Ospa entre a alegria e o aperto

Ospa entre a alegria e o aperto
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Ospa: mais um belo concerto ontem à noite | Foto: Antonieta Pinheiro — Clique para ampliar

A Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados aprovou ontem o projeto de decreto legislativo que trata da chamada “cura gay”. A proposta altera uma resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP) que proíbe psicólogos de atuarem na mudança da orientação sexual de pacientes. Desta forma, a homossexualidade volta a ser uma doença em nosso país e pode ser tratada. Mais uma vez, o Congresso debruça-se sobre uma besteira.

Coincidentemente, como frisou o Samir Rahde na saída do concerto, a Ospa dedicou a noite de ontem à música de um doente: Tchaikovsky. De um doente talvez em surto, pois sua 4ª Sinfonia foi escrita durante o tumultuado casamento com Antonina Ivanovna Miliukova, na verdade uma tentativa de cura gay feita pelo próprio compositor, uma autoajuda que não deu certo. O casamento, proposto à princípio pela moça e aceito com relutância, durou apenas seis semanas, não obtendo colocar Tchaikovsky entre os honrados chefes de família da sociedade czarista. A moça não queria só fachada. Tinha razão, claro. Por outro lado, não há notícia de que houvesse um Marco Felicianov na Rússia do século XIX. Só houve sofrimento, pois. Read More

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Notinha sobre a politização da justiça ou a judicialização da política

Já vou me defendendo, garantindo que sou pela democracia. Obviamente, não sou a favor do fechamento do Congresso como fizeram o AI-5 de dezembro de 1968 e o Marechal Deodoro em 1891. Aliás, no mesmo ano, Júlio de Castilhos impunha uma Constituição no RS que eliminava a divisão dos três poderes… Porém, o que vemos hoje é um auto-fechamento, em que o Congresso vai lentamente pedindo demissão das grandes questões, deixando cada vez mais espaço para o Judiciário. Afinal, o mundo segue girando e alguém fatalmente teria que tomar os passos ao encontro de questões como o aborto de anencéfalos, o casamento gay, as cotas, as marchas da maconha, o uso do twitter, etc.

Pois é evidente que, invertendo joyceana e artificiosamente as palavras, a judicialização da política leva à politização da justiça, o que é mesma coisa, mas muito mais claro.

Enquanto isso, em nosso Congresso Nacional, tivemos na última quinta-feira um debate sobre a Cura Gay. O deputado homofóbico João Campos (PSDB-GO) queria sustar a tardia resolução do Conselho Federal de Psicologia que definiu apenas em 1999, que os profissionais da área não patologizariam práticas homoeróticas e não colaborariam com serviços e eventos que proponham tratamento e cura da homossexualidade.

Art. 3° – os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.

Parágrafo único – Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.

Estas tímidas linhas, perfeitamente razoáveis, foram alvo dos ataques de João Campos, o qual obteve tempo no Congresso para encher o saco. Ou seja, o Congresso fica alheio aos mais importantes debates nacionais, ficando nas mãos de uma bancada religiosa que é tratada com atenção até pela presidenta, uma ex-pagã. E há outras judicializações, a da saúde, por exemplo, da qual nem vou tratar.

A nomeação de um novo aiatolá para o STF é um fato fundamental para o país. Afinal, aqueles guardiões da Constituição tornaram-se legisladores num país onde o Congresso parece cada vez mais incapaz de criar leis, engessado pela bancada religiosa, pela governabilidade. Este ano, dois aiatolás serão aposentados — Carlos Ayres Britto e Cezar Peluso. Resta pedir a Dilma Rousseff que coloque alguém a favor do aborto, da laicidade do estado, do fim da imunidade tributária religiosa, dessas coisas que nos farão evoluir.

(Porém, na esfera gaúcha, a excessiva judicialização já começa a fazer água. O MP tentou interditar o Beira-Rio — questão menor, talvez ligada à grenalização do estado — e se deu mal. Cômico.)

Toda a beleza homofóbica de João Campos (PSDB-GO).

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Os símbolos religiosos e quem não os quer mais

TJ-RS negou solicitação para retirada de símbolos religiosos de repartições públicas, citando preâmbulo da Constituição | Foto: Ramiro Furquim / Sul21

Publicado em 4 de março de 2012 no Sul21

“Se Deus não existe e a alma é mortal, tudo é permitido”, diz o personagem Ivan Karamázov em Os Irmãos Karamázovi, de Dostoiévski. O russo era cristão e foi um escritor genial. Tão genial que lograva transferir-se para a pele de seus personagens de tal maneira que é difícil supor as ideias do homem por trás do romancista. Pois Dostoiévski não parece projetar-se em ninguém; em seus romances não há uma voz onisciente que comande tudo. Desta forma, o ateu Ivan Karamázov era provocativo, principalmente com seu irmão mais moço, o beato Aliócha, e a célebre frase é um caso exemplar de descontextualização por ter sido pronunciada por Ivan para Aliócha e não de Dostoiévski para uma plateia, por exemplo.

A noção de entidades superiores que julgam os atos dos homens talvez preceda a própria noção de humanidade. Para a antiguidade, de forma mais indiscutível do que hoje, Deus criara não apenas a vida e a existência do mundo e do universo, mas encarnava os preceitos éticos do certo e do errado. Deparando-se com o caos da vida e com leis insuficientes, os homens precisavam de limites. Sem eles, talvez os homens roubassem e matassem uns aos outros, cada um pensando ter direito a tudo. Deus os olharia e julgaria, no papel de representante do bem, do correto e da retidão, enquanto o Diabo representaria o mal, o errado, a destruição, o roubo e a morte. O ser humano que estivesse em coesão com Deus estaria de acordo com sua justiça.

