unem pelo amor de divulgar músicas maravilhosas.

Você planeja gravar este programa? O que mais você planeja trazer para o álbum em breve?

Bom, não é exatamente o mesmo programa, mas em janeiro próximo gravaremos um álbum com quase todas as obras desta noite e algumas de outros compositores (Vivaldi, Marcello) que serviram de modelo para Bach, vamos colocá-los um na frente do outro. Eles permitem que você ouça essa música sob uma luz diferente. E é claro que também temos em mente um novo projeto de Vivaldi que achamos que poderia ser divertidamente “polêmico”.

Em entrevista ao nosso saudoso Eduardo Torrico realizada em fevereiro do ano passado, você afirmou que com Gli Incogniti gostaria de fazer música clássica (CPE Bach, Haydn…) com uma equipe maior. Você está trabalhando nisso ou ainda é um objetivo distante?

Embora não o conhecesse muito bem, as conversas com o Eduardo foram sempre muito enriquecedoras e lamento muito a sua perda. Quanto ao repertório clássico, estamos fazendo aos poucos. Não é tão fácil movimentar uma orquestra grande, mas estou muito animada com isso. Já apresentamos um programa completo de sinfonias de Carl Philipp Emanuel Bach, como fizemos no Festival Torroella de Montgrí neste verão, ou uma mistura de Haydn, e CPE Bach em Brühl (na Alemanha), também no verão passado. Fiquei muito feliz.

Stefano Russomanno

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Violino

Violino

Um dos melhores dias da minha vida ocorreu em 2017, próximo do meu aniversário de 60 anos. Eu e a Elena tínhamos ido para um hotel no interior a final de descansar. Ela levou o violino. Nós já conhecíamos a cidade da Salvador do Sul e ela me dissera que uma igrejinha de lá possuía uma acústica incrível.

Ela pegou seu violino e fomos. Pedimos permissão e entramos na igreja — quase uma capela — vazia. Ela abriu o estojo do violino e pediu que eu fosse ouvi-la do balcão, lá em cima.

E começou a tocar a Chaconne de Bach. É uma obra lindíssina, dificílima e longa, de uns 15 min. Pensei que ela tocaria apenas o início… Afinal, não devia saber de cor. Mas ela não parava e a interpretação era realmente muito boa. Pensava que a Elena não se apresentava em grupos que não a Ospa por não gostar de panelinhas…. De repente, me veio a certeza: aquilo era o meu presente. Era. Pedi-lhe para que ela tocar tudo novamente, para poder ouvir com mais calma.

Quando desci do balcão para lhe agradecer, um padre estava atônito na plateia. Ele disse que tinha vindo fazer suas orações mas que, depois daquilo, achava que já estavam feitas.

Hoje, à convite do Bernardo Frederes Kramer Alcalde, voltei a assistir uma Chaconne ao vivo. Tenho sorte com a peça porque foi novamente maravilhoso. O violinista foi o alemão Oscar Bohórquez, filho de um fagotista peruano e de uma pianista uruguaia. A promotora do recital foi a Bach Society Brasil, entidade porto-alegrense que você deveria apoiar.

Valeu muito a pena e eles farão novo Concerto em 4 de dezembro, agora com orquestra.

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Pequena nota sobre a Sinfonia Nº 5 de Mahler

Pequena nota sobre a Sinfonia Nº 5 de Mahler

Gustav Mahler dirigiu a Orquestra Gürzenich em Colônia na estreia de sua Sinfonia Nº 5. Depois de passar por uma doença quase fatal no inverno anterior, ele encontrou conforto na música de Johann Sebastian Bach, e o rico contraponto da sinfonia mostra claramente a influência de Bach. Esta obra marca o início de uma trilogia de sinfonias puramente instrumentais. Ao contrário das três anteriores, que eram orientadas pela narrativa e incluíam elementos vocais, as Sinfonias 5, 6 e 7 não trazem a voz humana.

A estreia não correu nada bem. Em carta à sua esposa, Mahler expressou sua decepção, afirmando: “Ninguém entendeu. Gostaria de poder reger a primeira apresentação desta peça cinquenta anos após minha morte.”

O quarto movimento, o célebre Adagietto tocado pelas cordas e harpa, é originalmente uma canção de amor para sua esposa Alma, em comemoração ao recente casamento, o que sugere que deveria ser executada em um ritmo adequado para o canto. Isso é apoiado por marcações na partitura do maestro Willem Mengelberg, que assistiu à execução da sinfonia por Mahler. Porém, embora as interpretações modernas do Adagietto possam variar de 10 a 14 minutos, o próprio Mahler conduziu-a em apenas 7 minutos e 30 segundos. Mengelberg devia ser muito criativo, pois a versão lenta criou a tradição plenamente aceita hoje, tendo o trecho sido tocado no filme A Morte em Veneza, de Visconti, em modo 100% Mengelberg.

Mas eu fiquei assobiando com a Elena hoje pela manhã um Adagietto em velocidade duplicada. Não gostei…

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Violistas

Violistas

Piadas de fagote, piadas de trompete, piadas de violino, piadas de oboé — todas funcionam como ferramentas de ligação que reforçam a hierarquia social da orquestra. E, nesse sentido, não há coleção mais extensa dessas paródias do que a piada de viola (ou de violista).

As piadas de viola vieram do século XVIII e surgiram com a criação da orquestra moderna. logo ficou enraizada a crença de que o instrumento era pesado e seus músicos lamentavelmente incompetentes. Esta implacável da reputação dos violistas, escrita em 1752 pelo eminente compositor e flautista Johann Joachim Quantz, era típica:

A viola é comumente considerada de pouca importância no meio musical. A razão pode muito bem ser o fato de ser frequentemente tocada por pessoas que ainda são principiantes ou não têm dons específicos para se distinguirem no violino. O instrumento proporciona muito poucas vantagens aos seus executantes, de modo que pessoas capazes não são facilmente persuadidos a aceitá-lo.

Estes estereótipos permanecem firmemente em vigor, apesar da presença atual de violistas virtuosos que amam as qualidades úde seus instrumentos. Só que as piadas são boas demais para serem desperdiçadas.

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A criação do monograma (selo) de Johann Sebastian Bach

A criação do monograma (selo) de Johann Sebastian Bach

J. S. Bach desenhou este monograma para si mesmo, na esperança de ser nomeado Compositor da Corte do Eleitor da Saxônia (daí a coroa). O selo de Bach é composto por suas iniciais JSB sobrepostas à imagem espelhada e encimadas pela citada coroa. Foi uma tentativa de alcançar mais um cargo. Não conseguiu. Mas ficou lindo, né?

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Sobre o nome do grupo de Amandine Beyer, Gli Incogniti

O grupo de música barroca da genial Amandine Beyer chama-se Gli Incogniti, que significa Os Desconhecidos ou Os Incógnitos. Parece uma brincadeira meio boba, mas vocês têm que saber mais da história da humanidade, meus amados leitores.

A Accademia degli Incogniti (Academia dos Desconhecidos, ou Incógnitos), também chamada de Academia Loredaniana, foi uma sociedade erudita de intelectuais livres pensadores, principalmente nobres, que influenciou significativamente a vida cultural e política de Veneza de meados do século XVII . A sociedade foi fundada em 1630 por Giovanni Francesco Loredan e Guido Casoni. A sociedade incluía historiadores, poetas e libretistas. A academia atraiu para si as principais figuras literárias de Veneza e outras de fora que simpatizavam com um programa libertino e com a independência política e cultural de Veneza. O nome ‘Incogniti’ alude ao uso de máscaras em muitas reuniões, além de se referir a subterfúgios como obras anônimas, alegorias e ironia, a fim de desviar a censura religiosa. Segundo a historiadora Ellen Rosand, a academia, fazendo jus ao seu nome, geralmente funcionava nos bastidores. Os membros muitas vezes escreviam numa linguagem secreta e frequentemente publicavam os seus trabalhos anonimamente.

