Os dois maiores filmes recentes sobre o amor?

Sabe-se que as grandes obras costumam girar sobre três temas básicos: o amor, a morte e deus. O cinema adora o amor, até porque é mais leve do que fazer filmes sobre o silêncio de deus e poucos além de Bergman sabem falar da morte. Porém, os dois filmes que escolhi também falam sobre a morte.

As Pontes de Madison é narrado através das cartas de uma mãe recém falecida, Francesca Johnson (Meryl Streep), e esta fala sobre outra morte, a do fotógrafo da National Geographic Robert Kincaid (Clint Eastwood). Em Encontros e Desencontros — incrível tradução de Lost in Translation — fica tão clara a diferença de idade entre os personagens de Scarlett Johansson e Bill Murray, que só podemos pensar: ela é muito jovem e tem a vida pela frente, ele tem muito menos tempo. Bem, de qualquer modo, a morte está em quase toda manifestação humana.

Lost in Translation (2003) é o segundo filme de Sofia Coppola. Bill Murray faz um ator de meia-idade que se encontra em Tóquio para uma campanha publicitária. É casado e desanimado, inclusive com seu casamento. Ele se sente oprimido com a rotina sem sentido de sua vida. No hotel, onde está hospedado sozinho, conhece Charlotte (Scarlett Johansson), uma jovem recém casada que aguarda o marido que está trabalhando por alguns dias noutras cidades do Japão. Há nele enorme entusiasmo profissional, mas quase nenhum por sua jovem mulher que é deixada a esperar. Ambos estão desconectados de seus parceiros e, juntos, começam a repartir horas que não passam enquanto se estabelece uma relação de compreensão mútua. O caso não vai adiante neste excepcional roteiro da própria diretora, filha de Francis Ford Coppola, autor de outro clássico deste cinema de momentos apenas respirados, A Conversação (1974).

As Pontes de Madison (The Bridges of Madison County, 1995) tem origem num livro bastante fraco de Robert James Waller. Eu o li. Alfred Hitchcock já ensinava que não se deveria pegar obras-primas literárias para passá-las ao cinema. Ao natural, dizia o gordo, as obras mas fracas são as que mais se prestam à conversão, talvez porque seja mais simples criar significados onde não há e é inviável imitar ou alterar o significado de obras densas. A história é simplíssima. Conta a história de Francesca (Meryl Streep) uma mulher casada que se envolve com um fotógrafo da revista National Geographic que, numa tarde indolente, chega a Madison, em Iowa, a fim de registrar imagens das famosas pontes cobertas. O marido e filhos de Francesca, que vive num sitio, estão ausentes devido a algum evento rural, como uma exposição de animais. A história é contada em flashbacks. Após a morte de Francesca, seus filhos descobrem um manuscrito que revela esta passagem de sua vida.

São obras de climas com vários pontos em comum, apesar de se passarem em ambientes diversos. A ação de Pontes de Madison ocorre no campo, em Madison County, para onde se dirigiu o fotógrafo Robert Kincaid (Clint Eastwood). Lost in Translation se passa no Japão, num hotel no centro da metrópole. E aqui cessam as grandes diferenças do quarteto ou quinteto: dois homens são fotógrafos, profissão que já pressupõe despojamento e viagens. Três são casados — só Kincaid-Eastwood não é — e três parecem estar decididamente à deriva pelo mundo — só Francesca-Streep está firmemente em casa. Porém, todos eles, casados ou bandoleiros, estão sentimentalmente à deriva e parecem encontrar amor ou o consolo em apenas um encontro efêmero.

Em verdade, sob o amor, há o tema da insatisfação. Nem o bobinho marido  workaholic de Scarlett no filme de Sofia Coppola parece feliz. Estão todos insatisfeitos; se Francesca, Robert e Bob Harris (Bill Murray) passaram e passarão suas vidas neste estado, a Charlotte de Johansson fica paralisada no meio da rua, enquanto Brian Ferry canta More than this, there is nothing.

