Relato de uma Viagem à Itália (II)

Pegamos o vôo para Roma pela Ibéria, já acostumados ao mau tratamento e aos atrasos da empresa. Chegamos às 22h ao aeroporto de Fiumicino e o amigo da Claudia, Mario De Cristoforo, já estava nos esperando. Ele me perguntou se eu já conhecia Roma e, ouvindo minha resposta negativa, propôs a seu colega Pedro, que dirigia o carro, um rápido tour pela cidade. Senti-me protagonizando a cena final de Roma de Fellini, na qual um grupo de motociclistas percorrem alucinadamente a cidade, passando — e não poderia ser diferente, porque a cidade é um museu a céu aberto — por vários de seus monumentos históricos. Vimos o Altar de Pátria, o qual foi descrito por Pedro como um horror criado por Mussolini (verdade); paramos em frente ao Coliseu, muito bonito e fantasmagórico à noite; e vi ruínas, ruínas, ruínas por todo o lado, as quais vão sendo sistematicamente cuidadas, recolhidas e remontadas. Percorrendo Roma de carro, à noite, certamente estava despejando ohs! e ahs! para todo o lado, nem que fosse em silêncio.

Ficamos insuficientes 4 dias na cidade. A chuva, aquela que costuma me acompanhar e que desta vez até transformou-se em neve, esteve sempre presente em Roma, mas não nos impediu de passar todo o tempo fora de casa. Penso que o ponto alto foram as caminhadas pelas ruelas da cidade histórica, com o ambiente barulhento e desorganizado em torno de nós e as surpresas que aconteciam a cada virada de esquina. Deixando de lado o mapa, tínhamos a possibilidade de ver uma Piazza Navona, uma Fontana di Trevi, o bairro judeu, uma pequena piazza ou apenas mais uma rua ao fazermos uma curva. Se tivesse que eleger o que mais gostei em Roma, ficaria com suas ruas, depois com o Pantheon, a Fontana di Trevi, a Piazza Navona, a Piazza di Spagna ligada à Scalinata della Trinità dei Monti, o Caffè Greco, os estupendos Musei Vaticani, a estranha imensidão do Circo Massimo com seus atletas de fim de semana e o mercadão dominical de Porta Portese. Também adorei as pequenas igrejas da Via del Corso, os notáveis afrescos de Santa Maria del Popolo na Piazza del Popolo e mais vinte outras que esqueci os nomes.

As decepções foram a Catedral de São Pedro, uma ostentação medonha que parece existir mais com a intenção de oprimir os pobres seres humanos com o poder da igreja do que ser um local de devoção e fé. Sinceramente, a Catedral do Papa pareceu-me destinada a arrancar exclamações de turistas deslumbrados. A mim, causou um pouco de medo e fantasias rápidas de inquisição. Também fiquei desiludido ao ver a chocha expressividade perfeita da Pietà – esperava algo com a intensidade da clássica cena de Bergman em Gritos e Sussurros e vi apenas algo impecável, perdido na riqueza da Catedral. E voltando ao Altar da Pátria (Altare della Patria)… aquilo é um trambolho imenso, heróico e mussoliniano a estragar a paisagem, só tornando-se interessante de longe, quando não se vê seus detalhes.

Comemos sempre muito bem. Se íamos fazer economia nas pizzeria al taglio, o resultado era maravilhoso; se íamos gastar numa gelateria das piazze, experimentávamos o melhor dos sorvetes; se estávamos congelando e entrávamos num caffè ou numa cioccolateria, tínhamos vontade de passar lá o resto da tarde, lendo, bebendo e conversando. É natural que a comida italiana seja melhor na Itália, não? As pizza al taglio deles – que ficam atrás de vitrines acompanhadas de atendentes apressadas e simpáticas, sempre querendo nos cortar pedaços muito maiores do que o solicitado — poderiam ser servidas, com vantagem, nas melhores pizzarias brasileiras. Uma questão de qualidade dos ingredientes, explicava-me a Claudia.

Gastamos muito e bem em Roma. Há coisa barata e boa fora do circuito Helena Rubinstein; deveríamos ter viajado com a mala vazia para enchê-la com roupas de inverno na Itália. Os eletrônicos de pequeno porte também são acessíveis. Comprei um Walkman com CD, MP3, etc. por 39 euros. Tinha I-Pods a partir de 50 euros. Por que o mesmo Walkman custa R$ 300,00 no Brasil? Já os CDs são caros, principalmente para alguém financeiramente contido como eu, mas há honestos balcões de ofertas que me fizeram comprar uns 20 de primeira linha, sem cometer suicídio financeiro. Os livros também são muito acessíveis. O que é caro é a comida, as lojas para turistas e a hospedagem.

Depois destes 4 dias de caminhadas malucas, fomos para Verona de carro, com o casal Marisa Machado e Mario De Cristoforo, amigos da Claudia, como já disse. Mas isso fica para um próximo post. Finalizo Roma com fotos.

Escultura de Arnaldo Pomodoro na parte interna dos Museus do Vaticano, adornada pelo brinco da Claudia (lado direito da foto).

Os museus do Vaticano têm um acervo artístico interminável, seja em obras sacras, seja em profanas, afrescos, etc. De quebra, ainda temos a insuperável Cappella Sistina e os aposentos de Rafael, etc. Compreensivelmente, as fotografias são proibidas, mas não aqui, neste corredor bloqueado.

Caffè Greco: local onde pobres mortais podem alimentar-se acomodados em salas antes frequentadas por gentalha como Goethe e Byron.

O Coliseu: o cartão postal é uma ruína mais bonita por fora do que por dentro. A Arena de Verona, apesar de menor, é mais interessante.

Mesmo sem Anita Ekberg e com um frio do cão, a Fontana di Trevi é belíssima.

Do outro lado, o Imperador; deste lado, o povo; no meio, corridas de bigas e outras competições. Hoje, apenas atletas de fim de semana com seus abrigos e Nikes.

