Um compositor polonês desconhecido, escrevendo música muito sombria, baseada em textos religiosos, em um estilo que não tem apelo instantâneo, mas exige a atenção do ouvinte por quase uma hora. É dificilmente um material capaz de bater de frente com Madonna ou Beyoncé, certo?
No entanto, a Sinfonia Nº 3 de Henryk Górecki (Symphony of Sorrowful Songs) bateu. Em 1993, uma gravação com Dawn Upshaw e a London Sinfonietta, regida por David Zinman, chegou ao topo dos CDs mais vendidos não apenas de eruditos, mas também de populares, e continua sendo o álbum mais vendido de todos os tempos de música de um compositor contemporâneo — vendeu 1 milhão de cópias, ganhou Discos de Ouro, essas coisas.
É difícil que qualquer CD clássico venda tão bem, mas para uma peça clássica contemporânea, cheia de profundidade e nada feliz, vender tanto assim é inédito.
O mais surpreso de todos, talvez, tenha sido o próprio Henryk Górecki, que nunca se propôs a escrever música popular. Ele fazia parte da escola radical de compositores que incluía Szymanowski e Serocki, que ficaram conhecidos como a escola polonesa, conhecida por seu estilo de composição usando massas sonoras altamente dissonantes. O grupo escreveu música que dispensava ritmo e melodia e focava apenas na cor do tom -– e quanto mais áspera e mais dissonante, melhor, arrisco dizer.
Górecki chegou tarde à composição, antes era um respeitado professor de música na universidade de Katowice. Ele estudou em Paris e foi influenciado por Webern, Stockhausen e especialmente Messiaen, cuja música não estava disponível na Polônia controlada da Guerra Fria.
A maior fonte de inspiração de Górecki, no entanto, sempre foi seu fervoroso catolicismo e seu respeito pela herança cultural polonesa, incluindo textos folclóricos e medievais. Para Górecki, a música deve sempre ter significado e mensagem.
Após o período de vanguarda dos anos 1960, Górecki se afastou da dissonância, foi da aspereza para a harmonia. Nos anos 1970, ele pegou carona no movimento minimalista no ocidente e fundiu tudo numa voz única.
A Sinfonia Nº 3, Symphony of Sorrowful Songs, é uma obra de uma hora de duração que exige nossa atenção. É composta de três movimentos, todos rotulados como Lentos. A música tem deliberadamente uma qualidade ritualística de oração, com a intensidade do canto gregoriano. Os três movimentos têm progressões harmônicas extremamente lentas.
Em 1992, quando a Nonesuch gravou a Sinfonia Nº 3, esta já tinha 15 anos de existência. E foi para o topo da venda de discos no Reino Unido. Em dois anos, a Nonesuch comemorava 700 000 cópias no mundo inteiro, e esse valor é pelo menos quatrocentas vezes mais a expectativa de vendas de uma sinfonia de um compositor relativamente desconhecido no séc XX.
Entretanto, o sucesso da gravação não despertou o interesse em outros trabalhos do compositor. Mas seus Quartetos de Cordas são extraordinários. A Nonesuch bem que tentou repetir o feito com outras composições de Górecki, mas o fenômeno não se repetiu.
Pesquisa realizada em conjunto entre as universidades de Michigan e Stanford garante que a leitura de ficção traz diversos benefícios, entre eles a redução do stress e a empatia. Mas vamos nos ater hoje aps fatos médicos. Ela também proporciona uma melhoria na área da memória, pois coloca teu cérebro para trabalhar a imaginação, fundamental para a memorização de longo prazo. O processo de envelhecimento reduz pouco a pouco nossas habilidades cognitivas, entretanto essa perda pode ser recompensada com atividades intelectuais estimulantes. Uma outra pesquisa feita pela Dra. Natalie Phillips (Montreal Cognitive Assessment) investigou o papel da atenção nas modificações que a leitura faz no cérebro. Ela comparou uma leitura dispersa com uma leitura mais engajada, onde entramos pra valer na história. A conclusão foi que a leitura dispersa não aumenta muito a atividade cerebral. Mas aquela em que você se gruda na história faz você aumentar sua atividade cerebral de maneira significativa. Ou seja, a leitura que desperta mais o seu interesse, que mais envolve, é justamente aquela que vai trazer maiores benefícios. Em outras palavras, LÊ AQUILO QUE TU GOSTA, VIVENTE!