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O pulso de Clint Eastwood

Eu ia escrever “a mão de Clint Eastwood”, pois sei do delicado e compreensivo tratamento do diretor para com seus atores. Pulso parece algo autoritário, mas possui a vantagem de denotar não só controle como ritmo. Fica pulso.

Foi um fim de semana cinematográfico. Eu me escondi do calor assistindo ao decepcionante Chéri, de Stephen Frears, infelizmente um diretor em queda livre — dei-lhe  nota 1 — , ao esplêndido O que nos resta de tempo — filme de Elia Suleiman sobre a questão palestina — e Invictus, mais uma demonstração do notável poder narrativo de Clint Eastwood. Depois do médio A Troca e do excelente Gran Torino, o quase octogenário diretor (31 de maio de 1930) volta com um torpedo emocional que fez o escritor Francisco José Viegas dizer:

Acho que só tinha vertido uma lágrima por causa de… (…) Invictus devia ser proibido por esse motivo. Uma pessoa desfaz-se, comove-se, esquece.

A pessoa que estava a meu lado chorou bastante e em diferentes momentos. Eu senti vontade, mas não saiu. Além do mais, já tinha feito bastante disso em As Pontes de Madison e em Um Mundo Perfeito. Sabia que Clint poderia vir buscar minha lágrimas novamente. Como escreveu Luiz Carlos Merten, não deve ser difícil encontrar defeitos no filme, porém é mais gratificante permitir-se viajar na catarse e nas qualidades de Invictus. A história é conhecida nossa e dos argentinos: em 1970 e 1978, nossas seleções nacionais de futebol foram utilizadas como fator de união nacional. Porém o subtexto que percorreu nossas conquistas sul-americanas foi a tortura, os porões e o sofrimento, bem diferente do subtexto antirracista do filme. A história é real e aconteceu na África do Sul, mas é tipicamente americana. A vontade de um contra a incompreensão da sociedade.

Nelson Mandela, recém eleito presidente, tem de unir o país a fim de que ele não caia em mais uma das rotineiras guerras civis da região. Deve ter montado várias estratégias e Invictus foca-se na mais barulhenta delas: a tentativa de tornar o país vencedor da Copa do Mundo de rugby de 1995. O rugby é importante para os sul-africanos e a Copa seria em casa. Você acha que rugby é o esporte mais baixo na escala humana? Olha, eu também acho mais ou menos isso, porém o que você não pode ignorar é o poder de mobilização que o esporte tem e sua capacidade de servir como representação de um país ou grupo de pessoas. O gênero de espetáculos produzidos nos estádios possui maior variação de humores e participação do que qualquer outro. A disposição para amar ou odiar o time ou amar e odiar a si mesmo é absoluta. Mandela compreendeu a importância de unir o país em torno de um time de brancos que todos determinavam como um fracasso, tornando-o popular e seu representante legítimo.

As atuações de Morgan Freeman e Matt Damon estão no nível habitual conseguido pelo silencioso e calmo diretor que apenas diz OK, start anytime, cut, thank you e let`s do it again, please (no máximo 3 vezes), ou seja, estão muito próximas do nível máximo de suas carreiras. São personagens difíceis, ambos com complicada vida familiar e uma missão maior. Mas nada, nada disso seria útil se não houvesse o impecável ritmo narrativo a fazer com que os 134 minutos de Invictus passassem como se fosse meia hora.

Ah, se é piegas? Claro, fora de dúvida! Parece resolver todos os problemas de ressentimento criados pelo apartheid? Sim, mas e daí? Vá lá ver se não é um filme cheio de humanidade, quero ver se você não perdoará Clint na hora.