O espírito libertino da academia foi fortalecido pelo naturalismo aristotélico (ligado às correntes céticas e epicuristas) ensinado na Universidade de Pádua, frequentado pelas classes altas venezianas. A sua filosofia geral era que nada é cognoscível além do mundo natural ao qual temos acesso apenas pela razão. Mais: eles defendiam que a alma era mortal e que os prazeres dos sentidos e a satisfação dos instintos sexuais faziam parte da vida natural. Maquiavel influenciou-os ao formular uma visão da religião como um produto da história humana, e não como uma revelação divina, exercida por uma elite com o propósito de controle social. Não é de surpreender que os censores frequentemente colocassem obras Incogniti no Index. Essas obras incluíam composições satíricas em prosa e versos, histórias bíblicas transformadas em romances de aventura erótica, coleções de novelas elogiando os instintos naturais e o prazer, narrativas históricas (muitas vezes antipapais) e uma série de gêneros muitas vezes híbridos, misturando elementos históricos, alegóricos, epistolares e picarescos. Dando continuidade a uma prática estabelecida por Aretino, os autores Incogniti escreveram num idioma simples, vivo e contemporâneo, geralmente desprovido da bagagem clássica e do vocabulário arcaico tão em voga na época. Eles escreviam sobre temas de interesse contemporâneo para o maior número possível de leitores. Muitos de seus escritos satíricos eram anônimos, com datas e locais de publicação falsos e, portanto, deliberadamente clandestinos. Os escritos históricos da academia foram inspirados em Paolo Sarpi, bem como em Maquiavel e Guicciardini, sempre expondo o funcionamento da tirania e, assim, alertando os leitores para os abusos de poder, tanto políticos quanto religiosos. A Accademia degli Incogniti foi particularmente ativa na promoção do teatro musical em Veneza a partir da década de 1630, fundando o seu próprio teatro, o Teatro Novíssimo, que floresceu entre 1641 e 1645. Nos seus libretos para dramas musicais, os intelectuais iconoclastas da academia estabeleceram um tom que era frequentemente franco, chocante e amoral. Entre esses libretistas estavam Giacomo Badoaro, que escreveu Il ritorno d’Ulisse in patria para Claudio Monteverdi, e Giovanni Francesco Busenello, que forneceu a Monteverdi o libreto para a última e maior obra operística do compositor, L’incoronazione di Poppea. Embora a academia seja frequentemente descrita como um grupo de “libertinos céticos exaltando um tipo peculiarmente veneziano de imoralidade”, Loredan era um respeitado senador da República de Veneza. Outros membros também serviram à República como senadores ou vereadores, e a academia permaneceu um centro não oficial de poder político durante várias décadas. Sua influência começou a diminuir no final da década de 1650 e, em 1661, deixou de se reunir.

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Notas de Concerto: a Missa em Si Menor, BWV 232, de Johann Sebastian Bach

Notas de Concerto: a Missa em Si Menor, BWV 232, de Johann Sebastian Bach

Vamos começar falando de um compêndio que influenciou gerações de melômanos no Brasil. O tal livro é Nova História da Música, de Otto Maria Carpeaux. Muita gente da minha geração e das anteriores (talvez também das posteriores) leram este livro. Na parte que fala de Bach, Carpeaux o colocava como o maior compositor de todos os tempos (OK), mas dizia ousadamente que a Missa em si menor era a maior obra de todos os tempos. Carpeaux gostava de afirmativas bombásticas e de comparar alhos com bugalhos, mas era um cara tão respeitado — era colunista o autor de uma História da Literatura Ocidental em oito volumes, reconhecera Grande Sertão: Veredas com um clássico absoluto 15 dias após seu lançamento e já tinha feito o algo parecido com outros autores — que todo mundo até se vestia melhor em casa para ouvir a tal maior obra de todos os tempos. E, mesmo que ele tenha se enganado na medição das obras — eu sei lá! –, está muito próximo de ter falado a verdade. Na verdade, a Missa em Si Menor, foi primeiramente aclamada como a “maior composição musical de todos os tempos e todas as culturas” por seu primeiro editor, Hans-Georg Nägeli, de Zurique em 1818. E é isso que vocês vão ouvir hoje.

Talvez algum desavisado espere um padre hoje na Ospa, então acho que mais do que natural explicar o que é uma Missa em música. Pode-se dizer que a Missa é uma obra musical religiosa cantada por solistas e/ou coral que, diferentemente da maioria dos Oratórios, Paixões — como o Messias de Handel — e Cantatas, não possui recitativos. O que é o recitativo? Trata-se de gênero de canto declamado, surgido no final do século XVI, que passou a integrar óperas, cantatas e oratórios. Servem de conexão entre as árias cantadas. OK, e o que é uma ária? Ária é qualquer composição musical escrita para um cantor solista, tendo quase o mesmo significado de canção. Podem ser duetos, tercetos, etc. tb. E o que é um coral? É uma composição escrita para coro ou coro e orquestra. Geralmente (mas não necessariamente) usa-se o termo “ária” quando está contida dentro de uma obra maior, como uma ópera, cantata ou oratório e “canção” quando é uma peça avulsa. Existe canção em música erudita? Certamente. Purcell, Richard Strauss e principalmente Schubert praticaram o gênero com resultados magníficos. A Missa em si menor é formada de magníficas árias e corais.

Mas a Missa possui outra característica: ela, teoricamente, tem uma estrutura e texto padrão em latim. A estrutura básica compõe-se do Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei. E quem compôs Missas? Quase todos os grandes compositores: Palestrina, Bach, Haydn, Rossini, Beethoven, Schubert, Bruckner, Janáček, etc.

I. Missa (Kyrie & Gloria)

Intervalo

II. Symbolum Nicenum (Credo)
III. Sanctus
IV. Osanna, Benedictus, Agnus Dei et Dona nobis pacem

Outra espécie de Missa é o Réquiem. Todos nós conhecemos os famosos Réquiens de Mozart, o de Verdi, o Réquiem Alemão, de Brahms e o War Requiem, de Britten, etc. Além disso, há obras sobre partes da missa ou outros textos litúrgicos, como o Gloria (Vivaldi e Poulenc), o Magnificat (Bach), o Te Deum (Purcell, Haydn, Mozart, Bruckner), o Stabat Mater (Vivaldi, Pergolesi), o Exsultate, jubilate (Mozart), entre outros.

Agora, vamos a Bach. É verdadeiramente notável o porte e o grau de influência de Bach, assim como sua colocação como pedra fundamental de toda a nossa cultura musical. O mundo criado por Bach foi desenvolvido numa época em que não havia plena noção de obra; ou seja, Bach não se colecionava para servir à posteridade como os autores passaram a fazer logo depois. Ele escrevia para si, para seus alunos e contemporâneos. Sabe-se pouco a seu respeito como pessoa. Sabe-se que estava sempre procurando cargos mais bem reminerados, que era brigão, que bebia (e produzia) muita cerveja, que teve muitos filhos. Muitos mesmo.

Teve 7 com a primeira esposa Maria Barbara que viveu e trabalhou com ele de 1707 e 1720 (13 anos). Três caíram na alta mortalidade infantil da época. E teve 13 com Anna Magdalena, com quem ficou casado entre 1721 e 1750 (29 anos), dos quais sete faleceram prematuramente. Quatro dos filhos tornaram-se compositores (Wilhelm Friedemann, Carl Philipp Emanuel, Johann Christian e Johann Christoph Friedrich), um filho tinha problemas mentais e havia quatro meninas que chegaram à idade adulta.

