Viagem em torno de Lúcio Cardoso

Viagem em torno de Lúcio Cardoso

Porque nossa literatura tem Lúcio Cardoso e ele foi um mestre.

Por Fernando Monteiro

Uma literatura que se inaugura – no patamar mais alto – com a obra de um Machado de Assis deveria ter podido manter o rumo firmado por tal começo (magnífico, reconheça-se) pela nada tímida mão de um mulato de gênio.

Na cronologia que prefiro usar – e que não diz respeito somente ao tempo que passa em calendários novos e velhos – a data do ponta-pé inicial não remontaria a Alencar nem a nada antes da grande ficção machadiana (de gosto já tão moderno). Que sorte. Começamos com o pé direito chutando não na trave de Iracema, mas criando a Capitu que ainda resiste como um mistério psicológico, neste vigésimo primeiro século…

Se eu fosse professor de Literatura, começaria por ensinar esse pentiment: o pequeno-grande milagre de ter tido Matacavalos por sobre as praias indianistas ingênuas, e, nele, Machado tirando a mão de uma primeira luva, a fim de encarar diretamente o Rio e a vida – como um enigma.

Estamos falando de sorte grande (e meu assunto não é Machado, nem loterias, mas – surpresa – Lúcio Cardoso), e agora devemos fixar o Brasil perdulário que foi, pouco a pouco, perdendo o rumo literário dado por instrumentos assim de ouro, nos seus inícios: a bússola épica de Euclides da Cunha (autor de um livro tão grandioso que já acolheu Vargas Llosa, um húngaro e dois argentinos enfiados no mesmo camisolão de Antonio Conselheiro) ao mesmo tempo em que produzia o intimismo, nos seus cueiros, de um Le grand Meaulnes tupiniquim mais gostoso do que o francês de Alain Fournier. Refiro-me, é claro, ao romance O Ateneu, de Raul Pompéia, que antecedeu Fournier também nas febres da imaginação transida pelos não-acontecimentos durante as adolescências especialmente nervosas… Com o que chegamos às pistas de pouso e aos portos da preferência do mineiro nascido há exatos cem anos: Joaquim Lúcio Cardoso Filho.

SEGUNDA ESCALA NO RUMO DE LÚCIO

Eis, então, uma literatura que começa com pelo menos três mestres criadores de obras de alta voltagem literária – o que torna mais incompreensível, ainda, que ela esteja produzindo, agora, apenas algumas receitas de monotonia das editoras nas cabines de comando, ultimamente.

Foi uma gradual, progressiva e paulatina – e paulificante também, como um travelling ao contrário, pois Afrânio Peixoto poderia ser visto, em seguida, a copiar o modelo do romance francês de segunda (ou de terceira?), à maneira dos diluidores de Balzac ou daqueles dois anões descartáveis, Paul Bourget e Marcel Prevost. Foram as tutelares “divindades” de cartório que Afrânio escolheu para si, enquanto o inquieto Monteiro Lobato – inquieto demais – começava a sua caminhada de articulista de jornalecos até se tornar no (o bravo, o fundamental) editor e criador de literatura infanto-juvenil docemente rural, em nossas letras. Lobato legou à criança brasileira, não só do seu tempo, sítios cheios de cores e gentes candidamente caipiras, enquanto o espírito sombrio de Lima Barreto olhava para além daquela cerca, vendo a estranheza dos destinos adultos, nos subúrbios do mesmo Rio de Machado… mas isso não foi suficiente para emancipar o seu olhar (ainda assim, original) de influências conflitantes demais para lhe darem sossego e ânimo de seguir o próprio faro – independentemente – para o pequeno e o não-relevante, tomados como temas, à Bartleby, na melhor linhagem das obsessões de Kafka, Svevo e Joyce.

Outro Barreto (Paulo), escrevendo sob o pseudônimo de João do Rio, enveredaria por dentro das noites – elegantes e deselegantes –, em busca de novas estranhezas como que captadas através de espelho art-nouveau, até morrer, como Lima, às vésperas do Modernismo.

Enfim, o que estou querendo ressaltar é que, desde o brilhante começo, a nossa ficção foi perdendo a força inicial, de raiz “psicológica” (vá lá a palavrinha!), incrementada por um Dionélio Machado, no Sul, e um Cornélio Penna, até chegar o mineiro Lúcio Cardoso, fixando os porões dos velhos solares da alma que se tornarão o emblema da sua obra.

Se o arco desta nossa volta talvez “estiver a ser” bem acompanhada etc, eu peço às vertigens que demorem a duvidar da minha autoridade para sínteses da arte romanesca tramada com dois modelos de obras exemplares – a de Machado e a de Cardoso – para que se compreenda o que aconteceu depois do mulato criar a sua obra genial e ir fundar uma Casa para abrigar gigantes e anões literários deliciando-se com bolinhos e empadas.

