Talvez fizessem 25 anos que eu não via Persona (1966), de Ingmar Bergman. Foi um período grande demais ou minha memória me traiu, pois não o lembrava como tão estranho quanto me pareceu ontem à noite, quando foi reapresentado pelo Telecine Cult. Claro a cena do discurso duplicado de Alma-Elisabeth estava em minha memória, assim como a mistura dos rostos, o ódio ao filho e os abortos. Mas não lemnrava do final com a equipe de filmagem e o filme literalmente queimado. A história (sem spoilers) é simples: Alma, uma enfermeira, deve cuidar de Elisabeth Vogler — sempre Vogler, sempre Vergerus — , uma atriz que está em boa saúde, mas que se recusa a falar. Elas saem da clínica para uma casa de praia cedida pela terapeuta. Alma fala com Elisabeth o tempo todo — há um momento muito dúbio –, inclusive sobre alguns de seus segredos, nunca recebendo resposta. A personalidade de Alma dissolve-se na de Elisabeth.
A música é um erudito contemporâneo bastante percussivo que serve de fundo adequado ao denso, pessimistae claustrofóbico. Bergman escreveu o roteiro em meio a uma internação por pneumonia. Sempre muito ativo, estava desesperado. Era necessário escrever qualquer coisa que apaziguasse a sensação de futilidade que sentia, a sensação de estar marcando passo.” É muito interessante notar que duas longas cenas tratam da impossibilidade do artista mudar a realidade, como se os filmes e os livros fossem algo fútil. A auto-imolação de um vietnamita e a fotografia da guerra vão vistas com verdadeiro horror por Elisabeth, que é chamada por Alma como a artista ou grande atriz. Mas o cerne do filme é a questão da maternidade. Elizabeth renega ativamente seu filho desde a gravidez, enquanto Alma não suporta a lembrança de um aborto que fizera anos antes. Sabe-se que Bergman teve nove filhos e, segundo ele mesmo, foi um péssimo pai. Segundo amigos, era um pai distante e sarcástico.
Persona é o primeiro filme da longeva parceria entre Bergman e Liv Ullmann (Elisabeth Vogler). Já Bibi Andersson era uma figurinha carimbada desde os anos 50. A atuação de ambas é notável. A fotografia em preto e branco — de Sven Nykvist — revela um cuidado estético incomum no Bergman daqueles anos despojados. A cena branca do quarto, em que chega Elisabeth para encontrar-se com Alma, e a forma como é sugerido um “momento de amor” entre ambas são belíssimas atmosferas de sonho. Na verdade, parecem Tarkóvski, não?
Para terminar: é incrível que o filme tenha apenas 85 minutos e diga tanto.
A famosa foto da fotógrafa norte-americana Ruth Orkin (1921-1985) já foi vista em diversas circunstâncias, quase sempre com a mesma óbvia interpretação. Uma grande amiga minha diz sentir medo cada vez que olha a foto. Tirada em agosto de 1951, na cidade de Florença, mostra uma mulher alta, bela e bem vestida passando por um grupo de homens que a olham com ar de desejo. Assédio. Um, bem próximo da moça, leva a mão à própria genitália enquanto assobia. Em resposta, ela caminha com medo — ou pelo menos com receio –, puxando o xale, evitando olhar para eles.
O que pouca gente sabe é que esta foto, hoje clássica, serviu para ilustrar a revista Cosmopolitan dentro de uma matéria chamada Don’t Be Afraid to Travel Alone.
Se era para perder o medo… Bem, as feministas utilizam bastante esta imagem para demonstrar o agressivo assédio das rua. A foto foi cuidadosamente encenada ou ao menos repetida sob diversos ângulos, como comprova o rolo do filme. Isto não lhe tira o mérito.
