Sopros estritamente barrocos e algumas mãos pesadas

Sopros estritamente barrocos e algumas mãos pesadas
Rodrigo Calveyra
O flautista Rodrigo Calveyra

Ontem (17), fui ver o concerto da Orquestra de Câmara da Ulbra no Leopoldina Juvenil, com regência de Tiago Flores. O programa foi o que segue:

Haendel (1685 – 1759): Concerto Grosso op. 6 n° 2
Sammartini (1695 – 1750): Concerto in F major (Solista: Rodrigo Calveyra)
Vivaldi (1678 – 1741): Concerto per flautino in Sol M – RV 443 (Solista: Rodrigo Calveyra)
Haendel (1685 – 1759): Concerto Grosso op.6 N° 10

O concerto iniciou bem complicado. O Concerto Grosso, Op. 6, Nº 2, de Handel, foi levado com mão pesada pelas cordas da orquestra e só a cabeleira do maestro Tiago Flores me causava algum prazer. Ela medrou vicejante no último verão e está efetivamente magnífica! Porém, os bonitos jogos entre os dois primeiros violinistas cresceram um tanto opacos, nada barrocos. Não creio que a culpa seja de nosso Tiago Flores, mas da cintura dura de alguns músicos.

Quando veio o Concerto em Fá Maior para Flauta de Sammartini, notou-se claramente que quem tinha espírito efetivamente barroco eram o extraordinário solista Rodrigo Calveyra e o violoncelista Alexandre Diel. Eles tinham a leveza e a sutileza; os outros, a força. É uma questão de adaptação. Muitos não conseguem. O violinista Emmanuele Baldini, por exemplo, faz Mendelssohn ou Tartini com senso de estilo e sotaque, adequando-os aos autores. (Sei de um cara que fala mais de cinco sotaques do interior gaúcho. Eu só sei fazer o meu e dos “magro do Bonfa” dos anos 70 e 80). Enquanto isso, Calveyra é um sujeito que respira música antiga, não sendo necessária a adaptação à qual a orquestra deveria dobrar-se. Já Diel, que eu pouco conhecia, surpreendeu com leveza e baixo contínuo consistentes.

O negócio era ficar com o solista e seu escudeiro Diel. O Concerto para Flautino em Dó Maior — não está errado no programa? — estava espetacular pelo largo espaço que Vivaldi deu ao solista acompanhado pelo baixo contínuo.

Rodrigo Calveyra é um caso à parte. Ele foi o motivo de eu ter ido ao Leopoldina. É um flautista que dá notável dimensão artística e expressiva a seu instrumento. Apaixonado pelo que faz, gosta espalhar conhecimento contando histórias e dando explicações sobre músicas e instrumentos. Tal generosidade também ocorre quando toca. Ele se coloca inteiramente a serviço de ideias e estilos musicais. Seu Vivaldi de ontem teve o exato virtuosismo e estilo exigidos pela obra. O seu bis, do barroco holandês, já foi inteiramente diferente. Nada da alegria vivaldiana, mas sim a vetustez de um barroco mais longínquo. Trata-se de um músico de extrema sensibilidade e sofisticação.

Não assisti o solo de batuta final no Concerto Grosso, Op. 6, Nº 10 de Handel. Preferi ouvir o jogo do Inter, que estava em seus 15 minutos finais.

Uma reflexão sobre o crossover porto-alegrense

Uma reflexão sobre o crossover porto-alegrense

Aury Hilário protesta que antes havia menos salas e mais música erudita em Porto Alegre, que as orquestras da Ulbra, da Unisinos e os tais Concertos Dana dão generosos espaços para roqueiros, nativistas e MPB. E tem razão. Porto Alegre tornou-se um grande palco da música de crossover — termo usado na música para designar canções que apresentam junções de dois ou mais gêneros musicais. Na minha opinião, resumindo em duas palavras, trata-se de pura vulgaridade. São orquestras universitárias que talvez contem com patrocínios e que deveriam divulgar alguma cultura diferenciada, mas que preferem agradar um público que, na verdade, quer reconhecer músicas de sua preferência em uma roupagem orquestral e mais nobre, ignorando que a melhor versão dos Beatles é a que tem o grupo de Liverpool e o melhor nativista é aquele que traz o cheiro de capim e os sapatos sujos de terra vermelha. Misturar terno e gravata com modelos populares é apenas e simplesmente bagaceiro.