Firmando o leme desta viagem sem doces nem salgados, enfrentemos as águas, agora, do romance regional como um sub-produto modernista. (Lúcio, aliás, começou aderindo – na primeira hora da poderosa influência de Graciliano Ramos, Jorge Amado, Rachel de Queiroz e José Lins do Rego – ao publicar seu romance de estreia Maleita, em 1934).

Na própria carne ficcional da obra que vai publicando de forma quase sequenciada (1935, 1936), o que esse escritor “à margem” vai operar, na verdade, é a passagem de volta para o futuro da literatura que perdemos – se é que me faço entender, no curso sinuoso que estou antecipando. Porque Lúcio Cardoso se assemelharia à restauração de algo como um “elo” perdido, como legítimo herdeiro daquela modernidade inicial da nossa (melhor) literatura, se a ele juntamos, numa etapa posterior, os nomes de Clarice Lispector e Guimarães Rosa, num mesmo platô introspectivo e de invenção literária.

Para a ótica mais ortodoxa – em se tratando do que apenas parece “linear” na evolução da narrativa brasileira –, certamente que eu acabo de dar alguns saltos mortais, ao propor uma espécie de elipse do regionalismo do qual só recentemente fomos nos emancipando. É, entretanto, o único recurso que permite (numa quantidade de páginas não estourada dos limites desta revista) que se possa chegar a Lúcio como “módulo intercambiável” do quadro, e se fazendo o pulo necessário do longo hiato que torna Lúcio, agora, o nosso romancista psicológico “de volta” ao cenário modificado.

No meio do salto, acho que, de algum modo, foi atropelado o carioca Octávio de Faria – e lamento-o, sinceramente. Pois tentou escrever seu roman fleuve – a “Tragédia Brasileira” –, não conseguiu (mas tentou!), e a sua obra-prima está fora da “Tragédia”: leiam as Novelas da Masmorra, no dia de São Nunca-de-tarde em que forem reeditadas (atenção, editores dorminhocos sonhando em jantar com Jonathan Franzen!), e estarão a braços com três das melhores ficções brasileiras de todos os tempos. Octávio talvez precisasse apenas alargar a visão católica, para dar o outro tipo de salto mortal necessário – embora a força estivesse, naquela altura, com o tipo de asa “torta” do Modernismo que foi o romance regionalista, convenhamos.

LÚCIO, O GRANDE PEIXE DE ÁGUAS PROFUNDAS

Lúcio Cardoso é, para mim, o grande romancista que faltou, o Faulkner que esperávamos e que não veio, à brasileira, na obra de passagem para a modernidade pós-30. Daquele “ponta-pé” inicial – e seus desdobramentos – é ele, com certeza, um criador mais ambicioso do que Cornélio Penna e sua literatura de rendas e bordados (“romances de antiquário”, na visão de Mário de Andrade), na sala onde a menina morta nos olha desde algum pálido retrato.

O vento também sopra as cortinas das grandes janelas e, no Sul, iria trazer a voz de Veríssimo, que pensava que era um romancista argentino educado em campo de neve americana. Não era. Ninguém irá se impactar, atualmente, com novelas ao estilo de Fernando Namora, sobre dilemas amorosos de médicos vacilantes que serão depois trocados por jagunços farroupilhas – em tom épico forçado –, quando o vento forte da literatura latino-americana vem a soprar, nos ouvidos de Érico, com trompa rouca demais para ser ouvida onde gritam todos os diabos da casa sem cortinas de renda e sem trancas nas portas da fronteira, casa arrombada, casa de demônios, a casa assassinada de Lúcio Cardoso.

A literatura dos interiores enlouquecidos já se acercara pela mão do pontilhista Luiz Jardim – com vocação de voyeur (em Confissões do Meu Tio Gonzaga) que recuou um passo do tema do incesto – e, assim, é Lúcio mesmo o único Faulkner que temos, virado para dentro e para fora, perseguido pelo difícil amor de Deus e sentindo, na carne, a morada do diabólico Outro.

Antonio Gala nos diz que “o corpo guarda sem saber a marca dos desejos consumados, e também talvez dos que não se consumaram e dos que nunca poderão se consumar”. Ora, somente em Lúcio o leitor de verticalidades enxerga – no romance pós-regionalista, reiteremos – o portador daquela angústia que passou de moda porque perdemos o sentido de transcendência do ato de viver, não só misterioso, mas danação que cumpre “decifrar”. Quando o poeta Lêdo Ivo (que, nos anos 40, dividiu apartamento com o escritor) afirma ser Lúcio “o grande emissário da noite, da sombra e do silêncio numa literatura que sempre foi solar e tropical”, ele situa bem o escritor cuja estreia foi quase desajeitada, com um romance que traça a trajetória do seu pai aventureiro, Joaquim Lúcio Cardoso, fundador de Pirapora.

