Segredos, de Domenico Starnone

Segredos, de Domenico Starnone

Após os excelentes pequenos romances Laços e Assombrações, Domenico Starnone retorna com mais um, Segredos. Os três livros — todos publicados no Brasil pela Todavia — formam uma esplêndida trilogia sobre as complexas tramas dos relacionamentos amorosos e familiares.

Pietro vive um amor tempestuoso com a bela e brilhante Teresa, uma mulher exuberante em todos os sentidos. Ele fora um professor muito admirado por ela na escola. Meses depois de sair da escola, ela procura Pietro e o seduz facilmente. É uma mulher incontrolável, 12 anos mais jovem que o professor. Eles brigam muito e, após uma destas discussões, surge uma ideia: diga-me algo que você nunca disse a ninguém — ela sugere –, diga-me a coisa de que mais se envergonha e farei o mesmo. Deste modo, permaneceremos unidos para sempre.

(Diga-se de passagem que Starnone foi professor de escola por mais de 30 anos).

Unidos? Eles terminarão o relacionamento logo em seguida… Então, quando Pietro conhece Nadia, ele instantaneamente se apaixona por sua timidez e relutância, por sua suavidade, depois de tanta agitação. Só que alguns dias antes do casamento, Teresa reaparece. Ela não quer nada com ele, mas, com ela, ressurge a sombra do que eles confessaram um ao outro.

— Lembre que, se você vacilar com essa pobre moça bonita, eu sei de coisas que podem te destruir –, disse ela, alegremente.
— Eu também sei coisas lindas de você. Por isso, olhe lá, ande na linha. Fique esperta.

Unidos sim. A vivacidade e as atitudes fortes de Teresa marcam Pietro. Eles seguem caminhos diferentes na vida: ela inicia uma fulgurante carreira nos Estados Unidos e Pietro, mais discretamente, começa a se destacar como um crítico do sistema educacional italiano. Mesmo casado com Nadia, Pietro mantém por décadas trocas de cartas com Teresa. De  certo modo, sua autoestima e reconhecimento de sucesso dependem do aval dela. Ele pensa temer pelos segredos trocados, mas isso é passado e ele depende dela apenas porque depende.

Que problema, um amigo me disse uma vez, se apaixonar por uma mulher que, em todos os aspectos, é mais viva do que nós.

Os anos passam e a jovem família se consolida, cresce e Nadia agora é mãe de Emma, ​​Sergio e Ernesto, os três filhos de Pietro. Segredos começa com estas palavras:

O amor, dizer o quê?, fala-se tanto dele, mas não acho que eu tenha usado a palavra com frequência, aliás, minha impressão é que nunca recorri a ela, apesar de ter amado, claro que amei, amei até perder a cabeça e os sentimentos. De fato, o amor tal como o conheci, é uma lava de vida bruta que queima a vida fina, uma erupção que anula a compreensão e a piedade, a razão e as razões, a geografia e a história, a saúde e a doença, a riqueza e a pobreza, a exceção e a regra.

Domenico Starnone nos coloca diante de dois tipos muito diferentes de relacionamentos. Na vida há amores e amores, relacionamentos e relacionamentos: cada um tem muito que não pode ser reproduzido nos outros. Os amores vão se alterando, transformam-se às vezes em monstros mas, de uma forma ou de outra, não desaparecem. Aqueles que amamos um dia continuam sendo os guardiões de algumas ansiedades, incertezas, hesitações e de fatos que poucos conhecem. Eu sempre disse que ex, qualquer ex, é cargo de confiança…

Segredos mostra as qualidades indiscutíveis ​​de Starnone, um escritor direto, observador crítico e agudo dos traços humanos. Seus personagens são muito imperfeitos, não parecem sinceros e consideram-se medíocres. Starnone guarda para eles um olhar desapegado, além da leveza das boas narrativas. Ele nos fala de pessoas que parecem inadequadas para si mesmas, mostrando o quão frágeis são as bases em que se baseiam suas (nossas) identidades.

Domenico Starnone (1943)

Tchékhov esteve no inferno e voltou para contar

Tchékhov esteve no inferno e voltou para contar

Do publico.pt

Tchékhov na ilha de Sacalina, em 1890: o escritor deixou a família e os amigos estupefactos ao anunciar uma viagem à temível colónia penitenciária do regime czarista

A perigosa viagem de Tchékhov ao lugar maldito do Império do Czar, para estudar a vida dos condenados a trabalhos forçados, mantém-se episódio mais estranho da vida do grande autor russo. “A Ilha de Sacalina” acaba de ser publicado (também no Brasil).

