Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXII – Oblómov, de Ivan Gontcharóv

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXII – Oblómov, de Ivan Gontcharóv

Oblómov

Ivan Gontcharóv viveu uma longa vida para alguém do século XIX. Nasceu em 1812 e morreu em 1891, aos 79 anos. Passou longos anos como aposentado — desde 1867 –, dizem que sempre reclamando da vida. Publicou apenas quatro livros, sendo três romances. Ele considerava o último, O Precipício, o melhor. Peço desculpas, Ivan, mas é difícil acreditar que seja melhor que este célebre Oblómov. Valeu muito a pena enfrentar suas mais de setecentas páginas.

(Aqui, os outros livros desta série.)

Oblómov é a história de um indolente e apático latifundiário russo. Ele passa seus dias admirando o teto, embora seus muitos e graves problemas, principalmente os relativos a sua fazenda, que cada vez mais gera menos benefícios e onde é claramente roubado por seu administrador e servos. Mas a mera ideia de deixar sua poltrona ou cama causa-lhe desconforto. Então, ele deixa a inércia guiar sua vida.

Iliá Illich Oblómov é o personagem principal de um épico, trata-se de um Ulisses de roupão, desprovido de vontade. Não age, optando por ficar imóvel, na contracorrente dos eventos. Quando deita no sofá, sente-se protegido de todo estresse, da grosseria e da confusão que rege as ações humanas. Porém, sua atividade mental é grande. Não nasceu para ser um gladiador na arena, mas um pacífico espectador. No fundo era uma alma boa, pura — como tantas vezes sublinha Gontcharóv — e preguiçosa.

Na primeira parte do livro, vemos o personagem principal receber amigos em seu quarto. Os rápidos e vivos diálogos nos enganam: parece que estamos diante de um romance cômico, tal é a galeria de visitantes. A prosa de Gontcharóv é leve. Seu criado Zakhar — também preguiçoso, muito atrapalhado e burro — é uma criação hilária, digna da alta comédia. Essas esplêndidas 200 páginas iniciais são finalizadas com uma visita do amigo de infância Stolz e com o sonho de Oblómov. O sonho é uma longa e famosa passagem, escrita dez anos antes da publicação do romance, que ocorreu em 1859.

Zakhar e Oblómov
Zakhar e Oblómov: já já alguma coisa vai cair no chão…

Neste capítulo IX, o do sonho, o autor fala poética e debochadamente sobre como se formou a visão de mundo de Oblómov e seus ideais de vida. Podemos resumi-lo assim: Iliá Iliich adormeceu e sua infância distante vem até ele. Ele está de volta à propriedade dos pais, na aldeia de Oblomovka. A aldeia era mais ou menos isolada, a cidade mais próxima ficava a cerca de vinte quilômetros de distância e os Oblómov não faziam muita questão de facilitar o acesso à cidade, pois eram avessos a mudar sua vida e ainda mais ao progresso. Durante séculos viviam ali, presos a uma ordem patriarcal, cheios de histórias malucas e crendices, levando a sério cada “sinal”. A vida fluía com tranquilidade e tudo era deixado para depois. Os camponeses viviam despreocupados, não se esforçando por nada, não conheciam ou queriam outra vida.

O dono da propriedade, Oblómov pai, era igualmente preguiçoso e apático. Todos se espantavam pelo fato de um telhado cair, mas na véspera tinham se admirado por ele se aguentar suspenso por tanto tempo sem manutenção. O pai nunca pensava em conferir o cereal produzido e vendido, nem em cobrar explicações por alguma negligência na fazenda, mas, se demorassem a trazer seu lenço de nariz, fazia uma gritaria. Todos os interesses da família eram as refeições e um bom sono nas pausas. É arrebatadora a cena em que as mulheres fazem tricô e riem, enquanto os homens olham pela janela. Neste interminável far niente, o objetivo era não se incomodar. Os pais não atribuíam grande importância à educação e Oblómov era relutante em ir à escola. Seu amigo mais próximo, o citado Andrei Stoltz, filho do professor da aldeia, ajudava-o a fazer suas lições de casa.

