Aury Hilário protesta que antes havia menos salas e mais música erudita em Porto Alegre, que as orquestras da Ulbra, da Unisinos e os tais Concertos Dana dão generosos espaços para roqueiros, nativistas e MPB. E tem razão. Porto Alegre tornou-se um grande palco da música de crossover — termo usado na música para designar canções que apresentam junções de dois ou mais gêneros musicais. Na minha opinião, resumindo em duas palavras, trata-se de pura vulgaridade. São orquestras universitárias que talvez contem com patrocínios e que deveriam divulgar alguma cultura diferenciada, mas que preferem agradar um público que, na verdade, quer reconhecer músicas de sua preferência em uma roupagem orquestral e mais nobre, ignorando que a melhor versão dos Beatles é a que tem o grupo de Liverpool e o melhor nativista é aquele que traz o cheiro de capim e os sapatos sujos de terra vermelha. Misturar terno e gravata com modelos populares é apenas e simplesmente bagaceiro.
O que estas orquestras têm feito, e muito, é repertório nhemnhemnhem para ignorantes, com a desculpa da formação de público. O que nunca ocorrerá. Não há como formar público para Shostakovich tocando Beatles… Beatles forma plateia para… BEATLES!!! Aury diz, com toda a razão:
Temos todo o direito de duvidar da eficácia dessa estratégia [de captação de público]. O que pode vir a ocorrer é a redução do já restrito mercado de trabalho dos instrumentistas e cantores líricos e o nosso afastamento das salas de concerto.
Neste sábado, em Zero Hora, Juarez Fonseca deu uma bela escorregadela em sua brilhante carreira. Acontece com todos. Tentando acalmar a pequena comunidade erudita de Porto Alegre, ele chegou a um argumento de patético paroxismo e confusão, finalizando assim seu texto:
Acho que poderiam ser menos corporativistas – em alguns casos até preconceituosos – e deixarem os maestros Antônio Borges-Cunha e Tiago Flores trabalharem em paz. Quanto à preocupação com a “perda de espaço”, posso lembrar, por exemplo, que Vivaldi vem sendo tocado há mais de 300 anos. Bach, quase o mesmo. Mozart e Beethoven, ali perto. E o Chopin de Nelson Freire, desde 1830. Todos (e centenas de outros) gravados sem parar pela Deutsche Grammophon. A chance de a música erudita perder espaço para o rock, em Porto Alegre, é praticamente zero. Então, keep calm…
Não sei nem responder a acusação de “corporativismo”. O corporativismo representa interesses econômicos, industriais ou profissionais. Bem, meu caro, Aury é médico e eu sou um colega seu. Não sei de qual corporativismo estamos falando. Estamos aqui pela cultura. Mais: a música erudita é bastante vasta e inclui até contemporâneos nossos bem divertidos e formadores de público.
http://youtu.be/PA7vEIj6Lzk
Justificar pelo número de execuções de Bach, Vivaldi, Mozart e Beethoven pode ser facilmente rebatido pelo número de execuções dos artistas populares em rádios, TVs, iPod, mp3 e iTunes de toda a população, que os ouve a pé, em ônibus, nas salas de espera e até trabalhando.
A questão é muito maior, mas eu gostaria de focalizar três itens. O primeiro é a feiura da coisa. Ouvindo os arranjos — a maioria péssimos, redutores — que são escritos para esses artistas não eruditos, nota-se claramente que suas músicas pioram e que a orquestra poderia ser facilmente substituída por um teclado qualquer, talvez vestido de terno e gravata. Aquelas harmonias são ridículas desde que Claus Ogerman tentou sistematicamente acabar com o genial João Gilberto.
O segundo é que a justificativa para a existência de tais excrescências sonoras deve ser o público, que acha bonitinho ouvir seus Beatles ou seu Nenhum de Nós sob uma roupagem amenizada. Até as vovozinhas poderão curtir a música que sai pasteurizada e sem nada de seu espírito original das cordas assépticas da orquestra. É a morte da morte. Morte de uma orquestra que poderia dedicar-se a algo mais digno de seu estilo e história e morte da vivacidade de uma música que reaparece morta, estrangulada sob o peso de um anacronismo digno de um Paul Mauriat ou de um Ray Coniff, sem nunca chegar ao (baixo) nível de um André Rieu, que pelo menos dedica-se a eruditos ligeiros. Mas esqueci, há mais uma morte: a da sonoridade da orquestra. Esta é um organismo acústico e, nesses concertos de música popular, elas aparecem amplificadas, elétricas, como símbolo de uma sofisticação inexistente. Se o sentido é escutar a orquestra tocando, com suas nuances e espacialidade, acaba-se a experiência quando todo o som da mesma sai de um par de caixas de som.