Com tantos filhos, era natural que Bach procurasse sempre melhores empregos. À época, fazer isso poderia ser um grande problema. Os empregadores consideravam traidores quem fazia isso. Por exemplo, quando Bach recebeu uma oferta do Príncipe Leopold, de Köthen, Bach pediu permissão para deixar Weimar, onde trabalhava. Mas o Duque de Weimar não quis perder os serviços de seu brilhante músico e recusou o pedido. Como Bach insistisse, o Duque não teve dúvidas em colocá-lo na prisão, isso sem nenhum processo. Bach passou trinta dias preso. Porém, ao sair da prisão, em dezembro de 1717, partiu imediatamente para Köthen com sua família já de quatro filhos, sendo nomeado mestre de capela da corte do Príncipe Leopold.

Mesmo com os filhos e os alunos, a perfeição e o número de obras que Bach criava e que era rápida e desatentamente fruída pelos habitantes das cidades onde viveu, era inacreditável. Tentaremos dar dois exemplos:

(1) Suas obras completas, presentes na coleção Bach 2000, estão gravadas em 153 CDs. Grosso modo, 153 CDs são 153 horas ou 6 dias e nove horas ininterruptas de música… original,

(2) como se não bastasse, ele parecia divertir-se criando dificuldades adicionais em seus trabalhos. Muitas vezes o número de compassos de uma ária de Cantata ou Paixão, corresponde ao capítulo da Bíblia onde está o texto daquilo que está sendo cantado. Em seus temas também aparecem palavras — pois a notação alemã (não apenas a alemã) é feita com letras. Ou seja, pode-se dizer que ele sobrava…

E imaginem que durante boa parte de sua vida Bach escrevia uma Cantata por semana. Em média, cada uma tem 20 minutos de música. Tal cota, estabelecida por contrato, tornava impossível qualquer “bloqueio criativo”. Pensem que ele tinha que escrever a música, copiar as partes e ainda ensaiar para apresentar domingo, todo domingo.

Mas se ele era tão ocupado, por que escreveu uma Missa de grandes proporções? Há duas teses:

  1. Bach escreveu-a em 1733 (revisou-a em 1749) com a intenção de que ela fosse uma obra ecumênica. Seria a coroação de sua carreira de compositor sacro. Quando a Bach, roubou de si mesmo ou fez retornar alguns de seus melhores trabalhos de sua longa obra. Imaginem que ele trouxe para a Missa uma ária que compusera em 1714! Naquele momento ele fazia uma revisão de si mesmo e, por isso, a Missa também é um sumário de sua obra sacra. Para completar, o trechos compostos especialmente foram criados por um compositor no auge de sua capacidade. O que apoia esta tese do ecumenismo, da unidade cristã é o fato da Missa ter sido escrita em latim, contrariamente às Cantatas e Paixões, sempre escritas em alemão. Tal fato deixaria a Missa mais próxima dos católicos.
  2. Mas hoje a tese mais aceita é muito outra. Na verdade, pleiteava um emprego junto ao Rei “católico” em Dresden, Augusto III) em 1733. Isso explica a linguagem católica. Ele cobiçava um cargo em Dresden, loucamente. Era a melhor corte musical da Europa, repleta de Vivaldi, dinheiro, bons amigos… Bach correu a vida toda atrás de melhores postos, e ficou sempre, infelizmente, aquém. Assim, ao apresentar da Missa em Dresden, fez uma aposta alta e reuniu seus melhores materiais, reciclando muito de seus arquivos, o que sempre fez com perícia. O Kyrie e o Gloria foram compostos naquele ano, o primeiro como um lamento pela doença de Augustus, o Forte, que veio a falecer em 1 de fevereiro de 1733, e o segundo para celebrar a ascensão de seu sucessor, o Eleitor da Saxônia e mais tarde rei da Polônia, o Rei Augusto III, que, para assumir o trono da Polônia, se converteu ao catolicismo. Estas duas seções foram apresentadas por Bach a Augustus III, junto com uma nota datada de 27 de julho de 1733, como uma Missa com as partes Kyrie e Gloria, na esperança de obter o título de Compositor da Corte da Saxônia, lamentando-se de que havia sofrido imerecidamente, uma injúria após outra em Leipzig. Provavelmente, estas partes da Missa foram executadas em 1733, na Sophienkirche, em Dresden, onde Wilhelm Friedemann Bach trabalhava como organista desde junho, sem a presença daqueles a quem eram dedicados.
Johann Sebastian Bach – carta na qual o compositor alemão dedica o Kyrie e o Gloria de sua ‘Missa em Si Menor’ a Frederico Augusto, Eleitor da Saxônia. Datada de 19 de agosto de 1733.

— O Sanctus foi composto em 1724
— O Credo pode ter sido escrito em 1732.
— Em 1747 ou 1749, Bach copiou toda a partitura.

A Missa em Si menor, BWV 232, de Johann Sebastian Bach, é uma obra monumental que merece ser ouvida por várias razões:

  1. Síntese do Gênio de Bach: Esta obra é frequentemente vista como o ápice da carreira de Bach, sintetizando suas habilidades como compositor de música sacra. Ela combina estilos e técnicas que Bach desenvolveu ao longo de sua vida, unindo elementos de música coral, orquestral e solos vocais em uma obra magistral.
  2. Diversidade Estilística: A Missa em Si menor abrange uma impressionante variedade de estilos musicais. Desde o uso do contraponto renascentista até elementos do barroco tardio, Bach demonstra sua capacidade de fundir e elevar diferentes tradições musicais. Isso faz da Missa uma verdadeira enciclopédia de técnicas musicais da época.
  3. Profundidade Espiritual: Embora Bach tenha sido um luterano devoto, a Missa em Si menor é uma obra universal em seu alcance. Ela transcende divisões confessionais, oferecendo uma expressão profunda da espiritualidade cristã. A música é emocionalmente poderosa, capturando desde a solenidade do “Kyrie” até a exultação do “Gloria”.
  4. Complexidade Técnica e Beleza Harmônica: A complexidade técnica da Missa é extraordinária. As fugas, as sobreposições harmônicas, e a interação entre vozes e instrumentos são de uma sofisticação raramente igualada na música. No entanto, apesar dessa complexidade, a obra nunca perde sua beleza melódica e harmônica, sendo ao mesmo tempo acessível e profundamente rica.
  5. Legado Histórico: A Missa em Si menor é uma das obras mais influentes da música ocidental. Ela foi redescoberta e valorizada no século XIX, e desde então, tem sido um pilar do repertório coral e orquestral. Sua importância histórica e musical a coloca entre as maiores composições já escritas.
  6. Experiência Emocional: Ouvir a Missa em Si menor é uma experiência emocional poderosa. A combinação de vozes, orquestra e a arquitetura musical de Bach cria um impacto que vai além das palavras. Cada seção da Missa evoca uma gama diferente de emoções, desde a penitência até a glória, fazendo dela uma obra completa e emocionalmente envolvente.

Esses aspectos fazem da Missa em Si menor uma obra que não só deve ser ouvida, mas também estudada e apreciada como uma das maiores realizações da música clássica.

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E aqui está a palestra para o Notas de Concerto:

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Anton Bruckner (1824-1896)

Anton Bruckner (1824-1896)

Hoje, 4 de setembro, é o dia dos 200 anos de nascimento de um dos compositores que mais amo: Anton Bruckner.

Ele nasceu em Linz, na Áustria, e foi uma figura estranhíssima. Este ano, li a biografia que Lauro Machado Coelho escreveu sobre ele. Muitas coisas começaram a fazer sentido.

Dizia a lenda que Bruckner era quase um idiota. Nada disso. Mas havia o ambiente rural e quase tacanho em que o compositor nasceu, a desgraça de ser um jeca, a sua insegurança neurótica, seu alto conhecimento e seus incríveis — de modo positivo — resultados como aluno. Porém, mesmo sendo um espetacular improvisador ao órgão, professor e compositor, Bruckner era um ingênuo que propunha casamento às moças mais inatingíveis, era hiper religioso, anotava tudo o que fazia, gastava e recebia, sabia quantas árvores existiam em todos os seus caminhos diários, pois as contava, além de outras esquisitices absolutamente originais. Quando transferiu-se de Linz para Viena, quis ter certeza de que seria aceito de volta caso fosse um insucesso em Viena. Insegurança total, sempre.