Santo Agostinho, porém, disse: “Não basta querer crer, é necessário podê-lo”

Depois — durante toda a Idade Média e além, houve longo predomínio da moral cristã no mundo ocidental — , Deus permaneceu identificado com o Bem, a Justiça e a Verdade. Santo Agostinho (354-430), bispo, teólogo e filósofo da Igreja Católica, fundamentou a moral cristã na busca pela felicidade e a felicidade suprema consistiria num encontro com Deus na imortalidade. Só assim o homem poderia ser verdadeiramente feliz. E, para sê-lo, bastaria obedecer às leis e aos preceitos de Deus.

Desta forma, a Justiça dos homens acostumou-se a invocar Deus a fim de julgar corretamente os problemas do mundo, pois o contexto impedia a existência de teorias éticas autônomas da doutrina da Igreja. Todas elas, de uma forma ou outra, teriam que estar de acordo com os princípios divinos. Quem não viu filmes onde a testemunha, antes de responder a qualquer coisa, jurava dizer a verdade, somente a verdade, nada mais do que a verdade, com a mão sobre a Bíblia?

Crucifixo que abençoa o plenário da Câmara Municipal de Porto Alegre | Foto: Ramiro Furquim/Sul21.com.br

Não surpreende, portanto, que até hoje haja símbolos católicos nos prédios da Justiça e de outros órgãos públicos. É contra isto que a Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) e outras cinco entidades protocolaram pedidos. Desejavam a retirada dos símbolos religiosos das repartições do Executivo estadual, da Assembleia Legislativa, da Câmara dos Vereadores de Porto Alegre e do TJ-RS, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Em resposta, o juiz assessor Antonio Vinicius Amaro da Silveira utilizou o argumento de que, no preâmbulo da Constituição de 1988, consta a frase de que esta fora promulgada “sob a proteção de Deus” e isto garantiria que aqueles símbolos religiosos não deveriam ofender os ateus e os adeptos de outras crenças. Seriam esperados e “naturais”.

Naiara Malavolta, articuladora estadual (RS) da Liga Brasileira de Lésbicas, explica a ação na Justiça: “Primeiramente, há uma clara contradição na Constituição Federal. A constituição que declara o estado como laico foi escrita ‘sob a proteção de Deus’. O fato é que precisamos reagir contra a invasão do público pelo privado. Nas escolas, a história das religiões deveria ser ministrada por historiadores, não por religiosos. A consequência de toda esta presença é a desconstituição de direitos por parte de  representantes da moral católica”. Sobre os símbolos, Naiara explica que os símbolos religiosos agridem boa parte dos homossexuais, pois simbolizam não apenas a fé como a tutela da instituição sob uma moral religiosa. “Muitos evangélicos, por exemplo, pouco sabem do que está escrito na Bíblia, mas ouvem o que é dito nas reuniões. E o que é dito é a posição majoritária evangélica: são homofóbicos, contra o aborto, propõem ‘curas gays’, etc. A oposição ao PLC122 (Projeto de lei que criminaliza a discriminação por orientação sexual) por parte da bancada evangélica diz tudo.

Monumento à Bíblia em praça de Paranavaí

O antropólogo Emerson Giumbelli, professor da UFRGS e coordenador do Núcleo de Estudos da Religião (NER) afirma que há, cada vez mais, iniciativas visando a retirada dos símbolos religiosos de locais públicos, mas que a resistência é  forte. “As respostas costumam ser ou evasivas ou de clara recusa. Porém, se reconhecemos a sociedade como plural em termos religiosos, tais símbolos, tidos como naturais a quem professa a religião católica, deveriam ser retirados”. Perguntado sobre o fato dos símbolos serem católicos, Giumbelli respondeu que “o cruxifixo é uma imagem rigorosamente católica, os protestantes e muitos evangélicos usam as cruzes sem o Cristo. A novidade é que a Bíblia tem crescido como símbolo de religiosidade, principalmente entre os evangélicos, mas também em Câmaras de Vereadores, etc. Por exemplo, no interior do país, já há muitos Monumentos à Bíblia. Os crucifixos têm cada vez menor representatividade”.

Sobre o fato da iniciativa dos pedidos de retiradas serem basicamente dos movimentos LGBT, Giumbelli afirma: “É claro que tais movimentos são muito mais sensíveis à questão. Porém, e isto agora é uma opinião pessoal, penso que eles só conseguirão avançar quando um leque mais amplo da sociedade civil lhes der apoio. O fato é que não há mais símbolos consensuais. A extensão de cada um é limitada e há ainda que considerar as pessoas sem religião”.

O antropólogo da UFRGS faz questão de sublinhar um fato que vem ao encontro da manifestação do desembargador Túlio de Oliveira Martins, presidente do Conselho de Comunicação Social do TJ-RS e finaliza: “Fico feliz que esta discussão exista. Discutir símbolos religiosos ou a retirada total deles é muito importante. Além da questão cultural e pessoal há o princípio do estado laico que não deve ser desrespeitado”.

E Dostoiévski? Melhor esquecê-lo? Não, de modo algum. Afinal, a frase deve ser limitada a uma inteligente provocação de Ivan Karamázov a seu irmão Aliócha. A quem duvidar disto, bastará ler o que diz Raskolnikov em Crime e Castigo e saber que Dostoiévski jamais assassinou velhinhas a machadadas. O personagem acaba antes do autor, assim como o privado antes do público.

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