A escadaria da Trinità dei Monti com a Piazza di Spagna lá embaixo. Procurei em vão a janela utilizada por Bertolucci em Assédio. Acho que foi montagem…

Chamem a Inquisição! Perdoem-me, mas penso que a Pietà montada por Bergman em Gritos e Sussurros era tão intensa que olhei para aquela coisa toda perfeitinha  e achei sem nenhuma alma… Esperava muito mais. Pietà por Pietà, fico com esta, muito mais humana.

Não pensem que vou só ficar falando mal de Michelangelo por aí… Vale o torcicolo ficar admirando esta pequena parte do teto da Cappella Sistina. Melhor sentar ao fundo da Cappella para olhar. Mesmo assim, saí com o pescoço duro. A Sistina é o ponto alto dos Musei Vaticani e, mesmo que estejamos acompanhados por centenas de turistas, observá-la é uma experiência inteiramente individual que nos leva aos céus e nos traz de volta várias vezes. É Bach em pintura.

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Dramaturgia de senzala

Hoje é o Dia da Consciência Negra e é feriado em grande parte do país. Pois curiosamente, justo nessa semana, a novela Viver a Vida mostrou uma cena que despertou a ira dos movimentos afro. Além da ira, reclamam do sumiço da cena em que a personagem Tereza (Lilia Cabral) humilha e dá um tapa no rosto de Helena (a belíssima Taís Araújo). Sim, concordo; não é muito fácil de encontrar, a Globo deve ter ido à caça, dando cabo da mesma. Mas pus meus cães gugleanos à procura e eles a capturaram facilmente. Está ao final deste post. Dá até para baixar, mas meu micro não vai abrigar porcarias de novelas.

Concordo que a dramaturgia é de senzala e a qualidade do texto torna obra-prima A Escrava Isaura. Quero quer que o movimento negro se indignou mais com a dramaturgia senhor-escravo do que com o texto. Este é muito mais ofensivo àqueles que defendem o aborto, meu caso e das feministas. A CUT também opinou, mas, como tem acontecido, consigo discordar de todos.

As novelas são verdades ficcionais, então não sei se cabem protestos à Globo. Acredito que os irados estejam sendo tolos ao desconsiderarem o fato de que, certamente, Tereza se tornará uma terrível vilã comedora de afrodescendentes — coisa típica dessas “obras” — e que será rejeitada até por sua filha caucasiana. Os protestantes acham que as pessoas que veem essas novelas imaginam que estão ouvindo a razão? Ingenuidade. O que estes “representantes da sociedade” desejam dizer à emissora é que ela não pode criar personagens racistas nem utilizar católicos que sejam contra o aborto? Claro que pode! Talvez até deva, pois eles estão aí mesmo. O que a “sociedade do politicamente correto” deseja é o silêncio, a censura? Menos, né?

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Longe de Manaus, de Francisco José Viegas

A religião devia ser praticada em silêncio. Devia ser tão silenciosa como o vento nas florestas, apenas um rumor a chegar à atmosfera, uma fogueira crepitando lá, muito longe. É assim. Menos Deus, delegado, menos Deus. Para sermos melhores, precisamos de menos Deus, de menos crime, de menos assassinos, de menos mandamentos, de menos obrigações. E de mais cerveja barata, sem dúvida.

Delegado Osmar Santos, em Longe de Manaus

Faltam 12 páginas para eu acabar a leitura, mas, apesar do autor qualificá-lo como um “romance policial”, acho que posso ler depois as 12 faltantes das 462 páginas do livro. Porém, Longe de Manaus começa assim:

Um romance policial, como se sabe,
tem suas regras.
Este não tem.

Hum… Melhor ler as 12 páginas antes de continuar.

Voltei. Foi complicado conseguir Longe de Manaus. Num dia de 2005, a dona de uma livraria de Aveiro, O Navio de Espelhos, entrou em contato comigo a fim de obter permissão para entregar a seus clientes um mimo: meu pequeno conto O teclado onde pomos nossas mãos, que seria impresso pela livraria de forma artesanal. Em troca, pedi apenas duas coisas a Sónia Sequeira: que me enviasse uma versão do mimo e o romance Longe de Manaus, naquela época recém publicado. Esperei um ano e, antes de enviar um e-mail furibundo para Aveiro, terra de meus avós, fiz rápida pesquisa e descobri que a livraria tinha falido, provavelmente por culpa de meu conto. Esqueci a história e o livro. Depois, soube que Longe de Manaus fora lançado no Brasil pela Record, mas demorei a comprá-lo. Comprei-o há pouco e, em época de tantos arrependimentos, não me arrependo de tê-lo feito. O livro é bom pacas e deve ter merecido os prêmios (ou o prêmio) que ganhou em Portugal.

Tratar Longe de Manaus como um livro policial é uma redução. Guardadas as proporções, podemos resumir Os Irmãos Karamazov a um whodunit: “Quem matou o velho Fiódor?” Ou seja, ambos são policiais, mas também não são. Ou, escrevendo melhor, somos levados pelo que o romance tem de policial, mas o foco de interesse dos autores também é outro. Depois de um conflito bastante complexo e muito bem posto, Viegas e seu detetive Jaime Ramos vão nos apresentando pachorrentamente uma série de personagens construídos minuciosamente que têm em comum a distância geográfica, a língua e a solidão. Talvez a única exceção sejam Daniela e Helena, mas esta acaba assassinada e aquela só não parece mais solitária pela escancarada paixão com que o autor a trata.