Também ficava agradecido a quem regia sua música, a ponto de se submeter a humilhações. Halb Genie, halb Trottel (metade gênio, metade pateta) era o que se dizia dele. Podem imaginar esse homem saído da pequena Linz (Sankt Florian) para a sofisticada Viena? Pois ele adquiriu o respeito de gente como, por exemplo, Gustav Mahler. Sua música foi adotada por Hitler como símbolo da força e da pureza arianas, mas logo os historiadores descobriram que, Bruckner, devoto de Richard Wagner, não era nem um pouco antissemita e o nazismo desgrudou dele assim que a guerra acabou. Quando os maestros judeus começaram a ser preteridos, Bruckner passou a convidá-los para estrear suas sinfonias, deixando de lado os “alemães”.

Compondo sinfonias imensas, realizou grandes esforços para ver sua obra aceita – inclusive revisando-a incessantemente… Não podia ouvir uma opinião contrária que já saía reescrevendo tudo. E criou imensa obra, cheia de diferentes versões. Um prato delicioso para os musicólogos.

Sou muito Bruckner e minhas sinfonias preferidas são a 3, 4, 5, 7 e 9. Ele tem 11, mas parou na nona. Ele tem uma Sinfonia de Estudo, que não era para ser publicada. Insegurança. Era tão boa que tornou-se a Sinfonia N° 0 (Nullte). Teve outra a qual ele também não deu número. Bruckner declarou que ela “gilt nicht” (não contava)… Hoje, é tocada, claro.

Sua música trazia a estranheza de parecer por vezes imitar o órgão, seu instrumento, sempre com muitas pausas significativas e entradas em fortíssimo para alegria dos metais da orquestra.

Bem, esta é minha pequena homenagem a este gênio. Abaixo, uma boa piada sobre suas incontáveis revisões.

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A mudança da nossa sensibilidade

É notável a mudança de gosto trazida pela música historicamente informada, principalmente no barroco. De forma genérica, tudo o que foi gravado antes dos anos 70 é simplesmente absurdo. Estou ouvindo uma velha gravação da Missa em si menor de Bach na Rádio da Ufrgs onde os cantores parecem estar todos desesperados. Estão cantando Bach como um bando de loucos sem noção, como se cantassem Verdi em momento de morte iminente ou paixão avassaladora. Além de coro e orquestra enormes, anabolizados. A coisa é insuportável e ainda está na metade. Quero até saber quem fez isso. Vou tratar de aguentar.

(Era Otto Klemperer. Com Janet Baker, Hermann Prey, Nova Philharmonia e Coro da BBC. Um Bach com molho pesadíssimo de 1967).

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Cravos

Cravos

Hoje, já estou já no quarto CD de obras de Bach para teclado, interpretadas ao cravo.

Eu adoro o som do cravo. Posso passar horas ouvindo, mas o cravo é um instrumento estranhamente polêmico, que divide opiniões.

Para alguns, ele sempre trará à mente o tema da Família Addams, uma associação que alguns podem considerar inteiramente correta.

O maestro Thomas Beecham comparou o som do instrumento ao barulho feito por “dois esqueletos copulando em um telhado de zinco”. O compositor John Cage comparou-o a uma máquina de costura.

Vou lhes contar…

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O Menestrel de Deus – Vida e Obra de Anton Bruckner, de Lauro Machado Coelho

O Menestrel de Deus – Vida e Obra de Anton Bruckner, de Lauro Machado Coelho

Lauro Machado Coelho (1944-2018) foi um Jornalista Cultural — assim mesmo, com maiúsculas. Ele escreveu incontáveis artigos e colunas em jornais, vários livros sobre ópera, um livro extraordinário sobre Shostakovich e outros não menos sobre Sibelius, Berlioz, Liszt, Bartók e Akhmátova, além deste sobre Bruckner.

O texto de Lauro é delicioso e nos traz todo o contexto dos compositores sem cair em preconceitos pré-moldados pelas posições políticas ou estéticas do autor e outros. Seu livro sobre Bruckner é uma joia até para quem não se interessa pelo compositor.

Pois ele é uma figuraça! Em O Menestrel de Deus temos o ambiente rural e quase tacanho em que o compositor nasceu, a descrição de sua insegurança, seu alto conhecimento e seus incríveis — de modo positivo — resultados como aluno. Porém, mesmo sendo um genial improvisador ao órgão, professor e compositor, Bruckner era um ingênuo que propunha casamento às moças mais inatingíveis, era hiper religioso, anotava tudo o que fazia, gastava e recebia, e sabia quantas árvores existiam em todos os seus caminhos diários, pois as contava, além de outras esquisitices. Quando transferiu-se de Linz para Viena, quiser saber se seria aceito de volta caso fosse um insucesso em Viena.

Também ficava agradecido a quem regia sua música, a ponto de se submeter a humilhações. Halb Genie, halb Trottel (metade gênio, metade pateta) era o que se dizia dele. Podem imaginar esse homem saído da pequena Linz (Sankt Florian) para a sofisticada Viena? Pois ele adquiriu o respeito de gente como, por exemplo, Gustav Mahler. Sua música foi adotada por Hitler como símbolo da força e da pureza arianas, mas logo os historiadores descobriram que, Bruckner, devoto de Richard Wagner, não era nem um pouco antissemita e o nazismo desgrudou dele assim que a guerra acabou.

O livro de Lauro Machado Coelho passa por tudo isso: por toda a biografia deste homem genial e inseguro, por suas influências e por quem ele acabou influenciando. Temos toda sua formação como músico, seus esforços para fazer aceitar a sua obra – inclusive revisando e deixando revisar tantas vezes as suas sinfonias… Mas também da obra única de um homem que, animado por uma fé sem conflitos em seu “bom Senhor Deus”, deixou uma obra esplêndida.

Ou seja, para quem se interessa por música, este livro é um banquete.

Lauro Machado Coelho

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Compre o livro na Livraria Bamboletras, na Av. Venâncio Aires, 113. Ah, não mora em Porto Alegre? Use o WhatsApp 51 99255 6885. A gente manda!

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Bruckner e Hitler

Bruckner e Hitler

Anton Bruckner tem um fato post mortem muito curioso. Adotada por Hitler, sua música tornou-se um autêntico símbolo do nazismo. Hitler achava sua música muito poderosa, séria, pura e, portanto, ariana. Só que Bruckner, ao contrário de Wagner e Orff, “destornou-se” muito rapidamente.

Imaginem que o Adágio da Sétima Sinfonia foi o tema escolhido por algumas emissoras de rádio remanescentes para anunciar a morte de Hitler. Imaginem que Hitler entrava nos Congressos sob fanfarras da Terceira Sinfonia…

Ocorre que o velho Bruckner — morto em 1896 — entrou nessa de gaiato, pois nunca foi antissemita, mesmo sendo wagneriano de quatro costados. Pelo contrário, muitas de suas obras foram estreadas por maestros judeus, a convite do compositor, além de ser amigo do jovem Gustav Mahler.

Os historiadores da música trabalharam bem nessa.

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A Paixão Segundo João, de Johann Sebastian Bach — 300 anos

Hoje é o dia em que a Paixão Segundo João, de Johann Sebastian Bach, completa 300 anos. Digo Paixão Segundo João traduzindo à perfeição o título da obra. A outra grande Paixão de Bach também chama-se Paixão Segundo Mateus e não “Segundo São Mateus”.

A obra é uma representação dramática do texto contido no Evangelho de João, interpretada por coro, solistas e orquestra dentro de árias, corais e recitativos. O dia de sua primeira apresentação, em 7 de abril de 1724, foi a sexta-feira da Semana Santa daquele ano.

Ambas, Mateus e João, são obras belíssimas, perfeitas e insuperáveis em seu gênero. Porém, se eu tivesse que escolher uma delas para levar para a ilha deserta, levaria a aniversariante de hoje, que é menos monumental e mais moderna.