O romance seguinte – Salgueiro, de 1935 – seguiria ainda a mesma receita, mas A Luz no Subsolo, do ano seguinte, e principalmente Dias Perdidos (1938) e a novela Mãos Vazias, fariam desviar a sua ficção para o intimismo avant-la-lettre que Cardoso vai representar – mesmo “fora de lugar” – na prosa brasileira do pós-guerra. A Luz no Subsolo é ainda um texto indeciso entre as duas pulsões – a solar e a noturna, para ecoar a palavras de Lêdo –, porém já trazia uma força nova, que Mário de Andrade de imediato reconheceu: “Seu livro é um forte livro. Artisticamente me pareceu ruim. Socialmente me pareceu detestável. Mas compreendi perfeitamente a sua finalidade de repor o espiritual dentro da materialística literatura de romance que estamos fazendo agora no Brasil. Deus voltou a se mover sobre a face das águas.”

Mário não poderia imaginar que, anos mais tarde, Lúcio daria início justamente à sua “Trilogia do Mundo sem Deus” – focado na terra desolada do mesmo Rio de Janeiro a que se devotou Octávio de Faria, infelizmente sem a coragem do mergulho de Cardoso no submundo das modernas cidades ornadas dos colares das prostitutas, das garrafas no lixo dos alcoólatras e nas manchas de sangue na parede dos assassinos. As novelas Inácio, O Enfeitiçado e Baltazar (esta, inédita), todas relançadas pela Editora Record, fazem parte do projeto de investigação que Lúcio não chegou a completar com relação ao submundo carioca. Sob a pele das coisas, seu olhar não se deixa fascinar pela cidade – ao contrário da insustentável leveza da literatura do amigo Aníbal Machado, por exemplo.

NAS PALAVRAS ABISMAIS

O próprio Lúcio explica a diferença, abismal, de atitudes: “Para quem não desdenha os grandes saltos na inquietação e no obscuro, tudo é bom para ser visto de perto. Digo TUDO: as casas cheias de sombras e promessas aliciantes, os grandes becos da necrose, o tóxico, os olhos insones do ciúme, o inimigo subterrâneo que nos saúda, a prostituta que nos recebe sem suspeita, a conversa que pode decidir o futuro, tudo.”

A “lenda urbana” da vida do escritor dá conta de que, nesse período, ele teria chegado a contratar um matador de aluguel para persegui-lo, de modo a sentir na pele a sensação do seu personagem jurado de morte. O que há de certo é o que Lúcio escreveu em cartas como as destinadas a Cornélio Penna, o autor de A Menina Morta que merecia toda a confiança do mineiro profundo: “É impossível a alguém viver como eu vivo, sem explodir ou morrer um dia. Estou aqui sem coragem de atravessar o dia, de reunir as minhas numerosas máscaras…”

Clarice Lispector também manteve correspondência com Lúcio, e comprova essa tormenta interior (ou a “máquina infernal da mente que Deus me deu”, nas palavras do próprio escritor), ao mesmo tempo em que testemunha a respeito também da influência que ele exerceu sobre os autores da sua geração, a partir de quando o seu caminho (para a interioridade) se esclareceu para LC. Tanto quanto detestou o título O Lustre, foi Lúcio quem “batizou” Perto do Coragem Selvagem (nunca achei esse título “parecido” com Clarice; sempre achei que deveria ser de uma Carson MacCullers ou de um… Lúcio Cardoso!) e, ainda segundo a Lispector, foi o seu “muito querido amigo” quem lhe ensinou “a conhecer as pessoas através das máscaras”.

Alguns amigos de Clarice dão como certo que a admiração da escritora resvalava para o terreno amoroso, num sentimento impossível de ser correspondido por Lúcio, homossexual apaixonado pelas mulheres apenas como criador capaz de instilar vida em personagens como a “Nina” de Crônica da Casa Assassinada – que Wilson Martins tem certeza de que “ficará como uma das grandes mulheres do romance brasileiro. Sua personalidade imperiosa e despótica, seu enigma secreto dominam não somente a chácara e a família dos Menezes, mas, ainda , e sobretudo, o próprio leitor”.

Essa é a obra-prima de Lúcio – e ainda pede uma viagem mais longa do que tentei esboçar aqui, à volta de uma casa quase inviolada (no que ela tem, ainda, de mais íntimo e secreto), no fundo do quarto escuro da alma. Precisa ser urgentemente relida, neste momento agônico de uma ficção que se esgarça em realismo datado, violência e confusão com crônica do dia a dia. A “casa assassinada” de Lúcio talvez aponte para uma literatura de ficção que, aqui e agora, ainda pode ser salva pela leitura de um assassino da banalidade, de um talento maior que muita gente está deixando de ler para perder tempo com os escritores menores que pululam na mídia, reescrevendo – ou tentando reescrever – coisas que já foram ditas por outros, de melhor modo e com maior alcance. Que voltem os mestres (e Cardoso é um deles) às girândolas das livrarias culturais brilhando com aquelas últimas novidades que não acrescentam nada.