Francisco José Viegas faz variações sobre o gênero estabelecido dos romances policiais. A primeira surpresa é que lemos um romance intimista onde as informações que fazem a trama ir à frente são largadas de forma casual — muitas vezes em digressões interessantes, mas que não parecem dizer respeito ao enredo –, formando um todo rarefeito. É curioso. Também seu detetive está fora da rotina: é um pequeno-burguês meio de saco cheio, louco para voltar para casa, abrir uma cerveja, dependendo desta acender um charuto, e ter uma conversa autista com Rosa. Mas não pensem que nas variações há vanguarda ou elaborado trabalho de linguagem. Não. É um romance clássico cheio de inventividade e charme. Também não pensem que ele está na categoria dos livros que parecem terem sido escritos para o passado. Sua amoralidade não deixa dúvidas que pertence ao tempo presente, assim como o fato de Viegas utilizar o “português brasileiro” e o “português português”, num livro que se passa em Angola, em Portugal e no Brasil.

Sim, apesar das diferenças ideológicas que mantenho com Viegas — que incluem sua trágica e ridícula preferência pelo FC do Porto, além de ele ter se equivocado sobre a qualidade do futebol de Rentería — indico fortemente a leitura deste vinho do Porto. Sem tônica, argh, por favor. (Piada misteriosa, só compreendida por quem leu o livro).

Obs.: De alguma maneira, esta resenha terá algum seguimento durante a semana no Impedimento. Motivo: a foto amarelada de Teófilo Cubillas no escritório de Jaime Ramos.

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Livros (falo de milhares deles) em Domínio Público

Amigos, neste site governamental há mais de dois mil documentos disponíveis gratuitamente, entre romances, contos, teses, etc. Então, quem tem pouca grana faz o seguinte: clica sobre o título do livro e manda para sua impressora… Ou para a do patrão, do pai, do(a) namorado(a) mais endinheirado(a)… ou lê no monitor mesmo. Todas as obras estão em “.pdf” e podem ser baixadas livremente. Mais: se você é autor e deseja disponibilizar textos para serem lidos livremente, o Domínio Público está preparado para recebê-los. Afinal, entre editar e não ser lido, talvez seja melhor mandar direto para o Domínio Público, não? Lá alguém pode baixar e você será lido. O que mais deseja um autor? Viver da venda de livros? Sim, claro, mas é uma quimera, certo? Talvez o melhor seja largar logo seu filho na vida.

Meu amigo Aurélio Dumitru me mandou um cuidadoso e-mail com duzentas e doze obras que destaca no site. No ano em que Machado de Assis completa cem anos de morte, pode-se tomar um porre – inteiramente gratuito – do Bruxo do Cosme Velho. Confiram abaixo a lista e visitem o site:

  • A Divina Comédia – Dante Alighieri
  • A Comédia dos Erros – William Shakespeare
  • Poemas de Fernando Pessoa – Fernando Pessoa
  • Dom Casmurro – Machado de Assis
  • Cancioneiro – Fernando Pessoa
  • Romeu e Julieta – William Shakespeare
  • A Cartomante – Machado de Assis
  • Mensagem – Fernando Pessoa
  • A Carteira – Machado de Assis
  • A Megera Domada – William Shakespeare
  • A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca – William Shakespeare
  • Sonho de Uma Noite de Verão – William Shakespeare
  • O Eu profundo e os outros Eus. – Fernando Pessoa
  • Dom Casmurro – Machado de Assis
  • Do Livro do Desassossego – Fernando Pessoa
  • Poesias Inéditas – Fernando Pessoa
  • Tudo Vai Bem Quando Acaba Bem – William Shakespeare
  • A Carta – Pero Vaz de Caminha
  • A Igreja do Diabo – Machado de Assis
  • Macbeth – William Shakespeare
  • Este mundo da injustiça globalizada – José Saramago
  • A Tempestade – William Shakespeare
  • O pastor amoroso – Fernando Pessoa
  • A Cidade e as Serras – José Maria Eça de Queirós
  • Livro do Desassossego – Fernando Pessoa
  • A Carta de Pero Vaz de Caminha – Pero Vaz de Caminha
  • O Guardador de Rebanhos – Fernando Pessoa
  • O Mercador de Veneza – William Shakespeare
  • A Esfinge sem Segredo – Oscar Wilde
  • Trabalhos de Amor Perdidos – William Shakespeare
  • Memórias Póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis
  • A Mão e a Luva – Machado de Assis
  • Arte Poética – Aristóteles
  • Conto de Inverno – William Shakespeare
  • Otelo, O Mouro de Veneza – William Shakespeare
  • Antônio e Cleópatra – William Shakespeare
  • Os Lusíadas – Luís Vaz de Camões
  • A Metamorfose – Franz Kafka
  • A Cartomante – Machado de Assis
  • Rei Lear – William Shakespeare
  • A Causa Secreta – Machado de Assis
  • Poemas Traduzidos – Fernando Pessoa
  • Muito Barulho Por Nada – William Shakespeare
  • Júlio César – William Shakespeare
  • Auto da Barca do Inferno – Gil Vicente
  • Poemas de Álvaro de Campos – Fernando Pessoa
  • Cancioneiro – Fernando Pessoa
  • Catálogo de Autores Brasileiros com a Obra em Domínio Público – Fundação Biblioteca Nacional
  • A Ela – Machado de Assis
  • O Banqueiro Anarquista – Fernando Pessoa
  • Dom Casmurro – Machado de Assis
  • A Dama das Camélias – Alexandre Dumas Filho
  • Poemas de Álvaro de Campos – Fernando Pessoa
  • Adão e Eva – Machado de Assis
  • A Moreninha – Joaquim Manuel de Macedo
  • A Chinela Turca – Machado de Assis
  • As Alegres Senhoras de Windsor – William Shakespeare
  • Poemas Selecionados – Florbela Espanca
  • As Vítimas-Algozes – Joaquim Manuel de Macedo
  • Iracema – José de Alencar
  • A Mão e a Luva – Machado de Assis
  • Ricardo III – William Shakespeare
  • O Alienista – Machado de Assis
  • Poemas Inconjuntos – Fernando Pessoa
  • A Volta ao Mundo em 80 Dias – Júlio Verne
  • A Carteira – Machado de Assis
  • Primeiro Fausto – Fernando Pessoa
  • Senhora – José de Alencar
  • A Escrava Isaura – Bernardo Guimarães
  • Memórias Póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis
  • A Mensageira das Violetas – Florbela Espanca
  • Sonetos – Luís Vaz de Camões
  • Eu e Outras Poesias – Augusto dos Anjos
  • Fausto – Johann Wolfgang von Goethe
  • Iracema – José de Alencar
  • Poemas de Ricardo Reis – Fernando Pessoa
  • Os Maias – José Maria Eça de Queirós
  • O Guarani – José de Alencar
  • A Mulher de Preto – Machado de Assis
  • A Desobediência Civil – Henry David Thoreau
  • A Alma Encantadora das Ruas – João do Rio
  • A Pianista – Machado de Assis
  • Poemas em Inglês – Fernando Pessoa
  • A Igreja do Diabo – Machado de Assis
  • A Herança – Machado de Assis
  • A chave – Machado de Assis
  • Eu – Augusto dos Anjos
  • As Primaveras – Casimiro de Abreu
  • A Desejada das Gentes – Machado de Assis
  • Poemas de Ricardo Reis – Fernando Pessoa
  • Quincas Borba – Machado de Assis
  • A Segunda Vida – Machado de Assis
  • Os Sertões – Euclides da Cunha
  • Poemas de Álvaro de Campos – Fernando Pessoa
  • O Alienista – Machado de Assis
  • Don Quixote. Vol. 1 – Miguel de Cervantes Saavedra
  • Medida Por Medida – William Shakespeare
  • Os Dois Cavalheiros de Verona – William Shakespeare
  • A Alma do Lázaro – José de Alencar
  • A Vida Eterna – Machado de Assis
  • A Causa Secreta – Machado de Assis
  • 14 de Julho na Roça – Raul Pompéia
  • Divina Comedia – Dante Alighieri
  • O Crime do Padre Amaro – José Maria Eça de Queirós
  • Coriolano – William Shakespeare
  • Astúcias de Marido – Machado de Assis
  • Senhora – José de Alencar
  • Auto da Barca do Inferno – Gil Vicente
  • Noite na Taverna – Manuel Antônio Álvares de Azevedo
  • Memórias Póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis
  • A “Não-me-toques”! – Artur Azevedo
  • Os Maias – José Maria Eça de Queirós
  • Obras Seletas – Rui Barbosa
  • A Mão e a Luva – Machado de Assis
  • Amor de Perdição – Camilo Castelo Branco
  • Aurora sem Dia – Machado de Assis
  • Édipo-Rei – Sófocles
  • O Abolicionismo – Joaquim Nabuco
  • Pai Contra Mãe – Machado de Assis
  • O Cortiço – Aluísio de Azevedo
  • Tito Andrônico – William Shakespeare
  • Adão e Eva – Machado de Assis
  • Os Sertões – Euclides da Cunha
  • Esaú e Jacó – Machado de Assis
  • Don Quixote – Miguel de Cervantes
  • Camões – Joaquim Nabuco
  • Antes que Cases – Machado de Assis
  • A melhor das noivas – Machado de Assis
  • Livro de Mágoas – Florbela Espanca
  • O Cortiço – Aluísio de Azevedo
  • A Relíquia – José Maria Eça de Queirós
  • Helena – Machado de Assis
  • Contos – José Maria Eça de Queirós
  • A Sereníssima República – Machado de Assis
  • Iliada – Homero
  • Amor de Perdição – Camilo Castelo Branco
  • A Brasileira de Prazins – Camilo Castelo Branco
  • Os Lusíadas – Luís Vaz de Camões
  • Sonetos e Outros Poemas – Manuel Maria de Barbosa du Bocage
  • Ficções do interlúdio: para além do outro oceano de Coelho Pacheco. – Fernando Pessoa
  • Anedota Pecuniária – Machado de Assis
  • A Carne – Júlio Ribeiro
  • O Primo Basílio – José Maria Eça de Queirós
  • Don Quijote – Miguel de Cervantes
  • A Volta ao Mundo em Oitenta Dias – Júlio Verne
  • A Semana – Machado de Assis
  • A viúva Sobral – Machado de Assis
  • A Princesa de Babilônia – Voltaire
  • O Navio Negreiro – Antônio Frederico de Castro Alves
  • Catálogo de Publicações da Biblioteca Nacional – Fundação Biblioteca Nacional
  • Papéis Avulsos – Machado de Assis
  • Eterna Mágoa – Augusto dos Anjos
  • Cartas D’Amor – José Maria Eça de Queirós
  • O Crime do Padre Amaro – José Maria Eça de Queirós
  • Anedota do Cabriolet – Machado de Assis
  • Canção do Exílio – Antônio Gonçalves Dias
  • A Desejada das Gentes – Machado de Assis
  • A Dama das Camélias – Alexandre Dumas Filho
  • Don Quixote. Vol. 2 – Miguel de Cervantes Saavedra
  • Almas Agradecidas – Machado de Assis
  • Cartas D’Amor – O Efêmero Feminino – José Maria Eça de Queirós
  • Contos Fluminenses – Machado de Assis
  • Odisséia – Homero
  • Quincas Borba – Machado de Assis
  • A Mulher de Preto – Machado de Assis
  • Balas de Estalo – Machado de Assis
  • A Senhora do Galvão – Machado de Assis
  • O Primo Basílio – José Maria Eça de Queirós
  • A Inglezinha Barcelos – Machado de Assis
  • Capítulos de História Colonial (1500-1800) – João Capistrano de Abreu
  • CHARNECA EM FLOR – Florbela Espanca
  • Cinco Minutos – José de Alencar
  • Memórias de um Sargento de Milícias – Manuel Antônio de Almeida
  • Lucíola – José de Alencar
  • A Parasita Azul – Machado de Assis
  • A Viuvinha – José de Alencar
  • Utopia – Thomas Morus
  • Missa do Galo – Machado de Assis
  • Espumas Flutuantes – Antônio Frederico de Castro Alves
  • História da Literatura Brasileira: Fatores da Literatura Brasileira – Sílvio Romero
  • Hamlet – William Shakespeare
  • A Ama-Seca – Artur Azevedo
  • O Espelho – Machado de Assis
  • Helena – Machado de Assis
  • As Academias de Sião – Machado de Assis
  • A Carne – Júlio Ribeiro
  • A Ilustre Casa de Ramires – José Maria Eça de Queirós
  • Como e Por Que Sou Romancista – José de Alencar
  • Antes da Missa – Machado de Assis
  • A Alma Encantadora das Ruas – João do Rio
  • A Carta – Pero Vaz de Caminha
  • LIVRO DE SÓROR SAUDADE – Florbela Espanca
  • A mulher Pálida – Machado de Assis
  • Americanas – Machado de Assis
  • Cândido – Voltaire
  • Viagens de Gulliver – Jonathan Swift
  • El Arte de la Guerra – Sun Tzu
  • Conto de Escola – Machado de Assis
  • Redondilhas – Luís Vaz de Camões
  • Iluminuras – Arthur Rimbaud
  • Schopenhauer – Thomas Mann
  • Carolina – Casimiro de Abreu
  • A esfinge sem segredo – Oscar Wilde
  • Carta de Pero Vaz de Caminha. – Pero Vaz de Caminha
  • Memorial de Aires – Machado de Assis
  • Triste Fim de Policarpo Quaresma – Afonso Henriques de Lima Barreto
  • A última receita – Machado de Assis
  • 7 Canções – Salomão Rovedo
  • Antologia – Antero de Quental
  • O Alienista – Machado de Assis
  • Outras Poesias – Augusto dos Anjos
  • Alma Inquieta – Olavo Bilac
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    O Violista (Final – Allegro Maestoso)