Esta é uma ótima notícia para os clientes da Livraria Bamboletras. Afinal, aqui nós temos uma curadoria que pode auxiliar você a encontrar aquele livro que vai grudar em ti que nem chiclete.
Este é Junior Rostirola, pastor evangélico e autor do best-seller “Café com Deus Pai”, livro que deverá ser o mais vendido de 2025. A lastimável figura que o acompanha é, infelizmente, conhecida de todos.
A Livraria Bamboletras tem o orgulho de anunciar que não vendeu nenhum exemplar deste livro este ano. E nem venderá.
A brilhante atuação de Fernanda Torres como embaixadora de nossa melhor cultura deve ser saudada. Num mundo ideal, Fernanda seria clonada para atuar em filmes e como embaixadora ao mesmo tempo. Mas, para ela ficar igualzinha, a Fernanda 2 precisaria de pais e ambiente iguais, então esqueçam minha ficção, ela fracassou. A Fernanda original cresceu sem o sertanejo universitário e os bolsonaristas. Bem, talvez aí se encontre uma boa ficção. Uma Fernanda nova e apenas boba!
Mas o assunto é sério — tem mais uma coisa sobre Fernandinha. Ontem, vi-a chegar no palco do Festival de Santa Bárbara toda de preto e sentar. Repentina e estudadamente, o vestido abriu e ela cruzou as pernas. Foi lindo de ver aquela fenda. Teve graça, estilo e sensualidade. O minimalismo tem classe, penso eu com meus botões e chinelos de dedo. Estou neste mundo há 67 anos e sei que, antigamente, mulheres de 59 anos, não se permitiam a isso, eram consideradas umas velhas e deviam se comportar de acordo com as normas da decência e da menopausa.
Era uma bobagem, né? Observo mulheres há mais de 50 anos e as adoro. Por exemplo, como são belas aquelas velhas atrizes inglesas que vão ganhando idade naturalmente, com o talento e a inteligência se derramando pelos olhos! Vanessa Redgrave, Judi Dench, Helen Mirren, Maggie Smith… Elas capturam nossos olhos.
Hoje pela manhã, inaugurei uma estratégia de vendas inédita na tua, na nossa Livraria Bamboletras. Adianto que não deu certo. Ou deu.
Desci, liguei os computadores, abri a porta e comecei a responder as mensagens do WhatsApp. Então a Elena desceu e perguntou com um meio sorriso se muitas pessoas já tinham entrado na Livraria. Respondi:
— Pois é, são 10h30 e ninguém entrou.
Ela rebateu:
— Claro, tu não abriste o portão da rua.
Mesmo assim, foi o melhor dia das últimas 3 semanas. Talvez eu tenha descoberto algo novo.
A filha de Tolstói, Tatiana, amava Tchékhov. O pai adorava o escritor. A mãe disse que, se ela casasse com ele, jamais teria um travesseiro confortável, talvez só um pano de algodão vermelho para colocar a cabeça, ou seja, que ela seria pobre. Tchékhov fez fortuna, apesar de doar quase tudo o que recebia. Algumas mães vou te contar… A filha casou com outro. Tchékhov era um homem bonito. Eu acho.
A partir de 1936, a vida de Shostakovich foi num embate desigual contra o leviatã soviético. De saúde frágil, o compositor fazia parte de um grupo de artistas cada vez mais raro: o dos provocadores. Porém, quando digo provocadores, falo em artistas com substância e consequência. Mesmo que sofresse pessoalmente, prevendo a morte ou o desaparecimento, mesmo doente e sabendo que seria censurado, seguia cutucando os burocratas do governo com um sarcasmo que até hoje deixa deliciados seus admiradores. Foi um artista que, além disso, soube equilibrar-se entre a extrema sofisticação e a comunicação com o público numa época em que boa parte de seus pares andava perdido num experimentalismo que hoje quase não é mais ouvido. Contrariamente, Shostakovich está cada vez mais vivo e presente nos repertórios das mais importantes salas de concertos. O conteúdo humano e a profundidade de suas composições dizem muito ao século XXI.
(Sei lá o motivo da introdução acima).