Oblómov no elogiado filme homônimo de Nikita Mikhalkov
Oblómov no elogiado filme homônimo de Nikita Mikhalkov

O “Sonho de Oblomov ” parece uma descrição irônica do Paraíso na Terra, do País da Cocanha. O autor ridiculariza implacavelmente o modo de vida satisfeito e inativo da maioria dos proprietários desta época. O texto caracteriza o estilo de vida do adulto Iliá Ilitch Oblómov, apenas o local muda.

Como dissemos antes, o sonho foi escrito e publicado numa revista em 1849, dez anos antes de surgir Oblómov. Ele foi a gênese do romance. Só que Gontcharóv ficou muito chateado de os leitores tirarem conclusões de todo trabalho a partir apenas de sua extraordinária primeira parte. Gontcharóv chegou a alertar Tolstói: “Não leia a primeira parte de Oblomóv, leia o resto. Isso de 1849 não é bom”. Impossível concordar, Ivan. A primeira parte é espetacular, viva, engraçada, tendo como destaques não apenas o sonho como a relação do personagem principal com o mundo e com seu criado Zakhar, espécie de reflexo do patrão.

Pieter Bruegel, o Velho – O País da Cocanha
Pieter Bruegel, o Velho – O País da Cocanha (1567)

Nesta primeira parte, o livro pode ser considerado uma sátira à nobreza russa, cuja função econômica e social era cada vez mais discutida na Rússia, em meados do século XIX. O romance tornou-se imediatamente popular quando foi lançado e alguns de seus personagens e ações tiveram influência sobre a cultura e a linguagem russas. “Oblomovismo” tornou-se uma palavra usada para descrever alguém que exibe os traços de personalidade de preguiça ou inércia semelhantes aos do personagem principal do romance.

Ao final da primeira parte, entra em cena Stolz. Ele, homem prático e de resultados, procura repetidamente mudar seu amigo Iliá. O próprio admite seus problemas e tenta superar sua apatia. Faz reavaliações, mas o processo é sempre complicado, cheio de objeções. Em suas poucas horas vagas, Stolz ajuda Oblómov a consertar seus graves problemas financeiros, enquanto Tarantiev — outro amigo de Oblomovka — busca roubá-lo.

Graças ao amigo Stoltz, Oblómov conhece Olga, uma jovem por quem se apaixona. Então, vive um despertar. Ela exige que ele resolva os assuntos de sua propriedade, que ele esteja atualizado com o que está acontecendo no mundo, só que isso é demais. Não, não vou contar a boa história do amor entre ambos, apenas alguns detalhes “externos”.

Stolz contou para Olga da inteligência e do potencial do amigo. Eles se conheceram e as apaixonaram. Olga, muito mais madura, começa a planejar sua vida com Oblómov. É ela quem conduz o casal. Mas Oblómov, cheio de indecisões, oferece resistência passiva quando se trata de dar passos significativos na direção do casamento. Olga decepciona-se ao perceber que não é motivo suficiente para arrancá-lo da letargia e que Oblómov se contenta com um amor platônico. Em cena altamente emocional e tensa, daquelas em que a gente come o livro para saber como o autor vai fazer para que Oblómov cumpra seu destino, Gontcharóv… Não, nada de spoilers.

Na imagem de Oblómov também há características autobiográficas. O autor admitia sua indolência pessoal. Amava a paz e o silêncio. Durante uma longa viagem de navio, passou a maior parte do tempo na cabine, deitado no sofá. Seu apelido era “Príncipe”.

Do filme de Mikhalkov
Do filme de Mikhalkov

O aparecimento do romance coincidiu com o tempo da crise mais aguda da servidão. A imagem de um senhor de terras apático e incompetente, que cresceu e foi criado em uma serena propriedade que vivia do trabalho pouco produtivo de servos, era muito relevante para seus contemporâneos. Dobrolyubov, em seu artigo “O que é o oblomovismo?”, agradeceu ao romance por dar uma visão clara do problema. A pessoa de Iliá Iliich Oblómov mostraria como o calmo ambiente da aristocracia russa e a falta de uma educação desfiguram a natureza do homem, engendrando um inútil.

O caminho de Oblómov é típico dos nobres russos do campo nas décadas de 1840 e 1870. Eles iam para a capital e tornavam-se funcionários públicos. Queixavam-se, faziam fofocas, escreviam petições, estabeleciam relações com os chefes. Oblómov cumpriu a mesma trajetória, mas demitiu-se. Não quis escalar na carreira, preferindo fazer planos em seu sofá, sem aspirações.