    Romeu foi cedo para o concerto em que interpretaria a Sinfonia Concertante para Violino, Viola e Orquestra, K. 364, de Wolfgang Amadeus Mozart. Chegando ao teatro, arrumou-se, afinou atentamente o instrumento e, como não tinha nada para fazer, foi ver quem estava no teatro antes de praticar mais um pouco. Logo que entrou na área administrativa, viu o maestro Tardue conversando com as secretárias. Procurou evitá-lo, não precisaria de uma discussão naquele momento, mas ele lhe fez um gesto amistoso convidando Romeu a aproximar-se. O maestro tratava de alguma questão administrativa e não dirigiu-lhe a palavra até terminar seu assunto.

    – Já paramentado, Romeu? Que horas são? – perguntou finalmente.

    Romeu riu e respondeu que o Dia do Violista era uma instituição rara e que pretendia aproveitá-la ao máximo. Tardue levou-o cordialmente até sua sala e disse que sua evolução nos ensaios fora surpreendente.

    – Entendo perfeitamente o fato de alguém motivar-se agredindo quem lhe pareça um obstáculo.

    Romeu não respondeu e Marc seguiu:

    – Sim, eu acredito que você fantasiou uma hostilidade que nunca ocorreu entre nós. Eu, ao menos, não tive a menor intenção. Por que eu teria convidado justo você para substituir o húngaro?
    – Que húngaro, maestro?
    – Ora que húngaro?! Aquele que habitualmente interpreta a Sinfonia Concertante com Elena e que passou a faltar compromissos por motivo de saúde.

    Romeu entendeu que Tardue desejava humilhá-lo citando um fato que antes evitara: o fato de que ele estava no papel de um mero substituto de última hora. Intuitivamente, evitou desconcentrar-se e respondeu

    – puxa, maestro, não sabia. Que sorte a minha, não? Pois fazer minha estréia como solista em nossa orquestra com alguém do porte de Elena Sofonova é como entrar em campo ao lado de Zidane ou…
    – Zidane e Pelé, certamente. E fui eu quem defendeu a introdução de um membro da orquestra ao lado de Elena. O Conselho não desejava, mas, por insistência minha, consegui. Será um belo concerto.

    Romeu assentiu de forma entusiasmada e refletiu que aquele seria o momento exato para despedir-se do maestro; afinal, não seria nada bom não exercitar sua ironia a apenas duas horas do concerto. Tinha que manter-se mobilizado, concentrado. De voltar ao corredor, viu que havia luz num dos camarotes e bateu na porta. Como imaginava, após alguns segundos, a luz tornou-se ainda mais intensa com a presença de Elena à sua frente, sorridente e convidando-o a entrar. Falando num inglês menos estropiado que o de Romeu, ela lhe falou que trouxeram-na muito cedo do hotel para que ela se preparasse, mas que aquilo não era necessário a uma moça despojada e despreocupada como ela. Estava de calças jeans e camisa, ambas muito justas, que demonstravam ainda mais claramente sua beleza.

    Tranqüilo, Romeu perguntou-lhe quantas vezes ela tinha interpretado a Sinfonia Concertante antes e ela respondeu-lhe que apenas duas ou três vezes além da gravação que fora lançada pela ECM.

    – Ah, sim. E com quem foi a gravação?
    – Com Kim Kashkashian. O convite partiu dela, claro. As you know, ela é filha de armênios e fomos parte do mesmo país até alguns anos. Acho que ainda é natural uma armênia procurar uma lituana para tocar, mesmo uma inexpressiva como eu – disse Elena.
    – Vocês ainda têm muito contato entre si? Isto é, russos e lituanos e armênios e húngaros… São colaboradores habituais ou tudo ficou no passado?
    – Não, há uma certa inimizade, até. Ou toco em meu país com grupos de lá ou estou no ocidente. Ultimamente, mais no ocidente, as you can see.
    – Pensei que costumavas tocar esta obra com um húngaro… – tentou Romeu.
    – Ainda não o conheço! – respondeu Elena com seu melhor sorriso. – Mas se der um bom marido, estou interessada!