A Sinfonia Nº 4 de Shostakovich (Op. 43) foi composta entre setembro de 1935 e maio de 1936. Shosta estava tarado ou, melhor dizendo, fortemente influenciado por Mahler. Ele estivera estudando as sinfonias do marido de Alma durante os anos anteriores. O estilo de orquestração, a imensa orquestra e o uso de melodias banais e sobrepostas, todas vieram de Mahler. Em janeiro de 1936, na metade da composição da 4ª, o Pravda — espécie de porta-voz Stálin — publicou um artigo chamado “Bagunça ao invés de Música”, que denunciava o compositor e especificamente sua ópera Lady Macbeth de Mtsensk. Stálin teria chamado a ópera de “pornofonia”, o que comprova o humor peculiar dos psicopatas. Apesar das ameaças, Shostakovich não somente concluiu a obra, como também planejou sua estreia, programada para dezembro de 1936 em Leningrado. Só que a pressão foi demasiada e ele cedeu. Deixou pra depois. O trabalho foi apenas apresentado no dia 30 de dezembro de 1961 pela Orquestra Filarmônica de Moscou, conduzida por Kirill Kondrashin. É um espanto de boa música!
Até os 13, 14 anos, eu era um mau aluno, só lia quadrinhos e jogava futebol. Minha mãe ficava louca na certeza de que estava criando um idiota. Não que ela estivesse de todo errada, ainda mais quando me comparava com minha irmã, brihante em tudo até hoje.
Mas então veio a Sarinha, a professora de português e literatura que todo mundo deveria ter. A Sarinha mandou a gente ler O Tempo e o Vento. Minha mãe pegou O Continente da estante e me entregou a coisa com aquele sorrisinho tipo agora eu quero ver.
Não comecei a ler imediatamente, mas alguns colegas sim. A Sarinha reservava os 15 minutos finais de cada aula para sentar com os alunos que estavam lendo o livro a fim de discuti-lo com eles. As discussões eram de igual para igual, ela usava os nossos termos, a nossa expressão. Aquilo foi se tornando tão bom que logo todos estavam lendo para poder participar. A Sarinha tinha 1,50m com carisma de muitos centímetros a mais. Logo me agreguei ao grupo de leitores e não saí dele até agora, mais de 50 anos depois.
Hoje de manhã, lembrei daquela professora do ensino público. (Aliás, fui 100% do tempo do ensino e universidade públicas).
É importante começar dizendo que o tema deste livro não tem nada a ver com o atual rolo relacionado ao podcast de Vanessa Barbara na Rádio Novelo(ouçam!). O livro onde este aparece é Operação Impensável, já lido por mim e a ser resenhado quando voltar às livrarias. Sobre o caso, já me manifestei nas redes sociais pouco antes de ele se tornar o atual vaudeville. Sou #TeamVanessa e não abro.
Sou leitor de Vanessa desde 2010, quando li seu famoso texto O Louco de Palestra. Desde então tenho acompanhado sua carreira. Também li o extraordinário e hoje raro O Livro Amarelo do Terminal (CosacNaify). Por escrever muito bem — gosto muito! — e de uma forma quase sempre hilária — gosto mais ainda! –, Vanessa não me era uma desconhecida quando da recente celebridade. Ou seja, não sou um neófito da autora.
Três Camadas de Noite é um romance que trata com inteligência e leveza de depressão em geral e da depressão pós-parto em particular. (Esta frase não foi uma tentativa de piada. Vanessa penetra em becos escuros com medo e graça. É como ler as desventuras de Lucia Berlin, entendem?). Pior, tudo começa em 2020, durante a pandemia. Pior ainda, a personagem principal do romance não dorme porque o bebê é “difícil”. E Vanessa consegue ser muito séria e fazer humor com ambos os temas. O livro é narrado na primeira pessoa e, como poderíamos imaginar, a personagem principal tem um filho — um menino chamado Heitor que passa de um bebê com dificuldades para dormir para uma criança agitada e muito inteligente. Vanessa não costuma contornar situações e o drama é drama, mesmo que crivado de boas piadas. Ela chora segundas, quartas e sextas, às vezes nos outros dias também. Como uma Rosa Montero brasileira, ela intercala a narrativa com seções de não ficção que contêm histórias reais de grandes autores que sofreram com a depressão. São eles Sylvia Plath, Clarice Lispector — belamente inserida na história –, Alice e Henry James, Natalia Ginzburg e Franz Kafka.