Bach sempre teve notáveis intérpretes e, dentre os vivos, ninguém supera a gravação abaixo, que será postada hoje no PQP Bach.

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Eu e Herbert Caro

Eu e Herbert Caro

Conheci o Dr. Herbert Caro numa loja de discos eruditos de Porto Alegre, a King`s Discos. Lá, eu, ele, o Júlio – que trabalhava na loja – e outros, tínhamos um encontro não marcado mas sempre repetido aos sábados pela manhã. Nós, o grupo dos tarados por música, ficávamos ouvindo as novidades e aprendendo com a inacreditável sabedoria do velho. Quando o conheci, ele já tinha mais de 70 anos. Lembro que tinha 51 a mais do que eu. Não lembro em que ano morreu, deve ter sido entre 1986 e 1990. Creio que Caro não viu a falência do jornal Correio do Povo, onde por décadas publicou suas compreensivas (expressão dele) e lindamente escritas críticas musicais. Como convivi com ele entre meus 20 e 30 anos, era tratado pelo mestre como a criança curiosa que era. Ele tinha atenção especial para comigo e o Júlio, os jovens do grupo, e gostava de me orientar na obra de meus amados Bach e filhos, Mozart, Brahms e Beethoven. Deu-me alguns discos, sempre sob o pretexto de servirem como comprovação de suas opiniões, nunca pelos motivos reais, que eram a amizade e o carinho. Era um alemão que dava de presente um disco e dizia com meio sorriso: “Para aplacarr tua ignorrância”. E se alguém faltasse àqueles encontros, ele reclamava.

Chamávamos o Dr. Caro de “Doktor Carro”, apelido de duplo sentido, pois ao mesmo tempo em que nos referíamos a seu forte sotaque, homenageávamos o grande tradutor de Doutor Fausto (Doktor Faustus) e A Montanha Mágica de Thomas Mann, Auto-de-fé de Elias Canetti, A Morte de Virgílio de Hermann Broch, O Lobo da Estepe e Sidarta de Hermann Hesse, etc. Ele era conhecido por ser de difícil trato, mas gostava de nós e creio que nos levava livres por receio de nossa ironia. Uma vez, pareceu-nos que ele auto-elogiava a tradução (a qual é impecável, insuperável mesmo!) de A Montanha Mágica (uma obra-prima!) e nós começamos a falar sobre a inutilidade de se traduzir uma bosta de livro em que nada acontecia, em que as pessoas ficavam falando sobre o tempo, doenças, guerra e que inaugurava o riquíssimo gênero do erotismo tuberculoso… (Se você não entendeu isto, leia o livro). Depois começamos a falar sobre a “metáfora da Europa” contida na obra e a bobajada alcançou níveis planetários. Viram? Para nós, era facílimo conversar com ele. Ele primeiro ficava com aquela cara escandalizada de alemão rígido: de estão-brrincando-com-algo-que-é-sagrrado-parra-mim. Depois ria conosco. Voltava todos os sábados para nos ensinar e, eventualmente, para apanhar mais um pouquinho.

Inesquecível foi o sábado quando chegaram os 3 LPs com últimas Sonatas de Beethoven tocadas por Maurizio Pollini, pianista falecido há 4 dias. Ele brandia os discos e dizia que aquele monumento não serria esquecido tão cedo. Tinha razão.

Creio que todas as vezes que vi o Doktor Carro foi na loja de discos, a exceção das palestras que ele deu no Goethe sobre a pintura dos mestres holandeses. Ele sabia tudo e ficava irritado quando sua esposa projetava uma página ou um detalhe errado. Não a ofendia, mas ficava visivelmente contrariado.

Outra característica dele era o fato de odiar o calor de Porto Alegre. “A canícula” como ele dizia. Em todos os anos de sua velhice, viajava dia 1° de dezembro e retornava ao final de março quando nossa cidade voltava a ficar suportável. (Eu adoraria poder fazer isso…)

É óbvio que me sinto nostálgico e gratíssimo a ele pelas lições. Sei que muitas opiniões que solto no blog PQP Bach e no Notas de Concerto da Ospa são do Doktor Carro e não minhas.

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Maurício Pollini | 5.1.1942-23.3.2024

“Não dê ouvidos à sua mãe”, meu pai sussurrava para mim quando ela criticava Pollini pelo que ela descreveu como excessivo perfeccionismo. Para o pai, arquiteto e compositor, a abordagem estrutural de Pollini revelou novas verdades até mesmo sobre os cavalos de guerra mais familiares, tornando qualquer peça musical uma parte essencial do nosso tempo.

Com Pollini as coisas nunca foram simples – Chopin tornou-se o arquiteto musical, Stockhausen o poeta, Beethoven o filósofo. Muitos de nós nos tornamos melhores ouvintes e intérpretes. Que ele descanse em paz.

Vikingur Ólafsson

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Mozart, o K. 515 e o som do trompete

Mozart, o K. 515 e o som do trompete

Esta manhã, estava ouvindo o Quinteto K. 515 de Mozart na Rádio da Ufrgs, admirando a proeminência das violas. Contrariamente à maioria dos compositores, ele admirava o instrumento e muitas vezes o assumia ao tocar em quartetos de cordas.

Mozart aparentemente não gostava era do violoncelo, mas o que detestava mesmo era o trompete.

Quando criança, quando ouviu pela primeira vez um trompete de perto, ficou nauseado e vomitou.

Coisas das sensibilidades dos gênios.

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Newsletter de 14 de dezembro de 2023

Newsletter de 14 de dezembro de 2023

Olá!

Estamos retomando nossa newsletter lembrando você de que temos a solução para quem foge de shopping lotado e precisa comprar um presentinho de final de ano — nem que seja para si mesmo.

A Bamboletras tem livros para todos os bolsos e mais: neste fim de semana haverá dois recitais sen-sa-cio-nais cujos ingressos são a compra de um livro para cada um deles. Ou seja, você vê um baita espetáculo e ainda fica com um livro! Onde mais tem isso?

Confira abaixo porque tem muita coisa — livros e música!

Este é o primeiro recital:

Homenagem ao Centenário do Compositor Bruno Kiefer

I – Canção de garoa (1957/76)
II – Canção de inverno (1957/76)
III – Canção para uma valsa lenta (1958/76)
para voz aguda e piano – poemas de Mário Quintana

IV – Terra Selvagem (1971), para piano

V – Saudade (1956), para clarinete e piano

VI – Monólogo (1981), para clarinete solo

VII – Notas Soltas (1978), para flauta solo

VIII – Música para Dois (1984/1985), para flauta e clarinete

– Traquinice
– Pequena Fuga
– Espirituoso

IX – Pobre velha música! (1957/76)
X – No ouro sem fim da tarde morta (1958/76)
para voz aguda e piano – poemas de Fernando Pessoa

Soprano: Luciana Kiefer (I, II, III, IX e X)
Flauta: Henrique Amado (VII e VIII)
Clarinete: Diego Grendene de Souza (V, VI e VIII)
Piano: Guilherme Goldberg (I, II, III, IV, V, IX e X)

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E este é o segundo:

Recital em Fá – Pela Saúde da Terra 🌎

BACH, J. S.
Concerto Italiano em fá maior
Allegro / Andante / Presto

MOZART, W. A.
Sonata Nº 12, K. 332 em fá maior
Allegro / Adagio / Allegro assai

BEETHOVEN, L. von
Sonata Op. 57, Appassionatta, em fá menor
Allegro assai / Andante con moto / Allegro ma non troppo

PROKOFIEV, S.
Sonata, Op. 1, em fá menor
Allegro

André Carrara, piano

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E é claro que agora vamos deixar três dicas de livros para você.

