Não sou nada dado à classificações. Não costumo ler um livro e colocá-lo neste ou naquele escaninho, mas classifiquei este livro num pequeno vídeo que fiz ontem. Para minha própria surpresa, eu enfiei um “neorregionalista”. Agora, com mais espaço e sem a pressão de uma câmera, tentarei explicar meus motivos. Ora, entendo regionalismo quando o autor se utiliza de uma grupo particular de palavras, expressões e maneirismos linguísticos de uma determinada localização geográfica. Geralmente, tal linguagem origina-se em fatores históricos da cultura regional. O prefixo neo correu por conta de minha insegurança e da minha necessidade de diferenciá-lo do romance regionalista dos anos 30 do século passado. Mas comparei-o a Sergio Faraco — na minha opinião e na de muita gente o maior contista brasileiro vivo — e esta é uma comparação válida pelos temas e região.
Sem contrapor As Irmãs com outros livros, digo-lhes que aqui o gauchismo está misturado à mitos e tragédias gregas, havendo inclusive um mapa para a melhor compreensão da relação contos x mitos ao final do livro. Novamente sem querer confrontar alhos e bugalhos, explico que o mapa é parecido com aquele que temos no Ulysses de Joyce, só que aqui os mitos passeiam por Rosário do Sul, Cruz Alta ou São José dos Ausentes, cidades deste nosso pobre e malgovernado Rio Grande do Sul, e os textos não são nada intrincados.
Li os contos inteiramente esquecido dos mitos a que se referiam porque as histórias são realmente boas e interessantes. Ou seja, o livro é uma delícia que pode ser lida como literatura de alta qualidade sem mais. Mas alguém mais culto ou curioso irá notar ou pulará direto ao mapa para ver que mito é aquele, coisa que, repito, não fiz.
O que fiz foi me divertir com as histórias de Prates nestes dias terríveis em nosso estado. Destaco os contos que têm a presença de Nhô Salustiano, o peão contador de histórias, além de As Trovoadas, A Travessia, As Irmãs, A Lanterna e O Retorno.
Recomendo!
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Às vezes acontecem coisas incrivelmente bonitas por aqui. Dia desses, entrou uma senhora na Livraria Bamboletras. Depois eu soube que seu nome era Circe, o que me lembrou da Odisseia de Homero e do Ulysses de Joyce. Ah, esses caras metidos a literatos, né? Mas esqueçam, isso não interessa.
O fato é que ela olhou a escada que leva ao andar de cima e vieram-lhe lágrimas aos olhos. Eu achei que ela estava triste, só isso, e me virei de costas para não constrangê-la. Afinal, ela não estava olhando para mim e sim para a escada. Então, ela chegou ao balcão e disse:
— Vocês mantiveram a escada do tempo de meu avô…
Aí não entendi mais nada. A Bamboletras está em uma ex-igreja. Que negócio é esse de avô? Circe tratou de se refazer.
— Te explico. Meu avô construiu esta casa, depois veio a igreja e reformou tudo, colocando vitrais, torres e derrubando algumas paredes. Ele construiu isso aqui na primeira metade do século passado.
E ela começou a me contar como era tudo — o piano que ficava debaixo da escada, o local onde as visitas eram recebidas, onde ela dormia, as já apagadas marcas no reboco com as “assinaturas” de todos os netos, a sacada que não existe mais e que ficava voltada para o pátio…
E então ela me contou a mais bela das histórias.
Sua mãe, quando jovem adolescente, ia frequentemente até a sacada, para tomar sol, ler e estudar. Ao lado, ficava um edifício com suas janelas. Aliás, ele ainda está no mesmo lugar. Um jovem rapaz que morava num dos apartamentos costumava observar aquela moça que ficava ou flanava pela sacada, que era enorme. Um dia, o rapaz resolveu que tinha que falar com ela de qualquer maneira. Escreveu declarações de amor numa folha de caderno, enrolou a folha numa batata para que não fizesse muito barulho ao cair e atirou o artefato quando a moça estava por ali. Ela pegou a batata, leu tudo e acabou vendo o rapaz na janela.
Ela deve ter gostado, pois mandou a batata de volta com algumas perguntas, interessando-se pelo rapaz. A troca de batatas seguiu por um longo tempo, pois namorar não era como agora.