O terceiro item é que essas orquestras devem receber algum tipo de incentivo governamental para suas “atividades culturais”. Afinal, são ligadas a universidades. Mas as universidades não estão nem aí para o desenvolvimento de uma boa orquestra ou de determinada contribuição artística para a comunidade. Filha bastarda da universidade, essas orquestras servem mais aos músicos que engordam seus salários com cachês. Para eles, sim, serve a facilidade de tocar roquezinhos em concertos. Fazem-no com uma mão nas costas, sem nem precisar estudar. Que ganhem seu dinheiro — que não é muito — honrando a música para a qual estudaram.
Ontem tivemos um concerto regido por João Carlos Martins na Ospa. No passado, Martins foi um grande pianista, um excelente intérprete de Bach, mas depois uma série de acidentes e circunstâncias fizeram com que ele perdesse o movimento das mãos. Hoje, aos 72 anos, Martins atua como uma espécie de André Rieu brasileiro, regendo música ligeira e batucando lamentavelmente um piano com os três dedos que ainda lhe atendem. Vê-lo tocando é triste tanto para os olhos como para os ouvidos, é algo que busca despertar nossos sentimentos de pena, que toca muitas pessoas facilmente suscetíveis a situações do tipo ele-está-lutando-contra-a-adversidade ou e-mesmo-assim-ele-é-feliz. Não é proibido e muita gente gosta, mas, na minha opinião, a vaidade de Martins é tão grande que mesmo a exposição de suas deficiências como pianista serve a seu ego sedento de espectadores. E ele encontrou um público que ouve seus discursos e o aplaude, feliz. Não é mais arte, não é mais música erudita, é a utilização de prestígio para tocar movimentos sinfônicos ou nem isso. Ontem por exemplo, ele apresentou um retalho do Bolero de Ravel, pois talvez lhe falte resistência física ou não sinta interesse do público numa audição integral.
Antes de perder os movimentos das mãos, Martins teve uma rumorosa passagem pela Secretaria de Cultura da cidade de São Paulo. O prefeito era seu amigo Paulo Maluf. Atualmente, Martins é réu em um processo onde é acusado de corrupção. Segundo o revista Veja (há links na página):
Como empreiteiro dono da Paubrasil, o pianista recolheu quase 20 milhões de dólares em caixa dois para as campanhas de Maluf. As construtoras Paubrasil e Entersa, das quais Martins era sócio, cometiam fraudes contábeis para esconder do Fisco o quanto faturavam e a maneira como empregavam seus recursos. Desta forma, ficavam livres para financiar as campanhas do político. Em 1993, ano em que Paulo Maluf assumia a prefeitura de São Paulo pela segunda vez, a Receita Federal descobriu que a Paubrasil – empresa do pianista João Carlos Martins – havia recebido doações clandestinas para as campanhas eleitorais de Maluf nos anos 1990. A proprietária de um imóvel alugado pela Paubrasil denunciou que ali funcionava uma confecção que fazia uniformes para a empresa e também material de propaganda de Maluf. Em 2009, o caso de corrupção rendeu-lhe uma condenação a dois anos e nove meses de prisão – período substituído por pena restritiva de direitos – por crime contra a ordem tributária. O maestro entrou com recurso e aguarda julgamento.
A Ospa é uma orquestra pública, financiada pelos contribuintes através de impostos, e penso que devemos considerar dois aspectos. O primeiro é o artístico. A Ospa deve servir ao que der e vier? Ontem, a exigência artística era tão rala que a orquestra entrou despreocupada, sem a menor concentração, tocando mal obrinhas populares que tiraria normalmente de letra, talvez irritada com a indulgência para consigo e para com o público. Porém, observando as caras das pessoas que assistiam o concerto, via-se um indiscutível encantamento de gente que normalmente não comparece aos concertos. Isso é educar e formar público? Certamente NÃO. Uma experiência de décadas nos diz que aquelas pessoas não irão aos concertos “sérios” e transcendentes, onde serão tocadas obras completas do modo como foram compostas. O público de ontem era formado basicamente por pessoas de mais de 40 anos que estavam com pena do pobre pianista com dificuldades. Na última oportunidade em que esteve em Porto Alegre, Martins apresentou um curta metragem com sua história artística e médica. Houve lágrimas na plateia… Era um público de Hebe Camargo, não o da música. Como se comprova nos países onde a música é mais desenvolvida, não é com concessões que se atinge a música erudita, é com o acesso fácil a ela. Neste quesito, os casos da Venezuela e da Inglaterra — eu escolho pegar como exemplos países bem diferentes — são absolutamente exemplares.
O outro aspecto é o moral. OK, o caso de Martins ainda não foi inteiramente julgado. Coube recurso e este é um direito seu. Porém um governo do PT deveria pagar um cachê — certamente dos mais altos cachês deste ano — justamente para um apoiador de Paulo Maluf acusado de corrupção? Precisa mesmo? E o estado legalmente pode pagar alguém com as acusações que pairam sobre o ex-pianista? Para fazer aquilo não seria melhor resgatar da aposentadoria o maestro Tulio Belardi e seus concertos populares onde ele até cantava tangos para a mesma plateia extasiada?
Bem, deixo para meus sete leitores estas interrogações.