A mais recôndita memória dos homens, de Mohamed Mbougar Sarr — Esse livro foi indicado pelo Chico Buarque, que disse que não sabia como continuaria a escrever após ler esta maravilha. Não bastou? Bem, O livro recebeu o prêmio Goncourt e foi traduzido para mais de trinta idiomas. Em 2018, Diégane Latyr Faye, um jovem escritor senegalês, descobre em Paris um livro mítico publicado em 1938: O labirinto do inumano. Seu autor, o misterioso T.C. Elimane, desapareceu sem deixar vestígios depois que uma escandalosa acusação de plágio mobilizou a comunidade literária francesa dos anos 1940. De Dakar a Paris, passando por Amsterdam e pela Buenos Aires dos salões literários das irmãs Ocampo, que verdade o espera no centro deste labirinto?

Livros de Annie Ernaux — Aqui você pode escolhar entre os vários livros da autora, publicados desde que ela recebeu o Nobel. Todo mundo que lê um, acaba lendo mais um e mais um. Experimente! Os que mais são elogiados? Ora, Os Anos, A Vergonha, O Acontecimento, O Lugar, A Outra Filha, etc. Sua obra descortina as raízes, os estranhamentos e os constrangimentos coletivos — principalmente os femininos — da memória pessoal. A autora é um referencial inquietante de coerência, rompendo não apenas com tudo que podia, no passado, ser escrito por mulheres, como invadindo questões de classe. Imperdível!

Oblómov, de Ivan Gontcharóv – Desconfie de quem diz conhecer os russos e não conhece a obra-prima Oblómov. O livro trata de um indolente latifundiário russo que passa seus dias fazendo planos para enfrentar seus muitos e graves problemas, principalmente os relativos a sua fazenda, que cada vez mais gera menos benefícios e onde é claramente roubado por seu administrador e servos. Só que ele não age. Oblómov é um Ulisses de roupão que opta por ficar imóvel, na contracorrente dos eventos. Quando deita no sofá, sente-se protegido de toda a grosseria e da confusão que rege as ações humanas. Porém, sua atividade mental é grande. Não nasceu para ser um gladiador na arena, mas um pacífico espectador que deixa a inércia guiar sua vida. Só não pense que é um livro monótono. Bah, aí é que você se engana!

📍 Visite-nos na Av. Venâncio Aires 113, de segunda à sábado, das 9h às 19h, e aos domingos, das 13h às 19h.
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Ah, temos convênio com o estacionamento que fica aqui logo depois, no número 133 da Venâncio.

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Karajan: o maestro super ego

Karajan: o maestro super ego

MAIS ACLAMADO REGENTE DO SÉCULO 20, HERBERT VON KARAJAN, QUE ESTARIA FAZENDO CEM ANOS, ESTERILIZOU A IMAGEM DA MÚSICA ERUDITA PARA AS FUTURAS GERAÇÕES, DIZ CRÍTICO INGLÊS

NORMAN LEBRECHT

Quando acordo ao som da música de Herbert von Karajan [1908-89] no rádio, esfrego os olhos para ter certeza de que Mao Tse-tung não continua no poder e a União Soviética deixou mesmo de ser uma potência mundial.

Houve um momento, definido pela forte presença de ditaduras, no qual Karajan parecia ser o fundo musical inevitável. Nos anos 70 e 80, ele era onipresente, uma presença cultural imponente cercada por admiradores nos mais altos postos. Afinal, era tudo que um político decaído aspirava ser: ultra-elegante e onipotente.

O centenário de seu nascimento, no último dia 5, está sendo celebrado por um dilúvio de produtos de uma indústria musical que ele conduziu à prosperidade e depois lançou à quase ruína.

Se o mercado de música clássica convencional se estreitou imensamente nos cinco últimos anos, isso é consequência inevitável dos excessos da era Karajan. Se a própria música clássica é vista por muitos (injustamente) como elitista, antiquada e retrospectiva, deve-se agradecer a Herbert von Karajan por tê-la transformado em uma forma de entretenimento seguro, empresarial, apresentado em festivais cujos preços são proibitivos ao espectador comum.

Trata-se de afirmações que mal requerem prova, mas continuam a existir nostálgicos que defendem a “grandeza” de Karajan em certas seções da imprensa.

O termo não significa nada em termos críticos, e até mesmo alguém um dia ousado como Simon Rattle se sente obrigado, à frente da Filarmônica de Berlim, que por tanto tempo foi dirigida por Karajan, a homenagear o velho tirano no ano de seu centenário. Quem sabe reviveremos também o culto a Brejnev [1906-82, presidente da União Soviética].

Karajan, como diretor musical e negociante escuso, dominou o cenário em Berlim e Salzburgo dos anos 1950 em diante, pagando cachês extravagantes a seus amigos e usando os ensaios de sua orquestra, cujos salários eram pagos pelo Estado, como sessões de gravação de discos comerciais.

Karajan enriqueceu de forma desmedida e levou muitos de seus músicos à prosperidade com ele, deixando uma fortuna avaliada em US$ 500 milhões [R$ 844 milhões], estruturada de maneira a evitar impostos, e uma pilha de 900 discos.

Ele manipulou a indústria fonográfica, dividindo para conquistar, sempre trabalhando com dois dos grandes selos e cortejando um terceiro. Em dado momento, ele respondia por um terço da receita da Deutsche Grammophon (DG), a maior gravadora mundial de música clássica.

Beleza artificial

Quase tudo o que regia soava muito liso, mais ou menos como camisetas de algodão que passaram por um banho de amaciante de roupa.

Não importa que estivesse executando Bach ou Bruckner, “Rigoletto” [de Verdi] ou uma rapsódia, a música acompanhava uma linha inconsútil de beleza artificial que devia menos à inventividade do compositor do que à intenção do regente de manufaturar um produto reconhecível.

Criado em Salzburgo depois da Primeira Guerra Mundial -uma cidadezinha que se tornou a segunda maior do Estado austríaco encolhido pela derrota-, Karajan aprendeu os perigos de viver em posição de fraqueza.

Quando Hitler subiu ao poder, em 1933, ele aderiu ao Partido Nazista não só uma como duas vezes, e foi recompensando com um posto oficial em Aachen -o mais jovem diretor musical do Reich.

Não demorou para que começasse a ser elogiado pelos jornais controlados por Goebbels como “Das Wunder Karajan” (o milagre Karajan), em contraste com Wilhelm Furtwängler, maestro que não merecia a confiança política do regime. Karajan aprendeu com Goebbels como dividir para governar, entre outras artes obscuras da política.

Exibiu seus talentos sombrios na Paris e na Amsterdã ocupadas, servindo para todos os efeitos como o menino de ouro do nazismo.

Industriais ricos

Depois da guerra, foi suspenso de apresentações públicas enquanto suas conexões com o nazismo eram investigadas, mas um executivo da gravadora EMI, Walter Legge, o levou a Londres para conduzir a orquestra Philharmonia, composta por soldados britânicos recentemente desmobilizados.

O relacionamento explosivo entre maestro e orquestra duraria uma década, deixaria Karajan bem treinado nas artimanhas políticas e estimularia sua propensão ao conflito.

Depois da morte de Furtwängler, em 1954, ele se tornou maestro perpétuo em Berlim e usou a destruída capital do Reich como ponto de partida para sua expansão imperial. O festival de sua Salzburgo natal foi transformado em um evento quadrimestral, freqüentado por industriais ricos vestindo smokings, aspirantes a senhores do universo.

Conservadorismo

Nenhum músico da história procurou o poder que Karajan obteve com sua pompa, um poder que se estendeu, por emulação ou submissão, a muitas salas de concertos e festivais do planeta. Reacionário por natureza, ele sempre se manteve fiel ao romantismo convencional, excluindo a música atonal e os estilos de execução posteriores.

Christoph von Dohnányi chegou a acusá-lo de destruir a arte da regência na Alemanha, ao impor à disciplina, de modo tão vigoroso, seu gosto estreito.

Nikolaus Harnoncourt, violoncelista na orquestra de Karajan em Viena, foi excluído de Berlim e Salzburgo depois que começou a reger grupos que utilizavam instrumentos de época, de uma maneira que contrariava a ortodoxia proposta e imposta por Karajan.