É notável a mudança de gosto trazida pela música historicamente informada, principalmente no barroco. De forma genérica, tudo o que foi gravado antes dos anos 70 é simplesmente absurdo. Estou ouvindo uma velha gravação da Missa em si menor de Bach na Rádio da Ufrgs onde os cantores parecem estar todos desesperados. Estão cantando Bach como um bando de loucos sem noção, como se cantassem Verdi em momento de morte iminente ou paixão avassaladora. Além de coro e orquestra enormes, anabolizados. A coisa é insuportável e ainda está na metade. Quero até saber quem fez isso. Vou tratar de aguentar.
(Era Otto Klemperer. Com Janet Baker, Hermann Prey, Nova Philharmonia e Coro da BBC. Um Bach com molho pesadíssimo de 1967).
7, 10, 13, 16, 19… Sim, de três em três dias haverá jogos do Inter neste mês de maio. Haja jogador! Como diria o bolsonarista Renato, tantos jogos assim refletem a grandeza do Gr… Nada disso, reflete é a bagunça do calendário da CBF. Tem jogos em todos os dias da semana. E três contra o Juventude.
Compromissos do Inter em maio:
— 07 (terça-feira) – Real Tomayapo, na Bolívia, às 21h (Sul-Americana)
— 10 (sexta-feira) – Juventude, no Beira-Rio, às 21h (Copa do Brasil)
— 13 (segunda-feira) – Juventude, no Beira-Rio, às 21h (Brasileirão)
— 16 (quinta-feira) – Delfín, no Beira-Rio, às 19h (Sul-Americana)
— 19 (domingo) – Cuiabá, na Arena Pantanal, às 18h30 (Brasileirão)
— 22 (quarta-feira) – Juventude, no Jaconi, às 21h30 (Copa do Brasil)
— 25 (sábado) – São Paulo, no Beira-Rio, às 21h (Brasileirão)
— 28 (terça-feira) – Belgrano, no Beira-Rio, às 21h30 (Sul-Americana)
“23 de fevereiro de 1981”. Saímos com J. do recital de poesia e paramos no saguão da 92nd Street Y para conversar sobre os poemas que acabamos de ouvir. De onde estou, olhei para um homem atraente parado na frente da porta. Ele tem um rosto magro, olhos enormes e uma boca pequena e delicada; cabelos quase finos e pele morena clara. Ele fuma um charuto e se enrola dentro de seu casaco de couro e calça jeans toda vez que o coloca nos lábios. Percebo que ele tem pés bem grandes e gosto desses pés também. Em questão de segundos cobri-o com o olhar e sinto-me tonta com a atração. Não me lembro se J. me viu comê-lo com os olhos e me disse que o conhecia, ou se perguntei se ele tinha alguma ideia de quem ele seria. “É Paul Auster – disse ele –, o poeta.” Ele nos apresenta e nós três vamos de táxi até o centro. No banco de trás, Paul fala sobre George Oppen, o poeta que acabou de visitar na Califórnia. Gosto da voz dele e do calor e da ternura que percebo nela quando fala de “George”. Eu não sabia na época, mas agora me pergunto se o que ouvi parece familiar. Meu pai tinha essa qualidade quando estava vivo… Sua voz mudava quando ele falava sobre alguém que apreciava. No táxi já estou apaixonada, delirante, embelezada, levada, e tento esconder. O homem a meu lado não reflete isso. Vejo isso em seus olhos velados e pensativos.
Não o deixo sozinho nem por um momento. Na festa só falei com ele. Nós conversamos e conversamos. Descemos a rua e conversamos. Sentamos em um bar e conversamos. Seus lindos olhos começam a me focar. Ele está me observando, ele está me ouvindo. Posso ver que ele gosta de mim.
É madrugada e estamos juntos na West Broadway. Estou tão perto dele, olhando-o na cara, mas agora, depois de horas e horas de conversa, não tenho mais nada a dizer. Está tarde. A noite acabou e irei para casa pensar sobre isso. De repente ele me beija, e é o melhor beijo de todos. Um táxi para e embarcamos juntos.
Pouco depois li seus poemas, seus ensaios e finalmente a primeira metade de A invenção da Solidão, “Retrato de um Homem Invisível”. Nessa altura já lido muitos livros, Era uma historiadora que estava se preparando para a literatura, mas estes surpreenderam-me pela originalidade. Conheci o homem antes de ler o que ele havia escrito, mas se eu não estivesse tão entusiasmada com seu trabalho quanto com ele, ou se ele não tivesse depois admirado minha maneira de escrever, talvez as coisas fossem mudar depois. Nosso trabalho constituiu um componente íntimo da nossa relação amorosa e dos nossos 23 anos de casamento, mas o que leio dele vem daquele lugar dentro dele que eu nunca conhecerei.