Gontcharov foi depreciado por várias gerações de escritores russos: Dostoiévski descreveu-o como “um funcionariozeco com olhos de peixe cozido a quem Deus (...) concedeu um talento brilhante” (Legenda copiada o Publico.pt)
Gontcharov foi depreciado por várias gerações de escritores russos: Dostoiévski descreveu-o como “um funcionariozeco com olhos de peixe cozido a quem Deus (…) concedeu um talento brilhante” (Legenda copiada do Publico.pt)

Gontcharóv escreveu sobre seu herói: “Eu tinha um ideal artístico inicial, era uma natureza gentil e honesta, que pensava em lutar o tempo todo, buscando a verdade, enganando-se e caindo em apatia e impotência; depois criei uma variação disso”. Oblómov faz e refaz planos, planeja apenas, agita-se sobre o sofá e adia mesmo a simples tarefa de escrever uma carta. É o rei da procrastinação. Sua alma é a de um poeta, pronto a fruir da beleza e se apaixonar. A percepção que tem da música o demonstra. Cada reunião com o amigo de infância Stolz tira-o da pasmaceira, mas não por muito tempo: a determinação de fazer algo dura sempre um curto período de tempo. No entanto, Stolz tem sua vida, não tem tempo suficiente para colocar Oblómov em outro caminho. Mas em qualquer sociedade há pessoas como Tarantiev, sempre prontas para roubar um trouxa desinteressado por seus negócios. São eles, Stolz e Tarantiev, que determinam os dois caminhos possíveis. Oblómov, contudo…

Publicado em 1859, o romance foi um evento público. Apareceu numa época de excitação social, alguns anos antes da reforma camponesa, e foi visto como um chamado para combater a estagnação da Rússia. Imediatamente após a publicação, o livro foi assunto de discussões em críticas de jornais e entre escritores. Muitos viram na imagem de Oblómov a compreensão filosófica do caráter nacional russo, bem como uma indicação da possibilidade de um caminho moral diferente, que se opusesse ao agitado “progresso” que consome a existência… O fato é que Gontcharóv fez uma descoberta artística. A publicação de Oblómov e seu enorme sucesso deram-lhe a fama de um dos mais destacados escritores russos de sua época.

O notável e paradoxal era que o fato de que autor trabalhou como censor do czarismo… Era necessário ganhar dinheiro de alguma forma e o funcionário público Gontcharóv foi discreto. Jamais tomou decisões muito conservadoras, apesar de odiar o “niilismo”, uma “doutrina miserável e dependente do materialismo, socialismo e comunismo”. Imagina-se que, por ele, possam ter passado obras de Dostoiévski e Tolstói, entre outros. Ou seja, estranhamente, ele trabalhava defendendo os princípios do governo após criar uma poderosa arma de discussão social que o fez, décadas depois, um ídolo da URSS. Seguiu censor até o final de 1867, quando se aposentou por vontade própria. Terminou sua vida em profunda depressão, acusando outros autores de roubarem suas ideias.

Oblómov é um tremendo livro. Não vou contar a história a partir da segunda parte para não atrapalhar a leitura de vocês. O romance é sempre interessante em suas 700 páginas, tendo momentos de alta tensão na quarta parte.

A má notícia é que, hoje, o livro virou raridade no Brasil. Com o fim da Cosac Naify, nenhuma editora herdou o calhamaço maravilhosamente bem traduzido por Rubens Figueiredo. Neste minuto, a Estante Virtual tem um exemplar da edição da Cosac: ele custa R$ 500. O Mercado Livre tem duas, uma a R$ 349 e outra a R$ 475. A Amazon também indica um “novo” por 660,00. Assim fica difícil.

Gontcharóv é o da esquerda. Com a mão na cabeça, parece desejar dormir. Como Oblómov.
Gontcharóv é o da esquerda. Com a mão na cabeça, parece desejar dormir. Como Oblómov. De braços cruzados, o mais alto é Tolstói.

Obs. de 2020: a boa notícia é a Cia. das Letras acaba de relançar o livro. A nova capa está ao lado. Agora, ele custa R$ 84,90. Melhor, né?