A cada vez que gravava um ciclo de Beethoven -e o fez por cinco vezes-, reduzia a chance de interpretações alternativas. Sua hegemonia era autocrática e não admitia oposição.

Quando os músicos de Berlim se recusaram a admitir a clarinetista Sabine Meyer na orquestra, porque não queriam tocar com uma mulher, ele se transferiu para a orquestra rival, a Filarmônica de Viena.

Insatisfeito com a DG, ele estava conspirando para se transferir à Sony na época em que morreu. Karajan só era leal a si mesmo. Seu amor à música estava confinado à maneira como ele a executava.

Imenso charme

O poder dele, ao contrário do que acontecia no caso de Brejnev, no entanto, se baseava em um imenso charme. Muitos regentes que foram vilipendiados por Karajan durante anos, como Daniel Barenboim, se sentiram tentados a esquecer as mágoas em anos posteriores, quando o soberbo maestro os abordou de forma lisonjeira.

Na única ocasião em que me convidou para uma conversa, em 1985, decidi recusar a entrevista, preferindo observá-lo à distância, como a maioria dos músicos fazia. Ele era capaz de gentilezas pessoais tocantes em benefício de seus músicos, mas também de crueldades injustificadas, como a de cortar completamente o contato com um velho amigo sem que houvesse motivo aparente.

O passado nazista de Karajan não é incidental, ainda que ele não estivesse envolvido na promoção de holocaustos. Não há suspeita de que tenha cometido crimes raciais, e sua carreira no Reich encontrou percalços depois de 1942, quando se casou com uma rica herdeira que tinha ancestrais judeus.

O que ele adotou do nazismo foi um conjunto de valores que passou a aplicar à inocente e ineficiente indústria da música de maneira impiedosa e incansável. Se há uma lição que ele aprendeu com os nazistas é a da superioridade da música alemã e o imperativo do domínio mundial. Ele demonstrou que música era, acima de tudo, uma questão de poder.

Muita gente se deixou impressionar, e essa admiração continua. Alguns, como eu, viam sua atitude como desfavorável à música. Para mim sempre foi difícil ouvir Karajan no rádio com isenção.

A “celebração” de seu centenário é uma tentativa final da indústria fonográfica de extrair lucros de um leão morto. Algumas das celebrações são bancadas por subsídios ocultos oferecidos pelo riquíssimo e muito bem organizado espólio do maestro.

Mas é um tanto surpreendente descobrir que a Philharmonia, que nunca o aceitou integralmente, tenha decidido executar um tributo a Karajan.

Um aspecto do debate sobre Karajan, proposto por Dominic Lawson, é se “deveríamos aderir à celebração da vida de um ex-nazista” -e de um homem que jamais renegou suas afiliações passadas. Lawson ampliou a questão para discutir se um mau homem pode fazer boa arte e como devemos nos relacionar com a arte proveniente de fontes maculadas.

Essa questão, relevante quanto a Wagner, importa pouco no caso de Karajan, que jamais criou arte original. Determinar se Herbert von Karajan era um bom ou mau homem é irrelevante. Foi um brilhante organizador, capaz de moldar uma orquestra para executar seu som pessoal, uma capacidade que ele explorou ao extremo.
Karajan infligiu seu ego ao mundo da música clássica de forma que esmagou a independência e a criatividade e prejudicou a imagem da música diante das futuras gerações. Não é o mau homem que deveríamos deplorar, mas o legado reacionário e de exclusão que está sendo “celebrado”.

Para os amantes da música, não há muito a comemorar.

Quando a festa do centenário acabar, a cortina descerá para sempre sobre uma vida reprovável, carente de ideias novas e que não afirmou nenhum valor humano digno. Karajan está morto, e a música passa muito melhor sem ele.

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Notas de Concerto — 16 de outubro de 2023

Notas de Concerto — 16 de outubro de 2023

Shostakovich nasceu em 1906, enquanto Stravinsky veio ao mundo em 1882. Ou seja, Stravinsky nasceu 24 anos antes. As obras mais famosas deste – A Sagração da Primavera, Pétrouchka e O Pássaro de Fogo – foram escritas entre 1910 e 1913, quando Shostakovich era uma criança.

Stravinsky foi o russo cosmopolita. Quando ocorreu a Revolução de 1917, estava em Paris, onde estreara suas principais obras com enorme sucesso e escândalo. Lembrem que quando da Revolução, Shostakovich tinha 11 anos.

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A conselho de Rimsky-Korsakov, o compositor russo mais importante de seu tempo, Stravinsky decidiu não entrar no Conservatório de São Petersburgo, em vez disso teve o próprio Korsakov como tutor privado. Diga-se de passagem que Rimsky-Korsakov foi um segundo pai para ele.

Em 1909, o seu Fogos de Artifício foi executado em São Petersburgo, estando presente Serguei Diaghilev, diretor dos Ballets Russes em Paris. Diaghilev ficou impressionado o suficiente para encarregar Stravinsky de algumas orquestrações e para incentivá-lo a compor uma partitura completa de ballet. Isto resultou em O Pássaro de Fogo e em Paris.

Em 1919, aos 13 anos, Shostakovich foi admitido no Conservatório de Petrogrado, então chefiado por Glazunov, que acompanhou seu progresso de perto. Em 1925, aos 19 anos, matriculou-se em aulas de regência.

Em 1925, ainda aos 19 anos, escreveu uma Sinfonia como “peça de formatura”. Shostakovich aspirava apenas tocá-la em particular com a orquestra do conservatório e se preparava para ele mesmo reger. Porém, os professores tiveram suas atenções chamadas pela obra e esta acabou sendo estreada publicamente no final de 1925 pela Orquestra Filarmônica de Leningrado. (1914: Petrogrado, 1924: Leningrado)

É claro que Stravinsky e Shostakovich foram dois grandes talentos precoces, apesar de personalidades inteiramente diferentes. O primeiro era um homem do mundo, um personagem do jet set internacional, o segundo era bem mais retraído e torturado, apesar de saber como ninguém ser sarcástico.

Há uma historinha curiosa entre ambos. Stravinsky tinha enorme habilidade social. Em sua primeira visita à União Soviética, em 1963, após mais de 50 anos de ausência, promoveram um evento social para o qual Shostakovich foi, obviamente, convidado. Os grandes gênios finalmente se encontrariam. Como Shostakovich era silencioso por natureza — e ainda mais quando observado pela KGB –, Igor ficou matutando sobre como trazê-lo para a conversa geral. E, inteligente, procurou em sua mente algo que ambos certamente detestariam. E encontrou Puccini! A princípio, ao ser citado o nome do italiano, Shostakovich fez uma cara contrafeita, mas depois a dupla conversou a noite inteira e não só sobre o italiano. Como veem, o ódio pode ser motor de coisas boas.

Outro fato digno de nota é que na mesa de trabalho de Shostakovich havia fotos de Stravinsky. Ele era fã do cara.

A música de ambos têm poucos pontos de contato. Stravinsky teve seu período russo, depois um longo período neoclássico – onde revisitava, a seu modo, a música de Mozart e Bach e seus contemporâneos, principalmente Pergolesi. Nesta fase, o compositor abandona as grandes orquestras exigidas pelos balés, voltando-se para os instrumentos de sopro, o piano, o coral e obras de câmara. Sua última fase foi a serial, incluindo o dodecafonismo de Schoenberg.

Já a evolução de Shostakovich apenas teve as quebras ordenadas pelo Partido. Algumas vezes, foi obrigado a escrever peças dentro das normas do Realismo Socialista, mas estas não alteraram a espinha dorsal de sua obra. Aliás, ele costumava ficar subitamente pouco inspirado quando compunha tais obras e nenhuma delas tem parte importante de seu repertório.