—Siri Hustvedt
(Trecho de Uma história sobre o eu ferido — 2004).
Está chovendo novamente… Olho no celular e minha irmã está me avisando que Paul Auster morreu. O dia piora. Complicações de um câncer no pulmão.
Foi um enorme escritor e criador. Tem 30 romances, escreveu poesia, roteiros de filmes e até dirigiu um.
Vi-o no antigo Fronteiras do Pensamento. Foi quase uma entrevista ao vivo. Era um sujeito tranquilo, envolvente, educadíssimo, deu vontade de virar a noite conversando com ele. Ninguém queria que acabasse.
Devo ter lido uns 10 livros dele. Não vou ser original: amo a Trilogia de Nova York. A foto que posto é da minha irmã. Ela diz que têm esses Auster e pede mais para a Livraria de seu irmão. Eu, no caso.
Ah, hoje é o Dia do Trabalhador. Os trabalhadores da Livraria Bamboletras estão em casa, mas eu estou aqui aguardando vocês até às 17h. Ler com chuva é o máximo. Podem vir.
Caiu-me nas mãos este clássico que li quando adolescente e lá se vão 50 anos. Por que não relê-lo? É um dos livros mais importantes de nossa literatura e, mesmo 50 anos depois, lembrava-me de todo o capítulo da morte da cachorra Baleia em detalhes, quase palavra por palavra, principalmente o final. Nesta segunda leitura, ficou clara a intenção inicial de que Vidas Secas (1938) fosse um livro de contos. Cada capítulo pode ser lido separadamente, mas o todo forma um estupendo romance. O que parecia um mosaico bem montado na primeira leitura, me apareceu mais avulso agora, como se fossem fatos jogados muito artisticamente pelo velho Graça. Ou como quadros de uma exposição.
Vidas Secas foi o único romance que Graciliano escreveu na terceira pessoa. Por motivos de ordem puramente financeira, ele enviava os capítulos para jornais e revistas. Dos 13 capítulos, oito saíram antes em periódicos. Baleia, que é o Capítulo 9, foi o primeiro a ser escrito e publicado. Era um conto sobre a morte de uma cachorra. O quarto, Sinhá Vitória foi o segundo a ser escrito. Mudança, o primeiro, foi o terceiro a ser escrito. Não havia um roteiro. O foco era dado em momentos-chave daquelas seis vidas sofridas — pai, mãe, 2 fihos, mais Baleia e o papagaio –, mas as algumas peças podem ser retiradas do romance e a ordem pode até ser alterada, desde que com cuidado. A unidade vem do tema. Rubem Braga chamou-o, com razão, de “romance desmontável”.
A história é de retirantes nordestinos fugindo da seca, passando fome e sendo enganados financeiramente pelo proprietário da fazenda, que se utiliza da ignorância e do medo de Fabiano, o pai e marido. O estilo é igualmente seco, minimalista, sem firulas. Mesmo aquilo que poderia ser patético ou ridículo, como a prisão e a ida à festa, é narrado com enorme economia, sem julgamentos ou teorizações. Foi assim e pronto. Não é um ensaio, é pura ficção cortante. O que interessa à Graciliano é o homem e seu sofrimento. o ser primitivo e (muito) limitado que tenta sobreviver a um ambiente hostil e injusto. Graciliano não era um sujeito apenas engajado politicamente, era um artista e escritor comunista. Creio que isto fique bem claro neste livro.
Vidas Secas é uma curta obra-prima que desde janeiro, quando a obra de Graça caiu em domínio público, está custando até R$ 19,90. Aproveitem!
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Num domingo à tarde, aqui na Bamboletras, eu estava ouvindo alguma coisa de Bach para cravo. O que ouvia era muito bonito e bem tocado. Fui conferir o nome da cravista, que já tinha visto ser impronunciável: Zuzana Růžičková (1927-2017), uma tcheca.
Consultei o Google para saber quem era. Soube que ela tinha sido a primeira pessoa a gravar a obra completa de Bach para teclado. Foram 21 LPs (depois 20 CDs) gravados entre 1965 e 74. Mas o que me impressionou mesmo foi que ela tinha vivido 90 anos e passado por três campos de extermínio nazistas. Um deles tinha sido Auschwitz.