As três camadas podem ser (1) a da depressão da narradora, (2) o Diário de Campo, tomado pelas peripécias de Heitor e (3) a dos escritores que sofreram de depressão. A expressão “três camadas de noite” é citada no livro, mas não a reencontrei… (sempre ler com uma caneta ou lápis, Milton!). Talvez seja importante dizer que a narradora não se compara aos autores focalizados, apenas traça paralelos. Também há uma forte presença de efeitos causados pelo covid, capturando a atmosfera de incerteza e isolamento. O trabalho frequentemente transita entre a ficção e a não ficção, sempre com um olhar interessado aos detalhes da vida moderna, muitas vezes desconhecidos do velho de 67 anos que sou.
Como disse, não creio que seja um livro difícil de ler, a não ser para quem é experiente em depressão e tema gatilhos. Vanessa não narra uma viagem da vida normal ao desespero — também não narra uma história do fundo do poço à luz –, mas a personagem principal chega a uma situação aceitável para seguir a vida. Adorei as crônicas dos autores depressivos. Afinal, sou como Ingmar Bergman –, investigo o inferno com curiosidade, mas sem pedir ingresso.
Os grandes virtuoses do piano vão tocando com cada vez maior mestria, mas também mais lentamente, a não ser que seu nome seja Martha Argerich, a que bebeu da poção mágica. Alguns passam do ponto: meu pianista preferido, Maurizio Pollini, passou e andou fazendo discretos fiascos, esquecendo músicas (tocava sempre de memória) e tal.
Daqui do Brasil, acompanhando gravações e vídeos, penso que o gênio que soube o momento de parar foi Alfred Brendel. Parou aos 77 e ainda hoje está vivo, aos 94, dando palestras e entrevistas mal-humoradas. Suas últimas gravações são primorosas. Isto é bem raro. Afinal, como alguns artistas de rock e seus agentes, os caras querem o “último dinheiro” e ficam rolando por aí.
Isso me lembra que meu psiquiatra — o qual tenho visto de dois em dois meses — um dia me disse que quer ser avisado sobre quando deve parar. Deve estar lá pelos 70 e poucos. Eu não vou avisar coisa nenhuma.
Razão de Deus é a inacreditável tradução para The Only Problem.
Como Effie o fez sofrer
O único problema para Muriel Spark, ao que parece, é que há muitas perguntas para poucas respostas. Este é o tema de seu novo romance, como pode muito bem ter sido de todos os outros. Seus leitores devotados sempre estiveram cientes de que há um componente metafísico em sua ficção, e é um alívio que ele finalmente tenha sido revelado na presente obra, que é tanto um relato extremamente sofisticado dos perigos que cercam nossas vidas desavisadas no mundo de hoje quanto uma disputa sobre o assunto do Livro de Jó, que ela chama de ”o livro fundamental da Bíblia”. Jó e sua situação desconcertante desafiam toda crença otimista que se deseja aceitar, alojando-se como uma dura massa de contenção na consciência do crente esperançoso. O mesmo tipo de angústia existencial é experimentado pelo atual protagonista de Muriel Spark, Harvey Gotham, mas Spark é uma escritora sábia demais para impor essa metáfora aos seus leitores, e sua narrativa é tão perfeita, tão enervante e tão especializada quanto seus leitores esperam dessa excelente contadora de histórias.
Pois há, como sempre, muita história para contar. Ela diz respeito a Harvey Gotham, um expatriado canadense extremamente rico, que escolheu viver no alojamento de um castelo vazio perto de Epinal, no distrito de Vosges, na França. Harvey se mudou para este retiro para trabalhar em sua monografia sobre o Livro de Jó. Ele abandonou sua esposa distraidamente, pensando que tinha o direito de fazê-lo, já que certa vez a pegou roubando duas barras de chocolate de um supermercado italiano. Ela fez isso por razões ideológicas, sendo uma anarquista renascida — pois ela tem uma consciência social muito moderna. Harvey ama sua esposa, que é uma beldade chamada Effie, mas ela é muito animada para ele, e ele detecta nela um traço de selvageria com o qual sua personalidade grave não se sente à vontade. Harvey, na verdade, é um estudioso, um fundamentalista. Ele é um homem que questiona e que está ao mesmo tempo resignado — talvez estoicamente, pelo menos impassivelmente, resignado — a não receber nada em termos de afirmação, por mais séria que seja a investigação.