    Desta vez, Romeu e Elena Sofonova finalmente sorriam com a mesma intensidade. Depois, ela lhe perguntou sobre o Brasil, achando incrível que alguém abandonasse um país de natureza tão pródiga e que produzia tão bons músicos, como ela comprovara em muitos CDs e nos últimos dias. Romeu estava encantado com a simpatia da moça que agora lhe oferecia um doce que ganhara e que não deveria comer para manter a fama de que as russas, ou quase, eram sempre loiras, altas e magras.

    Ele se despediu, dirigindo-se depois a seu armário. Um colega avisou que hoje ele tinha direito a um camarote ao lado da deusa, mas Romeu rejeitou, preferindo que o lugar de sempre entre os músicos. Ensaiou muitas vezes a belíssima entrada que faria em uníssono com Elena. Lembrou do filme Amadeus, em que aquele início fora utilizado; Romeu sabia que o público ficaria encantado desde os primeiros segundos daquela música perfeita.

    Repetiu-a muitas vezes até ver Elena, já de vestido longo, juntar-se a ele, refazendo os primeiros compassos agora em dueto. Romeu notou que, pouco a pouco, os dois alteravam a dinâmica de tal forma que sua entrada, após a longa introdução orquestral, pareceria um bem humorado mergulho na massa sonora da orquestra. Não pensava absolutamente em mais nada.

    O concerto foi um sucesso. Elena, Romeu e a Orquestra Nacional do Porto foram ovacionados, com os solistas e Tardue retornando duas vezes ao palco. No segundo retorno, Tardue fez questão de entrar com o braço sobre os ombros de Romeu, demonstrando ao público seu apoio a um instrumentista da orquestra, a alguém que fazia seu dia a dia ali e que não era um solista internacional.

    Foram os três jantar juntos, acompanhados de alguns amigos. Era a despedida de Elena, que viajaria no dia seguinte para Paris. Foi um jantar feliz e cansado; Romeu sentou-se ao lado da lituana e recebia os cumprimentos junto com ela. Não estava preocupado nem ressentido; sabia que fizera boa figura. À saída, quando se dirigiam para a porta do restaurante, Marc Tardue fez questão de pôr-lhe o braço novamente sobre os ombros, perguntando como tinham sido seus trinta minutos de glória. Romeu não respondeu, apenas desvencilhou-se do maestro para despedir-se do restante do grupo. Trocou um longo abraço com Elena.

    Chegando em casa, o violista tratou de arrumar a casa antes de dormir. Recolocou a cadeira de frente para a televisão, o cachecol do Boavista voltou a ornamentar a TV, o rádio temático retornou à mesa e só então foi preparar a cama para dormir, pensando que sua sala era melhor que o Bessa Século XXI, o estádio do desastrado Boavista daquele ano.

    -=-=-=-=-=-

    O primeiro movimento da Sinfonia Concertante está aqui, a entrada dos solistas ocorre lá pelos dois minutos, após a longa introdução:

    Imagem de Amostra do You Tube

    E termina aqui:

    Imagem de Amostra do You Tube

    Observação final: Marc Tardue foi o regente da Orquestra Nacional do Porto por oito anos até o final do ano passado. Não o conheço e nem sei nada a respeito dele. Os outros nomes e personagens foram inventados, exceto o de Elena Sofonova, que foi a atriz principal de Olhos Negros, filme de Nikita Mikhálkov.

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    O Violista (IV – Presto)

    Romeu retornou à casa e procurou imediatamente o telefone para pedir uma pizza. Estava feliz e falou em voz muito alta que queria o mesmo de ontem. A moça disse-lhe o preço e ouviu Romeu perguntar:

    – Você sabe qual é a diferença entre Deus e um maestro?
    – Não, senhor – disse a atendente brasileira acostumada às piadas de seu consumidor.
    – É que Deus sabe que não é maestro!

    Ela, excepcionalmente, deu uma autêntica risada. Romeu replicou:

    – Depois de meses, consegui fazer-te rir!
    – Sim, o Sr. é muito engraçado e hoje o dia está calmo.
    – Poucas encomendas? – perguntou Romeu que nunca tinha falado com a moça sobre quaisquer outros assuntos.
    – Sim, poucas. Mais tarde começa a correria. O Sr. é músico?
    – Sim, toco na Sinfônica do Porto.
    – Que interessante! E que instrumento o Sr. toca?
    – Viola, sou violista.
    – Não sabia que havia violas numa orquestra. Violas são como violões, né?
    – Não, viola é um violino maior, de som mais grave.
    – Ah, sei. Vocês colocam o instrumento no chão e ficam de pernas ab…
    – De pernas abertas? Não, aqueles são os violoncelos… – Romeu tentou resistir… Mas não conseguiu. – Para tocá-lo é necessário ficar como as mulheres gostam de ser tocadas.

    Ela não respondeu nem riu e Romeu tentou inicialmente preencher o silêncio com uma risada, depois com um pedido de desculpas. Não houve reação, à princípio, depois – com um tom entre a decepção e a irritação, talvez ambas – ela lhe disse apenas que tinha que trabalhar. Ele insistiu desculpando-se novamente até que ela respondeu com voz tranqüila:

    – Não esperava que um brasileiro me tratasse como alguns portugas daqui fazem. Não sou uma prostituta, sou uma brasileira que tenta ganhar a vida neste país. Sou igual ao Sr.
    – Desculpe, não foi minha intenção ofendê-la. Por favor, acredite.

    Desligaram e ele explodiu:

    – Sou um imbecil! Um idiota!

    Imaginando a idade e a aparência da moça, Romeu começou a arrumar a casa, retirou o cachecol do Boavista da parede e teve vontade de jogar o rádio alvinegro no lixo. Não o fez, mas tirou ambos de sua vista. Sentou-se na cadeira de sempre, postada no meio da sala, com a caixa da viola sobre os joelhos, achando-se desconfortável. Girou a cadeira até ficar de costas para a televisão e, com um leve sorriso, atacou o Presto, terceiro movimento da Sinfonia Concertante. Sentia-se reconciliado com o instrumento. Tocou de tal forma que agradou até este narrador. Enquanto repetia alguns trechos mais rápidos e difíceis, pensava no conflito com o maestro Tardue. Vários de seus colegas o cumprimentaram ao final do ensaio, parabenizando-o pela coragem de enfrentar o todo-poderoso.