Judia, ela sobreviveu, claro. Se não o tivesse, não estaria tocando na Livraria… Descobri também que ela tinha escrito uma autobiografia. Só que eu estou cheio de ler livros sobre o Holocausto. Mas, OK, pedi o livro, que é recente.
Depois de passar dois meses no hospital, minha mulher Elena ainda tem dificuldades para dormir. Então eu leio livros para ela todas as noites. Já terminamos vários. E comecei a ler “Cem Milagres” em voz alta para ela. O livro é ótimo e mudamos de problema, porque a Elena ia ficando cada vez mais acordada enquanto leio.
Foi escrito a 4 mãos. Uma jornalista inglesa gravou as memórias de Zuzana e passou para o papel. Um dos milagres foi que a cravista faleceu 5 dias após finalizarem as entrevistas. Ela conta não apenas sua vida com os nazistas — permaneceu quase 5 anos presa –, mas sua vida sob o desconfiado stalinismo tcheco do pós-guerra, quando dava concertos em Paris, Londres mas também em pequenas cidades do interior da Tchecoslováquia, para operários, ou conhecedores de música.
O livro não obedece a ordem cronológica. Ainda bem, porque ler juntos os capítulos sobre os campos de Terezín, Auschwitz e Berger-Belsen seria insuportável para o leitor. A verossimilhança e o detalhamento da narrativa são muito abrasivos para qualquer um. Então a biografia alterna capítulos de diversas fases da vida de Zuzana e seus diversos milagres. Milagres de sorte, de azar, de talento, de ter vivido sob o nazismo e o comunismo, de ser mulher e judia, de ser cravista em vez de pianista, de ser uma pioneira, de tentar lembrar da música nas piores condições possíveis e muitas vezes esquecê-la.
É um livro profundamente humano sobre uma grande personalidade que, sempre que não sabia para onde correr, perguntava a si mesma: e agora, o que faria Bach? Imaginem que ela foi professora de Christopher Hogwood e Mahan Esfahani, que foram residir em Praga durante um bom período para aprenderem com ela.
E quando ela fala em milagres, não está brincando. Só para dar o exemplo de uma ocorrência que está no primeiro ou segundo capítulo: certa vez, em 1960, ela estava dentro de um trem que bateu em outro. Ela voou dentro do vagão e sua mala cheia de partituras caiu sobre ela. Com uma dor forte nas costas, dispensou uma maior investigação — pois tinha um estúdio reservado para uma gravação — e foi para a casa carregando suas coisas. Na manhã seguinte, foi gravar apenas as difíceis Variações Goldberg, de Bach. Um trabalhão, ainda mais que as costas doíam muito. Depois de gravar, foi ver um médico e… Soube que tinha simplesmente quebrado a espinha dorsal. O médico não sabia como ela conseguia caminhar… A gravação? Quando já estava imobilizada, disseram-lhe que ficou ótima e que ia ser lançada.
Então, se você quer um livro encharcado em humanidade, é este.
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Virginia, 17 anos, viaja com o pai de Madrid para uma cidade não identificada no norte de Espanha para conhecer Sonya e Andrew Kopp, um casal inglês que por sua vez viaja a fim de que Andrew possa receber um prêmio da Coroa pelas suas obras históricas. Eles têm um filho (é filho mesmo?) chamado Bertrand, um personagem muito estranho, com traços entre esquizóide e autista, e não sabemos até o final se ele é realmente um artista, como dizem Sonya e Andrew, ou simplesmente uma pessoa com problemas severos. Virginia desenvolverá um afeto incômodo por Bertrand, um misto de atração e repulsa que dará o tom de toda a história.
Quase nada saberemos da vida de Virgínia e de seu pai fora desta circunstância particular, o que dá ainda mais força ao estranho efeito do que é contado. Longe do seu cotidiano, a narradora-protagonista está atenta a cada detalhe, como se precisasse reaprender tudo o que sabe. Além disso, encontra-se sozinha num mundo adulto. Na verdade, todos os personagens estão arrancados do seu cotidiano: estão todos viajando, tampouco a família Kopp está em seu país de origem. Até Virginia parece meio fora de si, sempre surpresa por ostentar um corpo de mulher (ou pelas pessoas fazerem referências ao fato).