Em 1889, com o agravamento dos seus sintomas de tuberculose, o ainda jovem médico Tchékhov (1860-1904) – então já um conhecido autor nos meios literários russos – torna-se pessimista em relação ao seu estado de saúde. Nesse ano, morre-lhe um irmão vitimado pela mesma doença. Após assistir ao enterro, Tchékhov decide iniciar uma série de viagens aparentemente sem rumo (segundo disse mais tarde, essa constante mudança de ares salvou-lhe a vida). Mas é em Janeiro do ano seguinte que deixa a família e os amigos estupefactos, ao anunciar uma viagem ao longínquo Leste da Rússia, à temível colónia penitenciária dos desterrados do Império Czarista, no oceano diante da costa siberiana, a ilha de Sacalina. “Em redor o mar, no meio o inferno.”

Tchékhov prepara a viagem durante meses. Procura toda a informação disponível e lê o que encontra escrito pelos exploradores, quer sejam geógrafos, agrónomos, cartógrafos ou navegadores. O amigo e editor Suvórin empresta-lhe os rublos necessários para essa viagem arriscada e perigosa. Por essa época, ainda não existia o comboio transiberiano, e a viagem teria de ser feita de carruagem puxada por cavalos através da taiga e das estepes; o barco até à ilha seria a parte mais fácil. Contava demorar 30 dias de carruagem e o resto na “coberta de um navio”. Mas as coisas não correram assim: entre inesperadas paragens e incidentes, demorou 11 semanas a chegar ao porto onde subiria a bordo do barco que o levaria à ilha. É nessa cidade de Nikolaievsk, onde os habitantes vivem na “indolência e na bebedeira”, que ele inicia a narrativa, a 5 de Julho de 1890. Espera três dias até que o barco levante ferro: durante um almoço, ouve falar de um prestidigitador que chegou à cidade e de “um japonês que arranca os dentes com os dedos”. Mas as primeiras impressões a bordo parecem anunciar bons presságios: “Farto de leituras que só me falavam das tempestades e dos gelos, esperava encontrar a bordo caçadores de baleias com vozes roucas e a cuspirem tabaco de mascar; no entanto, só encontrei pessoas de estatuto social bem elevado.”

Mas não sabia o que o esperaria, apesar das muitas leituras. O seu espírito mantinha-se alerta e receptivo ao que os ventos e as ondas lhe trouxessem. O motivo da viagem era estudar o sistema prisional de modo científico, pagando assim, acreditava, o tributo que devia à medicina, outra das suas paixões para além da literatura. No entanto, receia ter cometido uma frivolidade, pois não leva cartas de recomendação, ou de autorização, apenas um documento que o apresenta como jornalista, mas do qual ele nunca fará uso pois não é sua intenção escrever alguma coisa do que vir em jornais. Passados três dias de mar, aproxima-se da ilha. Aquilo é “terra incógnita”. “O sentimento que se apossa de nós é sem dúvida semelhante ao de Ulisses, ao navegar num mar desconhecido e pressentindo vagamente que ia encontrar seres fabulosos.”

Um rebanho numa cloaca

Desembarca no Norte da ilha, sabe que “Sacalina não tem clima, só mau tempo”. Mais tarde consultará os registos meteorológicos para ficar a saber que a temperatura média anual da região é de 0,1º centígrados. Nos primeiros tempos fica hospedado em casa de um médico “parecido com Ibsen” que não gosta das autoridades da ilha.

Tchékhov consegue então obter autorização do governador para visitar todos os presídios e falar com os prisioneiros e os condenados a trabalhos forçados, à excepção dos presos políticos. Manda então imprimir dez mil exemplares de um questionário que ele próprio idealizou e mete mãos (e pés) ao trabalho. Percorre as partes Norte e Sul da ilha durante cerca de três meses. Não se limita aos inquéritos que faz aos presos e às suas condições. O livro, que são as suas notas de viagem, apresenta descrições da flora, da fauna, dos tipos de solos, das vias de comunicação, das paisagens, do quotidiano das populações (incluindo as nativas), da hipocrisia e da incúria dos funcionários, do sistema de servidão aproveitado pelos colonos, etc. E conclui que tudo é deplorável e pouco melhor do que o tratamento que é dado aos condenados. “(…) numa cela exígua onde se encontram uns vinte evadidos recentemente recapturados: esfarrapados, sujos e acorrentados, trazem nos pés sapatos disformes atados com trapos ou cordas; de um lado do crânio têm cabelos desgrenhados; do outro, os cabelos rapados há alguns dias já começam a crescer. Estão todos muito magros – parecem animais na muda da pele.”

Mas o “investigador” é também já o escritor; as histórias narradas, no seu estilo conciso, interrompido de vez em quando para introduzir descrições e reflexões, trazem agarradas as personagens tchekhovianas – alguns dos casos descritos são autênticos contos. Nos retratos que faz, quer de carcereiros, funcionários ou prisioneiros – os que vivem “esta vida de rebanho encerrado numa cloaca” – está já o Tchékhov da crítica social, o denunciador de injustiças, o que se insurge contra a “desproporção das penas em relação aos crimes”, como notam os tradutores (trabalho exímio) no interessante e informado prefácio que escreveram.