    – Deixaste-o com a pata na poça – disse um.
    – Ele parvou e te sentiste no dever de fazer-lhe ver a verdade? – riu outro.

    Porém, à saída, o maestro olhou-o bem nos olhos e Romeu teve a certeza de que, como as guerras, aquela discussão não finalizaria enquanto o dominado não aceitasse a superioridade do dominador.

    Era heróico, talvez, mas não era inteligente um violista desafiar o maestro publicamente, assim como um recruta não deve fazer sugestões ao General em frente à soldadesca. Ele que esperasse. Mesmo refletindo dessa maneira, Romeu sorria, feliz com a vitória parcial. Será mesmo que Tardue se vingaria dele? E quando? Não acreditava numa demissão; afinal, não havia descumprimento nem extraordinária insubmissão. Vamos ver, pensava ele, ainda sorrindo.

    O problema resume-se nisto, refletia Romeu: quanto menos tempo temos, menos conteúdo comunicamos ao ouvinte. Acelera-se a música quando ela tenta expressar a alegria, ou o contraste com algum momento anterior; também apressamos o andamento se buscamos o virtuosismo ou o aplauso. Porém, alguns regentes fazem adágios precipitados por pura incapacidade de expressar conteúdo. Quando pressentem que este será inevitavelmente pobre e entediante, aumentam a velocidade da execução da música para que esta cause alguma impressão. Substitui-se a beleza pela habilidade. A lituana era mesmo muito boa, avaliava Romeu, pois sublinhava nuances que ele nunca percebera no movimento lento da Concertante. E mandava em todos, como muitas mulheres conseguem fazer. Afinal, a cada frase que seu violino pronunciava, ela sugeria ou impunha um sotaque à resposta do violista. A luta, na verdade, era entre ela e Tardue, tinha pouco a ver com o novo herói da orquestra. De modo submisso, ele, e depois a orquestra, foram induzidos por Elena que, consciente de que introduziria o tema do Andante, tinha o poder de arrastar todos consigo, não obstante a resistência do regente. Assim, garantiria uma interpretação cheia de intenções e conteúdo; aquilo não era para qualquer um.

    A relação entre conteúdo e tempo é mesmo curiosa, às vezes paradoxal, pensava Romeu, e tem de ser levada em conta. Faz parte de nossa época este desrespeito ao conteúdo; a TV mostra diariamente as notícias mais complexas de forma condensada, o que nos torna todos críticos e “sumidades” sobre qualquer assunto, ao mesmo tempo que nos priva dos meios para exercer críticas consistentes. Só agora ele dava-se conta que comprara uma briga que, na verdade, era de Elena Sofonova. Tardue ignora ser impossível fazer aquele Mozart sob o formato tacanho que lhe agrada e Elena Sofonova combatia a superficialidade do maestro.

    Porém, no movimento que Romeu ensaiava, a velocidade era fundamental e ele acelerava seu solo ao ritmo de seus pensamentos. Pensava que era um violista rápido e nas piadas que inventaria, ao mesmo tempo que orgulhava-se de saber que estaria acompanhado, no dia seguinte, por uma instrumentista de primeira linha.

    Voltou ao telefone a fim de conferir se seu sapato já tinha recebido o salto que o faria acompanhar Elena com mais quatro centímetros de altura. O homem o tranqüilizou. Estava feliz, refletindo que a experiência já valera a pena e que o público aficionado da cidade do Porto reconheceria nele um instrumentista seguro e eficiente.

    Não pensou no Boavista nem enquanto devorava a pizza. Esqueceu todos os programas esportivos que normalmente assistia para ficar apenas ensaiando. Tinha a impressão de que o tempo retrocedera e que podia tornar-se aquilo que ambicionara na juventude. Imaginava a formação de um grupo com outros músicos da orquestra para interpretar Hindemith ou, quem sabe, talvez fosse mais fácil criar um quarteto de cordas?

    Abaixo, o Presto com Maxim Vengerov (Violino) e Yuri Bashmet (Viola):

    Imagem de Amostra do You Tube

    Amanhã, às 12h, o final.

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    O Violista (III – Andante)

    Véspera do concerto, dia do segundo ensaio. Romeu caminhava lentamente para o teatro obedecendo a ordem do maestro Marc Tardue. A secretária da orquestra havia-lhe deixado um recado para que chegasse meia hora antes. Romeu imaginava o conteúdo da conversa e preparava-se, refletindo que deveria argumentar com segurança, mas o que lhe passava pela cabeça era um tumulto de frases soltas, de conteúdo bastante agressivo.

    Entrou e a jovial secretária avisou que ele já era esperado. Tardue estava ao telefone. Sem parar de falar, levantou-se para cumprimentar Romeu e voltou a sentar-se atrás de sua mesa. O assunto era algum problema administrativo que não interessou a Romeu. Quando desligou, ofereceu um café ao violista e reclamou que as tarefas administrativas inerentes ao trabalho de maestro tomavam-lhe muito tempo.

    – É difícil ser artista e administrador ao mesmo tempo – replicou Romeu.

    Não fora um começo muito promissor e ele tentou emendar imediatamente.

    – Quero dizer que deve ser irritante ter de negociar e eventualmente fazer concessões. O ideal para um artista seria a recusa a quaisquer concessões, mas creio que um regente morreria se não as fizesse.

    Tardue, acostumado a afagos, estava mais surpreso do que ofendido com o início da conversa e resolveu ignorá-la, indo na direção do assunto principal.