O curioso é que a modelo Ninalee “Jinx” Allen nega a encenação. Diz que os homens estavam por ali. Eram uns desocupados no alto desemprego do pós-guerra. A fotógrafa Orkin conheceu Jinx, uma pintora também norte-americana, na época com 23 anos, dias antes de retratá-la. Ambas estavam viajando sozinhas pela Europa — algo raro nos anos 50 –, encontraram-se Florença e Orkin convidou Jinx para servir de modelo nas fotos que pretendia vender para a revista..
Após a publicação na Cosmopolitan, a imagem clássica passou a ser parcialmente censurada, cortando-se a metade esquerda da foto ou apagando-se a mão do homem do guarda-chuva. A partir de meados dos anos 1960 a fotografia completa voltou a ser mostrada.
Jinx ainda está viva e diz que a imagem pode ser interpretada e apreciada como cada um quiser. Porém, como muitas vezes acontece com as obras de arte, parece haver enorme distância entre a sensação de quem participou e a interpretação de quem vê. Ela não vê assédio na foto. Jinx achou tudo muito divertido. Gostou tanto que passeou depois com um dos sujeitos, conforme comprova outra foto de Orkin.
A interpretação que faço da belíssima foto é a mesma das feministas. Jinx pode não ter se sentido intimidada, mas a imagem não o demonstra. Há uma matilha prestes a interromper a caminhada dela.
Hoje, Jinx é a bela senhora de 89 anos que, em 2011, tirou a foto abaixo, aos 83, 60 anos depois da foto, com o mesmo xale e colar.
Outras fotos de Jinx tiradas por Orkin para a Cosmopolitan:
Pautado para simplesmente caminhar pela cidade, o fotógrafo Bernardo Ribeiro escolheu percorrer a Voluntários da Pátria da estação rodoviária até a Ramiro Barcellos. A região pouco turística estranhou a presença do fotógrafo. Em certo momento, ele foi alvejado por uma maçã. Mesmo assim, o resultado foi excelente. São gatos em antiquários, carroceiros, mendigos, crianças e Papais Noéis…. Enfim, belas cristalizações do fugidio em Porto Alegre.
A manifestação foi dispersada por bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral, mas, no passeio da moça, ficou a impressão de que tudo está só (re)começando.
Brasse era fotógrafo antes da guerra. Por este motivo, foi convocado à tarefa de tirar e revelar fotos dos judeus de Auschwitz. Elas serviam para documentação e controle dos nazistas. O resultado pessoal é que, após a guerra, Brasse teve de largar a profissão. Passou os últimos 67 anos de sua vida sem tocar numa máquina fotográfica. Estava traumatizado.
Quando recomecei a tirar fotos depois da guerra, vi os mortos. Eu estava tirando uma fotografia de uma menina, um retrato comum, mas por trás dela imaginava fantasmas de mortos. Eu vi todos aqueles grandes olhos, aterrorizados, olhando para mim. Eu simplesmente não podia ir em frente.
Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido como Lewis Carroll, nasceu na Inglaterra em 27 de janeiro de 1832 e morreu em 14 de janeiro de 1898. Além de escritor, Carroll foi matemático, lógico, pastor anglicano e fotógrafo; além de obras de ficção e poesia, escreveu tratados matemáticos, livros de lógica, adivinhações e jogos; mas sua celebridade póstuma foi garantida por Alice no país das maravilhas (Alice in Wonderland), publicado pela primeira vez em 1865. Trata-se de um dos mais fascinantes, loucos e engenhosos livros já escritos. Há uma continuação – chamada Através do espelho e o que Alice encontrou lá (Through the Looking-Glass and What Alice Found There) – , que passou a ser rotineiramente publicada na parte final do volume de Alice.
Quando era professor de matemática e lógica na Universidade de Oxford, Carroll conheceu Henry Liddell. Liddell chegara à Oxford no mesmo ano que Dodgson, em 1856, trazendo consigo sua jovem família, os quais viriam a ter grande influência na vida e na carreira do autor. Dodgson tornou-se logo íntimo da esposa de Liddell, Lorina, e de seus filhos, principalmente das três irmãs Lorina, Edith e Alice Liddell, fonte de inspiração para a Alice do livro.