A monografia progride. Harvey trabalha e trabalha, ocasionalmente se submetendo a visitas de seu cunhado, de sua cunhada e, no devido tempo, da polícia local e de seu advogado, que é obrigado a voar de Londres. Harvey está muito menos interessado nessas pessoas do que na bela imagem de Jó por Georges de La Tour no museu de Epinal. A visão da esposa de Jó em seu vestido vermelho brilhante, sua cabeça com turbante curvada em preocupação e advertência sobre seu marido em transe, desperta os pensamentos de Harvey sobre sua esposa ausente Effie, por quem ele sente um amor crescente e, mais profundo ainda do que o amor, nostalgia. Effie é de fato a razão de todos os visitantes (ou consoladores) que vão até ele: Effie quer o divórcio, Effie arruma um amante, Effie tem um bebê. Tudo isso provoca discussão sobre os direitos e erros do caso. Mas finalmente o personalidade arrojada de Effie irrompe de maneira particularmente favorecida por Spark. De roubar barras de chocolate, Effie evoluiu para plantar bombas terroristas em supermercados e lojas de departamento. Effie se juntou à FLE, a Front de la Liberation de l’Europe. Um policial é morto em Montmartre, e o grupo de Effie é o responsável. Finalmente, a própria Effie está morta em um necrotério de Paris, sua cabeça com turbante deitada inclinada no mesmo ângulo inquisitivo que a da esposa de Jó no filme La Tour em Epinal.
Durante todo o curso das investigações, Harvey trabalha em sua monografia. Ele está tão absorto em sua tarefa que discursa sobre Jó para os repórteres que comparecem à sua coletiva de imprensa, dada ostensivamente para explicar o desaparecimento de sua esposa:
”Estou feliz em finalmente chegar ao assunto desta conferência: qual foi a resposta à pergunta de Jó? A pergunta de Jó era: por que Deus me faz sofrer quando não fiz nada para merecer isso? Agora, Jó não tinha a mínima dúvida de que seus sofrimentos vinham de Deus e de nenhuma outra fonte. A rapidez com que uma calamidade se seguiu à outra, destruindo o mundo de Jó, deixando-o destituído, desolado e doente, tudo em um curto espaço de tempo, deu evidências dramáticas de que a causa não era natural, mas sobrenatural. O sobrenatural, com poder para agir tão forte e desastrosamente, só poderia, na mente de Jó, ser Deus. E sabemos que ele estava certo no contexto do livro, porque no Prólogo, você lê especificamente que foi Deus quem trouxe o assunto de Jó a Satanás. Foi Deus, de fato, quem tentou Satanás a atormentar Jó, não Satanás que tentou Deus.”
Os repórteres acham que ele é louco, é claro. Talvez ele seja. Mas os personagens de Spark, embora frequentemente loucos, nunca são desonestos. De fato, eles entregam muitas verdades impressionantes com um olhar impassível ou um sorriso descuidado. Boas maneiras literárias são observadas na precisão de seu discurso… Spark, cujo ponto de vista é frequentemente inescrutável, compartilha com esses personagens uma certa liberdade da convenção que sanciona suas excursões à anarquia. O Livro de Jó e as terríveis reviravoltas implícitas na narrativa bíblica — terríveis porque é Deus quem faz as perguntas e Jó quem parece ter as respostas — são um assunto adequado para esta escritora destemida e meticulosa e seu protagonista pensativo. E o fracasso desanimador dos consoladores de Jó e dos amigos de Harvey em responder às perguntas agonizantes está de alguma forma ligado à percepção de que eles estão apenas fazendo o que têm que fazer. Está na própria natureza da amizade provar-se inadequada às demandas de uma catástrofe prolongada. A grande conquista deste romance é que Spark não cai na mesma armadilha. Ela não é consoladora de Jó, e duvido que alguém possa lhe fazer um elogio mais verdadeiro do que declarar esse fato enganosamente brando.