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Um local de Porto Alegre: a Ladeira Livros de Mauro Messina

Um local de Porto Alegre: a Ladeira Livros de Mauro Messina
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Quem mora em Porto Alegre e ama os livros, provavelmente conhece Mauro Messina. Sócio do sebo Ladeira Livros (Rua Gen. Câmara — mais conhecida como Rua da Ladeira –, nº 385, no chamado Centro Histórico), Mauro fez dois cursos na Ufrgs e outro na Fapa, indo quase até o final de cada um deles. Porém, para extrema decepção de sua mãe, não se formou nem em Ciências Sociais, nem em Geografia e muito menos em Administração de Empresas, apesar de ter mais ou menos se sustentado nos corredores da Universidade Federal e da Fapa. Em compensação, conhece livros – objeto e conteúdo – como poucos, dando palpites certeiros sobre aquilo que os clientes devem (ou não) ler, além de irritar todos os colorados que vão à livraria com um gremismo daqueles bem barulhentos e nojentos – opinião deste que vos escreve.

Para quem olha da rua, a Ladeira Livros parece pequena. A sala da frente não é grande, mas há 40 mil livros lá para trás. Enquanto a chuva batia forte na General Câmara, fazendo os clientes entrarem fechando rapidamente seus guarda-chuvas, Mauro falou ao Sul21 como sempre faz — sorrindo muito e interrompendo seus discursos com risadas altissonantes.

Foto retirada do perfil do Facebook de Mauro Messina

A história da livraria começa lá nos anos 80. Mauro fazia bicos com Adeli Sell numa banquinha que ficava embaixo do viaduto da Borges, um sebo. O espaço era mínimo para os dois militantes da tendência petista ‘O trabalho’. Lá, o estudante secundarista Mauro vendia broches e adesivos do PT. Então, começou a botar uns livrinhos ao lado. Em 1988, conheceu Fernando Schüller, coordenador de literatura na Prefeitura. E começou a vender livros nos sábados pela manhã, durante os Encontros de Sábado na secretaria municipal de cultura. Quando entrou na Universidade, mudou para a Convergência Socialista. Cursava administração na Fapa. Em 1991, foi trabalhar como funcionário do livreiro e escritor Arnaldo Campos, o lendário dono da Porto do Livro, no Campus Centro da Ufrgs.

No mesmo ano, passou no vestibular da Ufrgs para Ciências Sociais. Ficou dois anos com Arnaldo, apesar de que o dono da livraria estava sem dinheiro e com problemas para pagar a pensão da ex-esposa. Era a época pré-plano real, a inflação corroía tudo e a ex-mulher do livreiro frequentemente ligava pedindo o pagamento da pensão. Arnaldo se deprimia e dizia dez vezes por dia para Mauro: ‘’Desiste do ramo. Eu sei que tu gosta, mas não faz como eu, faz algum concurso, pega uma estabilidade.’’ E Mauro respondia que não tinha como. Aí passava um tempo, o livreiro atrasava novamente a pensão e a mulher voltava a ligar. Ficavam meia hora no telefone. Aí ele se estressava e chamava o funcionário para o Bar do Antônio. ‘’Larga, Mauro! E não casa. Mas, se tu for burro e casar, não te separa”’. Contudo, quando Mauro inaugurou a Ladeira Livros em 2006, Arnaldo visitou o ex-pupilo. Estava todo feliz.

Mas não nos adiantemos. Em 1993, Mauro ficou desempregado. Sabia que algumas livrarias tinham armários de livros nos corredores da Ufrgs e ele pensou que poderia fazer o mesmo. Convidou um amigo e começaram a vender livros nos corredores do Campus do Centro. O nome da livraria era Sagarana. Ele já tinha contato com algumas editoras e alugou uma sala na Dr. Flores para o estoque. Também vendia livros na Fapa, dentro do mesmo esquema. Os livros eram novos, recebidos em consignação. O corredor ficava cheio de gente nos intervalos. Ali, Mauro discutia política, futebol e vendia seus livros.

Trabalhava também no curso Unificado. Amigo do professor Sergius Gonzaga, chegava ao cursinho na hora do intervalo. Sergius colaborava, avisando-lhe do livro que recomendaria em sala de aula. Na saída… Mesmo assim, o maior ponto de venda era dentro da Ufrgs. Um dia, tentaram acabar com a banca de livros de Mauro. Era ilegal. Um abaixo-assinado dos alunos garantiu a continuidade. Mas depois não houve jeito e ele teve que sair.