Sonya é a séria. Andrew parece alguém feliz e indiferente. Bertrand é meio maluco, é a fissura deste mundo adulto. Todos parecem negar a estranheza do seu comportamento — inclusive Juan, o pai de Virginia — nos ambientes formais do hotel e na cerimônia de entrega do prêmio de Andrew que, assim como Juan, é um acadêmico rico, de prestígio. Já Bertrand, um sujeito grande de 40 anos, o que acentua o contraste, é uma criança. O restante das pessoas ao seu redor tentam ignorar esse detalhe e fingir que Bertrand é “normal”, o que será questionado por Virgínia em diálogos com seu pai. Mas parte da transição de Virginia para a idade adulta terá a ver com o fato de suas respostas não a satisfazerem. Juan continua se comportando como se nada estivesse acontecendo, embora passe a Virgínia pequenas informações que a ajudarão a montar um pedaço do quebra-cabeça da família Kopp.
Em um livro narrado na primeira pessoa, às vezes Virginia se dirige à Sonya, de quem não gosta nem um pouco. Todos os acontecimentos parecem gratuitos e não levar a história para lugar nenhum. O livro de Xita é sobre amadurecimento e relações familiares complexas e traz aquele assombro de quem está crescendo diante dos paradoxos do mundo adulto.
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Hoje, já estou já no quarto CD de obras de Bach para teclado, interpretadas ao cravo.
Eu adoro o som do cravo. Posso passar horas ouvindo, mas o cravo é um instrumento estranhamente polêmico, que divide opiniões.
Para alguns, ele sempre trará à mente o tema da Família Addams, uma associação que alguns podem considerar inteiramente correta.
O maestro Thomas Beecham comparou o som do instrumento ao barulho feito por “dois esqueletos copulando em um telhado de zinco”. O compositor John Cage comparou-o a uma máquina de costura.
Lauro Machado Coelho (1944-2018) foi um Jornalista Cultural — assim mesmo, com maiúsculas. Ele escreveu incontáveis artigos e colunas em jornais, vários livros sobre ópera, um livro extraordinário sobre Shostakovich e outros não menos sobre Sibelius, Berlioz, Liszt, Bartók e Akhmátova, além deste sobre Bruckner.
O texto de Lauro é delicioso e nos traz todo o contexto dos compositores sem cair em preconceitos pré-moldados pelas posições políticas ou estéticas do autor e outros. Seu livro sobre Bruckner é uma joia até para quem não se interessa pelo compositor.
Pois ele é uma figuraça! Em O Menestrel de Deus temos o ambiente rural e quase tacanho em que o compositor nasceu, a descrição de sua insegurança, seu alto conhecimento e seus incríveis — de modo positivo — resultados como aluno. Porém, mesmo sendo um genial improvisador ao órgão, professor e compositor, Bruckner era um ingênuo que propunha casamento às moças mais inatingíveis, era hiper religioso, anotava tudo o que fazia, gastava e recebia, e sabia quantas árvores existiam em todos os seus caminhos diários, pois as contava, além de outras esquisitices. Quando transferiu-se de Linz para Viena, quiser saber se seria aceito de volta caso fosse um insucesso em Viena.
Também ficava agradecido a quem regia sua música, a ponto de se submeter a humilhações. Halb Genie, halb Trottel (metade gênio, metade pateta) era o que se dizia dele. Podem imaginar esse homem saído da pequena Linz (Sankt Florian) para a sofisticada Viena? Pois ele adquiriu o respeito de gente como, por exemplo, Gustav Mahler. Sua música foi adotada por Hitler como símbolo da força e da pureza arianas, mas logo os historiadores descobriram que, Bruckner, devoto de Richard Wagner, não era nem um pouco antissemita e o nazismo desgrudou dele assim que a guerra acabou.
O livro de Lauro Machado Coelho passa por tudo isso: por toda a biografia deste homem genial e inseguro, por suas influências e por quem ele acabou influenciando. Temos toda sua formação como músico, seus esforços para fazer aceitar a sua obra – inclusive revisando e deixando revisar tantas vezes as suas sinfonias… Mas também da obra única de um homem que, animado por uma fé sem conflitos em seu “bom Senhor Deus”, deixou uma obra esplêndida.
Ou seja, para quem se interessa por música, este livro é um banquete.
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Anton Bruckner tem um fato post mortem muito curioso. Adotada por Hitler, sua música tornou-se um autêntico símbolo do nazismo. Hitler achava sua música muito poderosa, séria, pura e, portanto, ariana. Só que Bruckner, ao contrário de Wagner e Orff, “destornou-se” muito rapidamente.