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Um certo livro infantil

Em minha curta experiência na Biblioteca do Instituto Santa Luzia, sempre perguntava quais eram os livros mais retirados e amados pelos alunos. O primeiro da lista era uma unanimidade entre as bibliotecárias: o belíssimo A Casa Sonolenta, de Audrey Wood (desenhos de Don Wood). Este livro foi lido e mostrado por mim e por minha ex para meus filhos incontáveis vezes. Trata-se de um dia chuvoso e chato em que todas as pessoas da casa só desejam dormir. Todos, desde a avó, vão se empilhando sobre uma cama periclitante até que uma pulga resolve morder o gato que está no alto da pilha. Este dá um salto e o resultado é mais do que acordar todo mundo. O bom é observar o susto de cada um, todos de pijamas, em trajes mais ou menos íntimos.

O que a criançada mais gosta são dos contos de repetição. Há uma situação — boa ou ruim — que se repete. Tal situação ou está ameaçada ou afirma-se inevitavelmente, sob as circunstâncias mais improváveis. Também contribui para o sucesso o fato de que tais histórias simples permitem certa “atuação” ao adulto que as relata. É divertido. As crianças amam as repetições e pedem para que a gente as conte trocentas vezes. Lembro de muitas outras que obviamemente acabei decorando. Uma das melhores é também do casal Wood: a deliciosa O Rei Bigodeira e sua Banheira. Ambas estavam entre os livros que mais recontava para meus filhos, mas havia um que acabei fazendo sumir lá de casa.

Um belo dia, provavelmente em 25 de setembro de 2001, vi que a Bárbara ganhara (de quem?, não lembro) um livro anormalmente bonito chamado O Homem que amava caixas, de Stephen Michael King. O livro foi dado a ela fora da festa, talvez por um colega de aula, pois lembro que ela chegara inesperadamente com a novidade e, ato contínuo, pediu para que eu lesse a história. Olha, não sei como cheguei ao fim. Não sou de chorar em filmes nem na vida. No final de As Pontes de Madison, por exemplo, olhei divertido o festival de homens e mulheres fungantes de olhos vermelhos, mas o livro que a Bárbara ganhara me fazia desmanchar a ponto de eu acabar por retirá-lo de circulação. Por quê? Ora, um certo pudor me dizia que era melhor não demonstrar uma comoção além da conta. Não faço a mínima ideia de onde o escondi, talvez tenha sumido na casa de minha mãe. Durante o feriado andei por aí atrás dele. Nada.

Fui à Internet e descobri que tem status de clássico. Muitos adultos escreveram a respeito, é a história preferida de vários, seu texto está reproduzido por todo lado e ele é mostrado e contado no YouTube. Acredito que esta história ocupe uma posição diversa do habitual. Pois ela fala demais ao adulto. Tenho certeza de que minha emoção vinha mais da minha relação com meu pai, já morto em 2001, e menos do relacionamento com meus filhos. Ou talvez fosse mais correto dizer que misture tudo.

Então hoje é o dia de submeter meus sete leitores a uma “contação de histórias” (isto se eles conseguiram chegar até este ponto do post). Uma certa Kika gravou um vídeo em que ela mostra o livro e lê O homem que amava caixas. Primeiro vai o vídeo e após o texto. Sim, mesmo que a tia Kika nos conte bem devagarinho e mexa o livro deixando o foco quase maluco, ainda fico comovido… Fazer o quê? Não, não choro mais, só faço ela contar de novo…

O homem que amava caixas

Era uma vez um homem
O homem tinha um filho
O filho amava o homem
e o homem amava caixas.

Caixas grandes
caixas redondas
caixas pequenas
caixas altas
todos os tipos de caixas!

O homem tinha dificuldade em dizer ao filho que o amava;
então, com suas caixas, ele começou a construir coisas para seu filho.
Ele era perito em fazer castelos
e seus aviões sempre voavam…
a não ser, claro, que chovesse.

As caixas apareciam de repente, quando os amigos chegavam, e, nessas caixas, eles brincavam…
e brincavam…
e brincavam.

A maioria das pessoas achava que o homem era muito estranho.
Os velhos apontavam para ele.
As velhas olhavam zangadas para ele.
Seus vizinhos riam dele pelas costas.

Mas nada disso preocupava o homem,
porque ele sabia que tinham encontrado uma maneira especial de compartilharem…
o amor de um pelo outro.

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