“Eu saí lá em 2001 e não sabia o que fazer, simplesmente não esperava que acontecesse. Aí eu fui ali no Flores, que vendia discos na Borges, embaixo do viaduto. Cheguei nele e disse que tinha uns livros pra vender no espaço dele. Trouxe meu armário. Ele vendia discos e eu livros. Naquela época eu estava negociando um espaço no Campus do Vale lá na Ufrgs. Fui para lá, mas nos dois lugares vendia pouco. Foi um período bem complicado”.

A Ladeira Livros começou em 2006. “Os proprietários da Nova Roma estavam fechando a livraria na Gen. Câmara (a popularmente chamada Rua da Ladeira) e me disseram que se eu quisesse poderia trabalhar lá. Levei meu pequeno acervo de 600 livros e me mudei. Peguei livros novos em consignação e comprava bibliotecas de forma parcelada, etc. Fui levando a vida”.

Foto: Guilherme Santos/Sul21

A Estante Virtual já existia há um ano e Mauro quis aderir, só que não tinha computador. Fazia o cadastro de seus livros numa lan house. Lá, também descobria o que fora vendido. E concluiu que não poderia ficar fora das redes, apesar de achar um saco cadastrar tudo. “Estava complicado pagar o aluguel do novo espaço. Então, três estudantes amigos meus deram a ideia de dividir o aluguel e transformar parte do local em cafeteria. Mas tinha um problema, eles não tinham experiência nisso e, na verdade, detestavam café. Achavam também chato servir os clientes. “Então tive uns golpes de sorte comprando boas bibliotecas, comecei a crescer e tive que mudar de número aqui na rua. Eram muitos livros”.

Como se compra livros? “Tu tens que conversar com a pessoa pra saber o que o livro significa pra ela. Se eu pagar uma miséria, eles não voltam mais, vendem para outro. Afinal, quem se interessa por literatura conhece a Estante Virtual, onde todos ficam sabendo o valor de cada obra. Então, se a pessoa tem apego aos livros e eu quero comprá-los, vou ter que pagar. Existe toda uma negociação para a compra, mesmo quando cara vem aqui vender uns poucos. Tenho que olhar livro a livro para ter uma boa base de quanto vale. Não adianta olhar de longe. Nem todas as bibliotecas são como a do Tatata Pimentel, que acabei comprando. O bom é que o amor pelo livros facilita o papo”.

Mauro tem mil histórias acerca da compra de livros e bibliotecas. Há o pessoal que vem até a Ladeira para vender poucos exemplares, tem os caras que enganam os familiares e vendem a biblioteca de um morto recente pedindo um “por fora”. Ele também conta histórias de uma Kombi que quebrava sempre que vinha com milhares de livros, mas a preferida parece ser esta: “Uma vez, fui ver uma coleção de livros e quando cheguei, a dona tinha uma capelinha, cheia de velas. Era religiosa, uma carola de qualquer coisa e eu sou materialista diálético (risadas). Na saída, após fecharmos negócio, ela fixou os olhos em mim e disse misteriosamente que meus pais precisavam vender alguma coisa, mas que tinha uma pedra no meio do caminho. E me aconselhou: ‘Diz pra tua mãe pegar uma pedra e atirar ela longe’. Ela também me disse que eu era uma pessoa muito boa. E completou me avisando que estaria desencarnando dali a uns dias. Gelei, né? Então liguei pra minha mãe. Ela disse que sim, queria vender um sitiozinho no interior. E mandei ela atirar longe a porra da pedra. Ela não queria, mas eu insisti. Ela acabou atirando a tal da pedra e logo depois vendeu o sítio. Eu voltei à casa da mulher para agradecer e não encontrei mais nada. Talvez ela tivesse desencarnado”.

Hoje, Mauro cadastra todos os livros na Estante Virtual. Mas ainda vende mais na livraria. Quem o conhece sabe que ele adora uma conversa, recebendo bem até os que se não gostam de ver a figura de Lênin ao lado do caixa. “São 60% das vendas aqui na livraria, na base da conversa, e 40% na internet. O Correio gosta de sumir com os livros, é um problema, mas a Estante garante uma estabilidade, é venda certa”.