Mas lembrem que Shostakovich era um patriota e criou espontaneamente obras notáveis inspiradas pelo momentos como a Sinfonia Nº 7, Leningrado, um hino à resistência soviética. Mas também condenou as mortes em Babi Yar (em Kiev, Ucrânia) na Sinfonia Nº 13, onde milhares de judeus foram assassinados pelos nazistas com a ajuda soviética, ao que tudo indica.

Mas vamos às obras.

O Concerto Nº 2 para Violoncelo e Orquestra, Op. 126, é de 1966, ou seja, da última década de vida de Shostakovich. Ele tinha novamente caído em boas graças oficiais após viver e suportar várias vezes o ciclo de denúncia seguida de reabilitação. A URSS homenageou-o com múltiplas medalhas de Estado no concerto em que este concerto foi estreado. Era a data de aniversário de 60 anos do compositor. Mesmo que tenha sido inicialmente concebido como uma Sinfonia, o Concerto, dedicado a Rostropovich, é extraordinário, alternando passagens da maior tristeza com trechos bizarros e danças fantásticas. O final é típico do compositor, sendo especialmente sarcástico e inesperado.

Shostakovich dedicou seus dois concertos para violoncelo para Mstislav Rostropovich. O Primeiro, concluído em 1959, é uma obra espinhosa repleta do recorrente motivo DSCH (as iniciais de Shostakovich transferidas para a notação musical) e citações zombeteiras à canção favorita de Stalin.

O Segundo Concerto para Violoncelo foi composto entre a 13ª e a 14ª Sinfonias, ambas muito críticas, cantadas e com textos provocativos.

O primeiro movimento (Largo) começa com a voz lamentosa do violoncelo solitário. Uma melodia melódica triste, abre a porta para uma conversa musical sombria e cada vez mais intensa. O segundo tema chega como uma dança bizarra e sardônica iniciada pelo xilofone e instrumentos de sopro. Então, a música se desintegra em uma cadência de violoncelo solo, pontuada por violentos golpes de bumbo.

O tema principal do segundo movimento (Allegretto) é uma citação grotesca de uma canção de Odessa. Há uma alegria amarga nas melodias de sabor judaico nas últimas obras de Shostakovich. Depois temos um scherzo frenético e demoníaco que nos conduz diretamente para o movimento final. Os compassos finais desaparecem com um “tick-tock” incessante na percussão. Ficamos com o absurdo pousado em nosso colo.

Pétrouchka é um balé burlesco de Igor Stravinsky composto em 1911 e revisado em 1947. Foi montado pela primeira vez pela companhia russa de Serguei Diaguilev no ano de sua primeira versão. Nijinski encarnou Pétrouchka. A história é sobre um fantoche tradicional russo que é feito de palha com um saco de serragem como corpo e que ganha vida e capacidade de amar. A obra sobrevive perfeitamente como peça de concerto e, apesar de complexa para qualquer orquestra, é deliciosa de ouvir, com seus vários e atraentes temas.

O fervilhamento de timbres, de melodias de inspiração folclórica, a riqueza rítmica estão entre os elementos que compõem o cenário onde passa, dançando, um grupo de bêbados, e aparecem, em delicado contraste, um tocador de realejo, uma dançarina que marca o compasso com a ajuda de um triângulo … É nesta cena de rua, caleidoscópica, que surgem as personagens centrais da história. Anunciado pelos tambores, um teatro de marionetes atrai a atenção do público.

No balé, Petrouchka é um dos personagens de um teatro de marionetes, juntamente com uma bailarina e um mouro.

Tudo começa na Feira de Carnaval de São Petersburgo, no início do século XIX, onde vários grupos de artistas se apresentam.

Um mágico encena um pequeno teatro de marionetes. Uma cortina se abre e revela os três bonecos, que ganham vida e dançam em seus eixos quando o mágico toca sua flauta. Então, em um passe de mágica, para espanto dos presentes, os bonecos saem de seu palco e dançam no meio do povo.

Na segunda cena, já no quarto de Petrouchka, vemos que o boneco possui emoções humanas, e que ele encontra consolo para sua condição de marionete no amor que sente pela bailarina. A bailarina entre em cena e o boneco se declara para ela, mas é rejeitado.

Na terceira cena, vemos o Mouro em seu quarto, e o mágico coloca a bailarina para seduzi-lo, depois colocando Petruchka no quarto também. Petruchka tenta enfrentar o mouro, mas acaba sendo perseguido por ele.

Na cena final, de volta à festa, as pessoas notam barulhos estranhos no teatro de marionetes, de onde sai Petruchka perseguido, até ser alcançado pelo Mouro que o golpeia com a espada.

A multidão entra em pânico, a polícia pede esclarecimentos, e o mágico justifica que nada errado foi feito, que Petruchka era apenas um boneco de palha. A polícia fica satisfeita com a explicação e, junto da multidão, esvaziam o palco, deixando apenas o mágico segurando o boneco.

O mágico vai voltando para dentro do teatro quando nota, em cima do mesmo, o fantasma de Petrouchka, se sacudindo e chamando sua atenção, sacudindo seu punho.

Este que vos escreve, falando.

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Brian May sobre John Lennon

O Queen sempre reverenciou os Beatles, pois os tinham como uma grande inspiração no mundo da música. Quando John foi assassinado em 8 de dezembro de 1980, a banda tocou uma versão de “Imagine” como homenagem, na noite seguinte, em seu show em Londres, e mais 3 vezes naquele mês. Neste texto enviado para a Classic Rock, Brian fala um pouco da importância do ídolo em sua vida.

POR QUE EU AMO JOHN LENNON, POR BRIAN MAY

“Eu não tinha permissão para ir ver os Beatles quando eu era criança. Meus pais pensavam que os shows de música pop eram frequentados pelo tipo errado de gente. Então, eu nunca pude ver o maior fenômeno do século 20 ao vivo. Mas a partir do momento em que ouvi ‘Love Me Do’ no rádio, eu sabia que esse grupo de garotos era mágico…que eles expressavam toda a minha alegria e anseios escondidos quando adolescente, lutando para achar seu caminho no mundo dos anos 60.

É impossível duvidar que a combinação dos quatro rapazes fosse única, uma peça mágica em um milhão – o grupo de rock perfeito para inspirar todos os outros grupos de rock, e reescrever a estrutura não apenas da música popular, mas de toda a cultura dos jovens. Mas, com o passar do tempo, tornou-se evidente que John Lennon estava no coração desse poder impressionante.

Ao lado do seu amigo e gênio melódico Paul McCartney, o fogo espiritual emergente de George Harrison e, sem dúvidas, o baterista mais original de sua época, Ringo Starr, foi o ácido Lennon que manteve os Beatles firmemente distantes do comum, e nos extremos da criatividade perigosa.

Não há espaço suficiente aqui para eu falar sobre todas as obras-primas de Lennon, mas confira ‘Tomorrow Never Knows’, ‘Lucy In The Sky With Diamonds’ e depois ‘I am The Walrus’ e ‘Strawberry Fields Forever’ e me diga se você não fica espantado…nunca foi criado nada como esses trabalhos em toda a história.

Lennon, de um adolescente francamente nada glamoroso, sempre emburrado, tornou-se o cara mais cool do mundo. Ele foi cool o suficiente para escrever a melhor música pop adolescente de todos os tempos (na minha humilde opinião, etc..) ‘I Want To Hold Your Hand’; abraçar a psicodelia e torná-la musicalmente válida; deixar os Beatles quando sentiu que tudo se tornara um jogo superficial do qual ele não queria mais participar; e depois colocar todo o seu ser na promoção da paz em seu trabalho solo, produzindo quase certamente os maiores, mais ousados e reveladores álbuns solo já feitos, incluindo músicas como ‘Jealous Guy’, a dura ‘God’, e o hino imortal para a humanidade, ‘Imagine’.

Lennon, para todos nós da pós-revolução (seja lá qual tenha sido…) músicos, ele foi, é, e sempre será …ISSO. Não digo mais nada.”

Fonte: loudersound.com

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