Em todos os seus romances, Muriel Spark dá a impressão de que, embora tenha superado o problema do mal, a luta foi grande. O esforço a deixou na plena de certo desespero, uma ironia às vezes dolorosa — dolorosa precisamente porque é eficaz. Às vezes, ansiamos pelo que não está lá, como se a vitória da superação tivesse exigido uma perda muito pesada. Às vezes, parecia que o cerne da questão havia sido extirpado e apenas as transações nefastas registradas. Em ”The Only Problem” esta omissão foi corrigida. Há emoção aqui, desespero e desejo, mantidos em seu lugar por uma escrita precisa e imediata. Talvez a pedra de toque para o estilo extraordinário de Spark seja encontrada em uma frase de um romance anterior, ”Territorial Rights”. Diz-se de um personagem naquele romance: ”Naquela tarde, ela saiu com a coragem de suas convicções selvagens e a insatisfação que não tem nome.” Qualquer um que possa apreciar a alarmante e bela completude dessa frase apreciará ”The Only Problem ”. É o melhor romance de Spark desde ”The Driver’s Seat” e é, mais uma vez, uma experiência perturbadora e estimulante.
ECOS DA BRIGADA VERMELHA
A personagem central está escrevendo uma monografia sobre o Livro de Jó. Quando liguei para ela nas colinas da Toscana perto de Arezzo, onde ela está passando o verão, perguntei sobre o significado disso. ”O Livro de Jó sempre me fascinou”, disse Spark. ”Jó era um homem rico, uma figura do establishment, que suportou todo aquele sofrimento. Apareceram seus amigos que lhe disseram que ele devia ter feito algo errado, mas ele disse não. Acho que meu personagem é bem doce, na verdade.” Havia ecos das Brigadas Vermelhas da Itália na mulher terrorista que aparece no romance? ”Sim — ela era desse tipo. Acho que o terrorismo às vezes começa com uma generosidade de espírito, mas algumas pessoas têm uma violência embutida — quase como se houvesse um cromossomo terrorista. Ninguém consegue simpatizar com os verdadeiros terroristas. Acredito que o movimento falhou. Mas eu não moralizo em meus romances — talvez eu devesse, mas não faço isso.” Spark disse uma vez que a literatura do ridículo selvagem é ”a única arma honrosa que nos resta.” Alguns leitores notaram armas escondidas em seus romances, incluindo ”The Prime of Miss Jean Brodie”, ”Memento Mori” e ”The Abbess of Crewe”, um conto de moralidade sobre o escândalo de Watergate. E era verdade que ela estava escrevendo seu próximo romance em um processador de texto? ”Não”, ela disse. ”Eu ainda escrevo com uma caneta, em cadernos que encomendo de James Thin, o papeleiro, na Chambers Street em Edimburgo, minha cidade natal. Cada caderno tem 72 páginas. Eu escrevo em cada duas linhas, em um lado da página.” – Herbert Mitgang
Sem tentar ser politicamente correto, aí vai minha lista de melhores romances brasileiros do século XXI, em ordem alfabética. Lá vai:
– Budapeste, de Chico Buarque
– Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino
– Leopold, de Luís Antônio de Assis Brasil
– Minúsculos Assassinatos e Alguns Copos de Leite, de Fal Azevedo
– O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório
– O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli
– O Drible, de Sérgio Rodrigues
– Os Supridores, de José Falero
– Pornopopeia, de Reinaldo Moraes
– Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves
Revimos hoje a obra-prima Peça Inacabada para Piano Mecânico, de Nikita Mikhalkóv. Baseada em Platónov, de Tchékhov, com atores maravilhosos, é mais uma obra russa que, na hora de apontar grandes autores russos, deixa Dostoiévski de lado. Estou colecionando.
Todos sabem que Tchékhov é o maior autor de todos os tempos e que, toda vez que a gente vai tomar uma decisão deve pensar Nele, além de orar todos os dias por Ele. O filme é lindo, bem dirigido e cheio de memoráveis diálogos.
Depois de corrida de hoje, deitei na grama e fui fazer uns abomináveis. Odeio fazê-los. Deitado na sombra, senti umas formigas caminhando sobre meu corpo e, com meu conhecimento nenhum sobre elas, decidi que não eram das que mordem. E não eram tantas assim. Acertei. De repente, comecei a ouvir ao longe uma banda de dixieland que às vezes está no Parque da Redenção, aquela banda de argentinos. São muito bons. Descansei. Não lembro de ter contado aqui que durmo facilmente. Tenho insônia zero. Pois dei uma dormidinha. Acordei com os bichinhos explorando minha barba. Levantei, dei uns tapas em mim mesmo e voltei pra casa ao som do jazz de New Orleans. Os arredores da Redenção é a zona que não vota na direita, é a zona onde a gente pode se sentir bem, abraçado pela cidade, mesmo com o calor e as formigas.