A Ladeira Livros também usa o Facebook. Mauro conta: “Eu escolho um livro para anunciar no Facebook. Às vezes pego um muito bom, outras vezes pego um da hora ou outro totalmente aleatório. Boto lá a capa e o valor. E escrevo ‘Na prateleira’. Quem pedir primeiro para reservar, leva. A regra é clara. No dia que os Estados Unidos legalizaram o casamento gay, eu anunciei o livro sobre a torcida organizada do Grêmio Coligay… Coloco uns dez livros por dia, nem todos saem, depende muito do que eu posto e do momento. Para mim, o Facebook é diversão. Também conto histórias lá. Com ele, conheci muita gente que nunca entrou na livraria e que compra ou só conversa. O preço? Eu dou o preço que mais ou menos é cobrado na Estante Virtual. Tu podes terminar a entrevista dizendo que eu sou apenas mais um leitor que lê menos do que gostaria. Sou um leitor mediano. Não sou formado em nenhum curso, apesar de ter feito ciências sociais e geografia. Ando lendo mais romances atualmente, principalmente os policiais. A livraria abre às 9h, mas eu trabalho das 10h30 as 19h. Tenho dois filhos, a Márcia e 40 mil livros cadastrados, além de seis mil que ainda tenho que botar no sistema. É isso.”

(*) Com Pedro Nunes

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XIV – O Anão, de Pär Lagerkvist

Neste momento, há três exemplares de O Anão à venda na Estante Virtual. A única edição nacional é da Civilização Brasileira, dos anos 70. Não é um livro grande, é um volume de 150 páginas. O valor mais barato praticado é de R$ 189,90; o mais caro, R$ 250,00. Não me surpreende. Tornou-se raro e é uma obra-prima daquelas que tem de ser levadas para a ilha deserta.

(Tenho certeza que meu exemplar está lá em casa. Mas agora, sabedor do que ele vale, vou dar uma conferida).

O Anão é a história de Picolino, o bobo da corte de um príncipe italiano da Renascença. Sua função é a de divertir e ele a cumpre; só que ele odeia minuciosamente a todos os seus amos e quase todos são seus amos, claro. A repugnância que sente, a repulsa que Picolino dedica a todos é descrita de forma estupenda — com um foco narrativo que tentaremos explicar à frente — pelo Nobel de 1951, assim como também a forma como passa a influenciar os assuntos políticos da corte, sempre com a única e exclusiva intenção de prejudicar a todos. É um romance originalíssimo sobre o mal, a inveja e o desprezo.

A cidade-estado renascentista onde ocorre a ação não é clara, mas há um personagem chamado Bernardo, que é sem dúvida inspirado em Leonardo da Vinci, o que nos faz pensar no final do século XV. Também há referências a igrejas que se encontram na região de Florença. Ao mesmo tempo, o anão, narrador do romance, fala em criações como A Última Ceia e a Mona Lisa, a primeira delas pintada em Milão e segunda provavelmente em Florença. Além disso, o príncipe parece ser César Bórgia, que empregou Leonardo da Vinci como arquiteto militar… Desta forma, há muitas referências históricas dançando incontrolavelmente no contexto do romance.

Como disse, o anão é o narrador e tudo é contado retrospectivamente alguns minutos, horas ou semanas após a ocorrência dos fatos e antes dos seguintes. Tal artifício faz com que todos os acontecimentos sejam quentes, contados com emoção, e que O Anão planeje no papel seus próximos passos. Ou seja, a colocação do foco narrativo é muito inteligente, fazendo com que o leitor sinta a respiração do anão-monstro arquitetando suas vinganças, incorporando o mal e curtindo seu ódio de misantropo.

Ele ama a guerra, claro, e quando lhe pedem para cometer um crime, ele o expande sob o pretexto de beneficiar o príncipe… Todos mudam durante o romance, todos mudam na cabeça do narrador, menos ele, que se mantém coerente da primeira à última página. Curiosamente, é profundamente religioso, mas sua crença inclui um Deus que nunca perdoa. Mesmo impressionado com a ciência de Bernardo, sente repulsa pela busca que este empreende para chegar à verdade e ao âmago das coisas.

Por tudo isso e muito mais, este clássico de 1944 é de leitura obrigatória, o que justifica (ou não) seu preço (abusivo).

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