    – Sr. Martins, convidei-o à minha sala com a finalidade de saber o que causou aquele desempenho inteiramente insatisfatório no ensaio com Elena Sofonova. O Sr. me deixou muito preocupado.

    Romeu tinha preparado uma justificativa de ordem pessoal para sua atuação – um mau dia, problemas em casa, quem sabe? -, mas ao ver o ar autenticamente interrogativo e nada hostil de Tardue, optou por outro caminho. Explicou-lhe que as facilidades de um violista de orquestra acostumaram-lhe mal e que chegara muito relaxado ao ensaio.

    – Determinado grau de tensão e mobilização é necessário, maestro – completou.

    Tardue pegou uma caneta e pareceu hesitar. Fez uma pequena anotação na folha sobre a mesa e foi ainda mais direto.

    – O que desejo saber é se precisaremos adequar os andamentos às dificuldades dos solistas ou não. Esta é a primeira obra de Mozart que está fora da concepção galante, é a primeira vez que aparece uma arquitetura mais monumental, ao mesmo tempo que íntima. Não é música superficial e é muito dialogada; sendo que a viola muitas vezes é instada a repetir imediatamente o que foi tocado pelo violino e, se houver erros nas repetições, será um fiasco, toda a platéia notará.

    – Não se preocupe maestro, o que aconteceu no ensaio… – tentou Romeu.
    – O ideal seria um primeiro movimento afirmativo, um movimento central dramático e um presto bem rápido e virtuoso, superficial até.
    – Maestro, eu e Elena faremos a música que …
    – Sr. Romeu, desculpe interrompê-lo, mas, quando rejo uma orquestra, eu faço a música e vocês tocam as notas. Eu sou o fator de inspiração e quero saber se meus recursos estão à altura daquilo que irei exigir.

    O sangue subiu ao rosto de Romeu. Pensou que deveria responder apenas que ele era um recurso com o qual Tardue poderia contar para qualquer obra e interpretação, que estava disposto a colaborar e obedecer com o melhor de si. Foi o que fez. E despediu-se.

    Faltavam dez minutos para o ensaio e o violista foi ao banheiro na tentativa de acalmar-se. Passou água fria no rosto e após fechou-se numa privada. Sentado e de olhos fechados, tentou esquecer a conversa com Tardue e retornar ao espírito de seu ensaio em casa. Lembrou do Boavista e dos gols de Nuno Gomes, mas conseguiu rejeitar as más lembranças. Na hora exata, entrou no palco dirigindo-se diretamente a Elena, à qual cumprimentou efusivamente, sem olhar para seus pés e ignorando a diferença de altura. A moça era mesmo bonita. Tardue, depois de perguntar se todos estavam presentes e preparados, escolheu ensaiar o segundo movimento da Sinfonia Concertante. Elena, que parecia ser incapaz de parar de sorrir, aproximou sua cabeça loira da de Romeu e cochichou-lhe em inglês, pedindo que ele ouvisse atentamente seu violino e seguisse dialogando com ela.

    – Vou tocar lentamente, vamos sem pressa, como fazem os casais… – foi o que falou a Romeu de forma bem humorada e não isenta de cinismo.

    Ele gostou do que ouviu e Tardue fez a orquestra tocar a breve introdução ao Andante. Elena iniciou seu solo muito lentamente e Romeu respondeu-lhe da mesma forma com o som mais grave da viola. A música seguiu seu colóquio verdadeiramente apaixonado e, enquanto sentia que a música estava passando de seu cérebro a seus dedos, Romeu reviu em imaginação vagas imagens do filme Afogando em Números, que utiliza o tema. Ele sorria, mas não era páreo para a luminosa violinista. Os dois sentiam-se refletindo perfeitamente a música de Mozart um no outro quando Tardue interrompeu tudo. Nervoso, reclamou dizendo que os solistas estavam arrastando-se e que aquilo era intolerável. Elena permaneceu com sua cara feliz, agora olhando para a platéia vazia e, quando Tardue acabou seu discurso, voltou-se para Romeu, não sem antes balançar ligeira e negativamente a cabeça. Naquele gesto havia um acordo tácito: a de repetir tudo de forma exatamente igual. Ela estava satisfeita. Romeu também.

    A segunda tentativa foi interrompida pelo maestro já no primeiro solo de Elena. Ele mandou-a acelerar. Na terceira vez, Elena fez exatamente o mesmo e Tardue fê-la parar novamente. Durante a explicação, Romeu, com surpreendente coragem se considerarmos o temor que a orquestra tinha de seu regente titular, interrompeu-o argumentando, um tanto romanticamente, que Sofonova estava determinando sua expressão à música e que esta estava de acordo com a concepção que ele, Romeu, também tinha. Até Elena ficou séria, temendo que a resposta do regente ao violista tivesse que ser medida por sismógrafo.

    Tardue não perturbou-se, apenas fez piada citando um estudo que mostrava serem os músicos os profissionais mais insatisfeitos em sua profissão, seguidos dos médicos. Completou dizendo que muitos médicos tinham por hobby tocarem algum instrumento e que vários na orquestra davam aulas particulares para doutores. “O mundo é paradoxal e as relações se alteram de forma meio carnavalesca… às vezes”, disse. Depois ergueu os braços, perguntou maldosamente se os solistas estavam prontos para sua dar expressão à obra, e mandou a orquestra reiniciar o Andante. Elena acelerou um pouco, bem pouco, no que foi imitada até o final por Romeu, encantado com seus novos poderes.

    Depois atacaram o majestoso primeiro movimento. Tardue deu diversas instruções, mas não à dupla solista. Quando considerou boa a execução, falou a todos em voz alta que, afinal, estava aliviado pois

    – Não haverá o temido fiasco anunciado no ensaio de anteontem.

    Seguiu depois para o terceiro movimento, em que fez novas solicitações à dupla solista, mas cada uma delas possuía o civilizado tom de sugestão.


    Ah, querem ouvir/ver o andante? Claro!

    Continua amanhã às 12h.

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