Imaginem que o Adágio da Sétima Sinfonia foi o tema escolhido por algumas emissoras de rádio remanescentes para anunciar a morte de Hitler. Imaginem que Hitler entrava nos Congressos sob fanfarras da Terceira Sinfonia…
Ocorre que o velho Bruckner — morto em 1896 — entrou nessa de gaiato, pois nunca foi antissemita, mesmo sendo wagneriano de quatro costados. Pelo contrário, muitas de suas obras foram estreadas por maestros judeus, a convite do compositor, além de ser amigo do jovem Gustav Mahler.
É normal contratar jogadores que estão em baixa no futebol europeu. D’Alessandro estava dando sopa no San Lorenzo porque não deu certo nem na Espanha e nem na Alemanha.
É o caso de Borré. Falei hoje com um colombiano que diz que até na seleção do país ele é contestado. Mas lembro bem dele no River. Era um avião e acho que dá para consertá-lo. Tem 28 anos.
Só acho que ele podia parar com aquele negócio de bater continência.
Hoje é o dia em que a Paixão Segundo João, de Johann Sebastian Bach, completa 300 anos. Digo Paixão Segundo João traduzindo à perfeição o título da obra. A outra grande Paixão de Bach também chama-se Paixão Segundo Mateus e não “Segundo São Mateus”.
A obra é uma representação dramática do texto contido no Evangelho de João, interpretada por coro, solistas e orquestra dentro de árias, corais e recitativos. O dia de sua primeira apresentação, em 7 de abril de 1724, foi a sexta-feira da Semana Santa daquele ano.
Ambas, Mateus e João, são obras belíssimas, perfeitas e insuperáveis em seu gênero. Porém, se eu tivesse que escolher uma delas para levar para a ilha deserta, levaria a aniversariante de hoje, que é menos monumental e mais moderna.
Bach sempre teve notáveis intérpretes e, dentre os vivos, ninguém supera a gravação abaixo, que será postada hoje no PQP Bach.
Há 55 anos, no dia 6 de abril de 1969, eu estava na inauguração do Beira-Rio. Inter 2 x 1 Benfica, gols de Claudiomiro (foto), Eusébio (Benfica) e Gilson Porto. Eu tinha 11 anos.
Na final do Campeonato Brasileiro de 1976, o Inter foi proibido de prestar homenagem a João Goulart, seu ex-jogador. Jango morreu em 6 de dezembro de 1976 e a final foi em 12 de dezembro.
Assinado sob o pseudônimo de Paula Ledesma, Nossa Parte de Noite juntou-se a mais de 650 outros originais apresentados à seleção de 2019 do Prêmio Herralde de Romance — uma das mais importantes premiações da literatura de língua espanhola. A história acompanha pai e filho cruzando a Argentina de carro sob os olhos de soldados armados, no ambiente da ditadura militar, despertando interesse e aflição. Há ocultismo, ocorrem coisas inexplicáveis e é impossível parar de lê-lo. O livro tem, ao mesmo tempo, várias narrativas e impressiona pelo domínio com que Mariana Enriquez constrói o enredo em várias direções e contextos. Ela ganhou o prêmio, claro, foi a primeira mulher a fazê-lo.
Bem, a maior parte do romance trata de temas que não são de minha preferência, porém, já disse, não parei de ler, não poderia largar.
Gaspar é o filho de Juan Peterson. O pai, em solitária cruzada, trata de proteger seu filho do destino que lhe foi designado. A mãe do menino já morreu em circunstâncias obscuras. Gaspar, como seu pai fora, recebeu um chamado para ser médium de uma sociedade secreta, a Ordem, que se relaciona com a Escuridão em busca de vida eterna em rituais brutais. Para tais rituais, é imprescidível a presença de um médium, mas o destino desses detentores de poderes especiais é cruel, já que o desgaste físico e mental é muito severo. As origens da Ordem, comandada pela família da mãe de Gaspar, remontam a séculos, quando o conhecimento da Escuridão foi trazido da África para a Inglaterra e dali à Argentina.
O terror sobrenatural se mistura com outros, reais. Ao lado de casas cujos interiores se transformam, de passagens perigosas, de sacrifícios em rituais de êxtase e dor, de andanças pela maravilhosa Londres dos anos 60, do fetiche por pálpebras humanas, das liturgias sexuais, há a repressão da ditatura militar, os desaparecimentos e, mais tarde, a chegada incerta da democracia e dos primeiros casos de Aids.