Foto: Divulgação
A Ulbra acabando com os Beatles, dois já morreram | Foto: Divulgação

O que estas orquestras têm feito, e muito, é repertório nhemnhemnhem para ignorantes, com a desculpa da formação de público. O que nunca ocorrerá. Não há como formar público para Shostakovich tocando Beatles… Beatles forma plateia para… BEATLES!!! Aury diz, com toda a razão:

Temos todo o direito de duvidar da eficácia dessa estratégia [de captação de público]. O que pode vir a ocorrer é a redução do já restrito mercado de trabalho dos instrumentistas e cantores líricos e o nosso afastamento das salas de concerto.

Neste sábado, em Zero Hora, Juarez Fonseca deu uma bela escorregadela em sua brilhante carreira. Acontece com todos. Tentando acalmar a pequena comunidade erudita de Porto Alegre, ele chegou a um argumento de patético paroxismo e confusão, finalizando assim seu texto:

Acho que poderiam ser menos corporativistas – em alguns casos até preconceituosos – e deixarem os maestros Antônio Borges-Cunha e Tiago Flores trabalharem em paz. Quanto à preocupação com a “perda de espaço”, posso lembrar, por exemplo, que Vivaldi vem sendo tocado há mais de 300 anos. Bach, quase o mesmo. Mozart Beethoven, ali perto. E o Chopin de Nelson Freire, desde 1830. Todos (e centenas de outros) gravados sem parar pela Deutsche Grammophon. A chance de a música erudita perder espaço para o rock, em Porto Alegre, é praticamente zero. Então, keep calm…

Não sei nem responder a acusação de “corporativismo”. O corporativismo representa interesses econômicos, industriais ou profissionais. Bem, meu caro, Aury é médico e eu sou um colega seu. Não sei de qual corporativismo estamos falando. Estamos aqui pela cultura. Mais: a música erudita é bastante vasta e inclui até contemporâneos nossos bem divertidos e formadores de público.

http://youtu.be/PA7vEIj6Lzk

Justificar pelo número de execuções de Bach, Vivaldi, Mozart e Beethoven pode ser facilmente rebatido pelo número de execuções dos artistas populares em rádios, TVs, iPod, mp3 e iTunes de toda a população, que os ouve a pé, em ônibus, nas salas de espera e até trabalhando.

A questão é muito maior, mas eu gostaria de focalizar três itens. O primeiro é a feiura da coisa. Ouvindo os arranjos — a maioria péssimos, redutores — que são escritos para esses artistas não eruditos, nota-se claramente que suas músicas pioram e que a orquestra poderia ser facilmente substituída por um teclado qualquer, talvez vestido de terno e gravata. Aquelas harmonias são ridículas desde que Claus Ogerman tentou sistematicamente acabar com o genial João Gilberto.

O segundo é que a justificativa para a existência de tais excrescências sonoras deve ser o público, que acha bonitinho ouvir seus Beatles ou seu Nenhum de Nós sob uma roupagem amenizada. Até as vovozinhas poderão curtir a música que sai pasteurizada e sem nada de seu espírito original das cordas assépticas da orquestra. É a morte da morte. Morte de uma orquestra que poderia dedicar-se a algo mais digno de seu estilo e história e morte da vivacidade de uma música que reaparece morta, estrangulada sob o peso de um anacronismo digno de um Paul Mauriat ou de um Ray Coniff, sem nunca chegar ao (baixo) nível de um André Rieu, que pelo menos dedica-se a eruditos ligeiros. Mas esqueci, há mais uma morte: a da sonoridade da orquestra. Esta é um organismo acústico e, nesses concertos de música popular, elas aparecem amplificadas, elétricas, como símbolo de uma sofisticação inexistente. Se o sentido é escutar a orquestra tocando, com suas nuances e espacialidade, acaba-se a experiência quando todo o som da mesma sai de um par de caixas de som.

O terceiro item é que essas orquestras devem receber algum tipo de incentivo governamental para suas “atividades culturais”. Afinal, são ligadas a universidades. Mas as universidades não estão nem aí para o desenvolvimento de uma boa orquestra ou de determinada contribuição artística para a comunidade. Filha bastarda da universidade, essas orquestras servem mais aos músicos que engordam seus salários com cachês. Para eles, sim, serve a facilidade de tocar roquezinhos em concertos. Fazem-no com uma mão nas costas, sem nem precisar estudar. Que ganhem seu dinheiro — que não é muito — honrando a música para a qual estudaram.