Embora as informações sejam escassas – os diários de Dodgson do período entre os anos de 1858 a 1862 foram perdidos – , os biográfos garantem que, no começo da década de 1860, Dogdson tinha o hábito de levar as crianças – primeiro o menino, Harry, e mais tarde também as três meninas — em passeios de barco a remo até Nuneham Courtenay ou Godstow.
Foi numa destas expedições que, em 4 de julho de 1862, Dodgson criou o esboço da história de Alice. Tendo-a inventado no barco e contado de improviso para as crianças, ouviu Alice Liddell implorar para que a pusesse por escrito. Depois de mais de dois anos, em novembro de 1864, Dodgson presenteou Alice com um manuscrito, ilustrado pelo próprio autor, chamado Alice’s Adventures Under Ground ou As Aventuras de Alice sob a Terra. O manuscrito foi parar nos escritórios da editora Macmillan, que o aprovou imediatamente. Após alterarem o titulo para Alice among the fairies (Alice entre as fadas) e depois para Alice’s Golden Hour (A hora maravilhosa de Alice), finalmente chegaram a Alice in Wonderland (Alice no País das Maravilhas) e a autoria passou a um certo Lewis Carroll, pseudônimo que Dodgson costumava utilizar em seus escritos literários. As ilustrações de Carroll foram substituídas pelas de um profissional e, por sugestão do escritor Henry Kingsley, Alice foi publicado sem especificar se era destinado a adultos ou crianças.
A primeira adaptação de Alice no país das maravilhas para o cinema foi produzido no longínquo ano de 1903…
Uma das principais características de Alice no país das maravilhas é a de permitir tanto a abordagem infantil quanto a adulta. Tudo começa quando Alice, uma menina curiosa, mas cansada de sua vida monótona, vai atrás de um apressado Coelho Branco, caindo em um mundo diferente, divertido e nonsense. Lá, conhece personagens como os irmãos gêmeos Tweedledee e Tweedledum, o Gato Risonho, a Lagarta, toma chá com a Lebre Maluca e o Chapeleiro Louco e participa de um jogo de cróquete com a Rainha de Copas. Alice é mais uma espectadora surpresa das coisas que acontecem ao seu redor e seu encantamento efetivamente parece ser o de uma criança absolutamente desconcertada e feliz. Há grande literatura envolvida, muitas reviravoltas, jogos, propostas, experimentalismo e uma criatividade incontrável e wit. Após anos sendo parcialmente traduzido no Brasil como livro infantil — houve edições parciais de até 10 páginas! — , Alice só ganhou sua verdadeira grandiosidade quando foi traduzido, em 1980, pelo poeta Sebastião Uchoa Leite.
Quem lê esta versão, nota não apenas as analogias e trocadilhos geniais, mas a fina ironia de perpassa o relato e principalmente um surpreendente sequência de situações que representam fatos da própria infância de Alice e da de todos nós ou, tal como explica Lenir Fátima de Castro, da UFF (Universidade Federal Fluminense), que representam “imagens mentais das várias situações vividas pela menina Alice — os diversos apuros, as diversas dificuldades”. Segundo ela, “os maiores atrativos são o ‘logos fantástico’, o nonsense e a capacidade que o autor tem de imprimir ao texto um encadeamento por imagens e sensações”. Além do mais, há um elaborado trabalho de linguagem que, assim como a simbologia, permanecera inapreensível ao leitor brasileiro antes da tradução de Leite.
No século XIX, a história foi um sucesso instantâneo e desde então consta entre os mais importantes textos da literatura universal. A obra tem sido objeto de filmes, histórias em quadrinhos e álbuns de colecionar, mas também tem sido lida e estudada por muitos adultos.