Nossa Parte de Noite é um livro perturbador e deslumbrante. A prosa de Mariana Enríquez é muito rica e bem trabalhada, obrigando-nos continuar e continuar mergulhado na história. A inclusão de diferentes vozes narrativas e de vários personagens muito bem definidos conferem ao tema variações e reviravoltas imprevisíveis, às vezes sufocantes… E, portanto, muitas vezes o assunto é o que menos importa. Era meu caso, eu parti de uma posição claramente cética, mas fui absorvendo uma história muito complexa e verdadeiramente estranha.
Há capítulos sobre a vida dilacerada do personagem principal, Juan Peterson, o pai de Gaspar, que vive sempre em tensão, entre doenças, operações cardíacas versus as exigências da Ordem. Sua esposa, a mãe de Gaspar, foi morta em circunstâncias nada claras. Ele tem a necessidade urgente de separar seu filho das influências da família e do tema da Escuridão, pois sabe que se não separar isso continuará com ele depois de sua morte. Quanto ao título, a noite é fundamental, há no livro uma alusão direta, num diálogo entre Juan e seu filho Gaspar, na noite em que vão deitar as cinzas da mãe em um rio. Juan, acariciando o filho, diz mais ou menos assim: “Deixei para você algo meu, espero que não seja amaldiçoado, não sei se posso deixar para você algo que não seja sujo, que não seja escuro, nossa parte de noite.”
Algo curioso aconteceu comigo durante a leitura deste livro, pois entrei e saí da atmosfera do romance sem parar, mas em todos os momentos estive atento e predisposto a acreditar em tudo, absolutamente em tudo. Há momentos de total serenidade, mas o leitor sabe que está numa montanha-russa, num sobe e desce.
Um aspecto que também é de grande interesse são as alusões ao golpe militar na Argentina, às greves, aos desaparecimentos, a um momento histórico muito conflituoso. Nossa Parte de Noite envolve muitos aspectos que não são fáceis de encadear, de unir e de dar continuidade, que ainda assim estão lá perfeitamente lançados. Uma resenhista espanhola identificada apenas como Ros, realizou o exercício de separar os vários temas extras tocados no romance. Vejamos:
— Este é um romance sobre paternidade e amor, Juan é o grande protagonista do romance, ele tem muito para nos dar. É um personagem sombrio mas também é o grande protetor do filho que ama. E, claro, seu filho Gaspar, eles são o centro das atenções em torno do qual gira o romance, embora ao seu redor haja mais pais, mães e filhos e filhas que responderão às inúmeras tramas que se desenvolverão.
— É também um romance sobre o poder, um poder necessário para exercer os ritos a que serão obrigados os personagens. Todos aqueles que fervilham em torno da poderosa família ou que atuam como anfitriões da sociedade secreta, onde tudo é possível. Eles têm poder e o exercem sem limites. Mesmo. Como ditadores.
— Mas também se desenvolve um tema muito mais gentil, que é o tema da amizade. Ela é belamente descrita e totalmente sentida por Gaspar e seus amigos que, estando juntos, viverão uma grande experiência que ficará com eles para sempre, com suas visões e seus medos.
— Também podemos falar da brutalidade, da violência, um tema que surge a cada momento. Mesmo quando parece haver paz e tranquilidade, ela volta, aparecendo sem que percebamos e é uma violência que sempre deixa vítimas. É terrível. Todos e cada um dos personagens do romance, os mais novos e os mais velhos, sofrem com isso. Corpos aparecem mutilados, torturados, desaparecidos, estuprados…
— É um romance sobre a crueldade e a vontade incontrolável de exercê-la, mas, acima de tudo, haverá a luta, o conflito interno contínuo e diário, para que ela não aconteça. Isso se desenvolve em Juan e, claro, em seu filho Gaspar, porque é a herança familiar que ele lhe deixou.
— E acima de tudo há também a Argentina, as ditaduras e as grandes famílias que mexem os pauzinhos, que matam e nada acontece. Para isso há o mais importante, o que não devemos perder, a existência e a exigência da memória. O paralelo é evidente entre os rituais da Ordem e o que acontecia na Argentina.
Mas ainda há muito mais, tudo perfeitamente regido por Mariana Enriquez, juntando-se e encaixando-se à perfeição.
No final… Bem, não vou contar. O final é sensacional.
Mariana diz que uma de suas inspirações foi Sobre Heróis e Tumbas, de Ernesto Sábato. Realmente, sua atenção aos fatos da história argentina mostra que “a vida é um conto de terror”, como no livro de Sábato… Admiradora de Lovecraft, Stephen King e Cormac McCarthy e dizendo ser uma pessoa normal, que tem medo do desconhecido, da morte e da violência, ela nos mostra que o medo que está na página seguinte é o mesmo que podemos encontrar ao dobrar a esquina, só que este será sem arte.