Outra Alice produzida para o cinema, esta de Walt Disney (1951):
O enorme sucesso comercial do livro mudou a vida de Dodgson em muitos aspectos. A fama de seu alter ego Lewis Carroll logo se espalhou ao redor do mundo e ele viu-se soterrado por cartas de fãs e atenções muitas vezes indesejadas. Por exemplo, a Rainha Vitória gostou tanto que sugeriu que o livro seguinte de Carroll fosse dedicado a ela. Carroll negou o fato, apesar das muitas testemunhas. A verdade é que seu próximo livro, um volume acadêmico de matemática intitulado Tratado Elementar sobre Determinantes, foi dedicado à Rainha. Um livro de matemática talvez não fosse exatamente o que ela desejasse…
A Alice mais recente, de Tim Burton:
No final de 1871, Carroll publicou uma sequência – Alice através do Espelho e o que encontrou lá. As cores menos vivas desta continuação provavelmente reflitam as mudanças na vida de Carroll. A morte de seu pai, em 1868, mergulhou-o numa depressão que durou alguns anos.
Charles Dodgson
Charles Dodgson foi um homem alto, surdo de um ouvido e “hesitante”. “Hesitação” era o sucedâneo utilizado por Dodgson para referir-se à sua gagueira. A gagueira de Dodgson era peculiar. Há a crença de que gaguejava somente na companhia dos adultos e seria fluente com crianças. Porém, logo após sua morte, seus biógrafos informaram que havia crianças que lembravam da gagueira e adultos que mal a perceberam. Dodgson parece ter sido o mais consciente dela, tanto que teria se autocaricaturizado como o Dodo de Alice, referência à própria dificuldade para pronunciar o sobrenome.
Não deixa de ser estranho que o gago Dodgson cantasse e se apresentasse para plateias em ambiente familiares, tendo sido um apreciado narrador de histórias. Também era ótimo em mímica e em responder charadas. Dizia que a chave para uma boa história era ter sempre em mente surpreender as pessoas.
As tais fotografias
Carroll também foi fotógrafo amador e colecionava imagens de meninas entre 8 e 12 anos de idade. A nossos olhos, as fotografias parecem o mesmo que pareceram a Vladimir Nabokov, autor de Lolita e criador do personagem-narrador Humbert Humbert:
Eu sempre o chamo de Lewis Carroll Carroll porque ele foi o primeiro Humbert Humbert. Você viu as fotografias dele com as meninas? Ele fazia acertos com as tias e mães para fotografar as crianças. Mas nunca foi acusado, exceto por uma menina que escreveu sobre ele quando já era velha.
Vladimir Nabokov em entrevista para a Vogue em dezembro de 1966
O que se dizia na época era que, quando tinha oportunidade, gostava de desenhar ou fotografar meninas seminuas, com a permissão e presença de suas mães. “Se eu tivesse a criança mais linda do mundo para desenhar e fotografar”, escreveu, “e descobrisse nela um ligeiro acanhamento (por mais ligeiro e facilmente superável que fosse) de ser retratada nua, eu sentia ser um dever solene para com Deus abandonar por completo a solicitação”.
Por temor que estas imagens de crianças desnudas criassem embaraços para as meninas mais tarde, Carroll pediu que, após a sua morte, fossem destruídas ou devolvidas às crianças ou aos pais delas. As fotos eram presumidas como perdidas, mas, desde então, surgiram seis imagens. Na verdade, a atenção de Carroll como fotógrafo foca-se tanto em suas imagens de meninas como em estudos de homens, mulheres, crianças do sexo masculino e paisagens, assim como esqueletos, bonecas, cães, estátuas e árvores.
Após 24 anos, em 1880, Carroll deixou subitamente a fotografia. Menos de 1000 imagens sobreviveram ao tempo e à destruição deliberada. Ele afirmou que parou de tirá-las porque manter o trabalho no estúdio era difícil (ele usava o processo de revelação com colódio líquido) e os fotógrafos comerciais (que começaram a utilizar o processo de chapas secas na década de 1870) tiravam fotos com maior rapidez.
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Uma galeria de fotos de Lewis Carroll (pesquisa de Ramiro Furquim):