Obs.: Mariana também disse que teve de fazer uma séria curadoria em suas obsessões para escrever o romance. Teve que dosar poesia, música, ocultismo, homens bonitos, doenças, cultos pagãos, sexualidade não normativa… Tudo para que as coisas não saíssem fora de controle. Não saíram.
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Conheci o Dr. Herbert Caro numa loja de discos eruditos de Porto Alegre, a King`s Discos. Lá, eu, ele, o Júlio – que trabalhava na loja – e outros, tínhamos um encontro não marcado mas sempre repetido aos sábados pela manhã. Nós, o grupo dos tarados por música, ficávamos ouvindo as novidades e aprendendo com a inacreditável sabedoria do velho. Quando o conheci, ele já tinha mais de 70 anos. Lembro que tinha 51 a mais do que eu. Não lembro em que ano morreu, deve ter sido entre 1986 e 1990. Creio que Caro não viu a falência do jornal Correio do Povo, onde por décadas publicou suas compreensivas (expressão dele) e lindamente escritas críticas musicais. Como convivi com ele entre meus 20 e 30 anos, era tratado pelo mestre como a criança curiosa que era. Ele tinha atenção especial para comigo e o Júlio, os jovens do grupo, e gostava de me orientar na obra de meus amados Bach e filhos, Mozart, Brahms e Beethoven. Deu-me alguns discos, sempre sob o pretexto de servirem como comprovação de suas opiniões, nunca pelos motivos reais, que eram a amizade e o carinho. Era um alemão que dava de presente um disco e dizia com meio sorriso: “Para aplacarr tua ignorrância”. E se alguém faltasse àqueles encontros, ele reclamava.
Chamávamos o Dr. Caro de “Doktor Carro”, apelido de duplo sentido, pois ao mesmo tempo em que nos referíamos a seu forte sotaque, homenageávamos o grande tradutor de Doutor Fausto (Doktor Faustus) e A Montanha Mágica de Thomas Mann, Auto-de-fé de Elias Canetti, A Morte de Virgílio de Hermann Broch, O Lobo da Estepe e Sidarta de Hermann Hesse, etc. Ele era conhecido por ser de difícil trato, mas gostava de nós e creio que nos levava livres por receio de nossa ironia. Uma vez, pareceu-nos que ele auto-elogiava a tradução (a qual é impecável, insuperável mesmo!) de A Montanha Mágica (uma obra-prima!) e nós começamos a falar sobre a inutilidade de se traduzir uma bosta de livro em que nada acontecia, em que as pessoas ficavam falando sobre o tempo, doenças, guerra e que inaugurava o riquíssimo gênero do erotismo tuberculoso… (Se você não entendeu isto, leia o livro). Depois começamos a falar sobre a “metáfora da Europa” contida na obra e a bobajada alcançou níveis planetários. Viram? Para nós, era facílimo conversar com ele. Ele primeiro ficava com aquela cara escandalizada de alemão rígido: de estão-brrincando-com-algo-que-é-sagrrado-parra-mim. Depois ria conosco. Voltava todos os sábados para nos ensinar e, eventualmente, para apanhar mais um pouquinho.
Inesquecível foi o sábado quando chegaram os 3 LPs com últimas Sonatas de Beethoven tocadas por Maurizio Pollini, pianista falecido há 4 dias. Ele brandia os discos e dizia que aquele monumento não serria esquecido tão cedo. Tinha razão.
Creio que todas as vezes que vi o Doktor Carro foi na loja de discos, a exceção das palestras que ele deu no Goethe sobre a pintura dos mestres holandeses. Ele sabia tudo e ficava irritado quando sua esposa projetava uma página ou um detalhe errado. Não a ofendia, mas ficava visivelmente contrariado.
Outra característica dele era o fato de odiar o calor de Porto Alegre. “A canícula” como ele dizia. Em todos os anos de sua velhice, viajava dia 1° de dezembro e retornava ao final de março quando nossa cidade voltava a ficar suportável. (Eu adoraria poder fazer isso…)
É óbvio que me sinto nostálgico e gratíssimo a ele pelas lições. Sei que muitas opiniões que solto no blog PQP Bach e no Notas de Concerto da Ospa são do Doktor Carro e não minhas.