1966, a Copa divisora de águas: Pelé caçado, Rattín expulso

A Copa do Mundo de 1966, na Inglaterra, foi um divisor de águas na história das Copas. Foi a primeira a ser disputada na casa dos ingleses e estes queriam aproveitar a oportunidade para ganhar o título pela primeira vez. Foi uma das Copas mais violentas já disputadas.

Até 66 não podia ser feita substituição de jogadores durante os jogos. Se alguém se machucasse não podia ser substituído. A seleção tinha que jogar com menos jogadores. Alguns exemplos foram se acumulando. Logo na primeira Copa, o goleiro André Thepot, da França, foi substituído pelo zagueiro Chantrel quando se contundiu durante o jogo. Em 58, num lance casual com Vavá, o zagueiro Jonquet, da França, quebrou a perna. Em 62, Pelé se contundiu sozinho no jogo contra a Tchecoslováquia e não pode ser substituído.

Em 66, Pelé foi caçado no jogo contra Portugal e passou a fazer número em campo, tudo às vistas do juiz inglês. Foi um jogo absolutamente inacreditável nos dias de hoje. Portugal tinha um bom time, tinha Eusébio, mas abusou demais na violência.

Outro fato decisivo foi a expulsão do capitão argentino Rattin no jogo contra a Inglaterra. O juiz era da Alemanha, não falava inglês, nem Rattin. O Rudolf Kreitlein expulsou o argentino por indisciplina e pela expressão do rosto de Rattín, embora o alemão não entendesse espanhol. Os argentinos reclamaram, alegando nenhum motivo da expulsão de Rattín, que solicitou um intérprete. O jogo parou por dez minutos, antes que Rattín saísse. Ele se recusou a sair de campo e acabou sendo escoltado por vários policiais. Não satisfeito, pegou uma bandeira do Reino Unido e amassou. Por isto, a FIFA obrigou os árbitros a utilizarem cartões amarelos e vermelhos.

Estes dois fatos contribuíram para as medidas tomadas para a Copa de 70, no México. Já poderiam ser feitas duas substituições durante o jogo e hoje já evoluiu para três e até quatro se tiver prorrogação. E foram instituídos os cartões amarelos e vermelhos para facilitar a comunicação entre árbitros e jogadores.

A obra-prima de Chico Buarque que virou meme

A obra-prima de Chico Buarque que virou meme

A foto de capa do primeiro LP (todos sabem o que é isto?) de Chico Buarque é hoje meme nas redes sociais. Aliás, faz alguns anos que isto acontece. O curioso é que, na época em que foi lançado, em 1966, quase todas as capas de discos eram sem graça, ao menos no Brasil. Só que a deste disco foge inteiramente aos padrões daqueles anos. Ela é surpreendente, expressiva e hoje há ferramentas que permitem sua “adulteração”. Uma delas é o Chico Buarque Meme Creator. E não é só no Brasil que ela é utilizada para servir de base a piadas. A cantora norte-americana Patti Smith já criou sua versão do meme e torcedores de futebol inglês a utilizam frequentemente quando seus adversários sofrem decepções. Apoiada na ideia simples de que alguma coisa boa — ou uma boa perspectiva — é subitamente desfeita, o meme chegou a ser usado numa propaganda de um shopping no Piauí, o que levou Chico Buarque a processar o estabelecimento por uso indevido de imagem. Não obstante os abusos, Chico se diverte e deixou isto claro num vídeo que divulgou em seu site. Em conversa com João Bosco, ele disse que “o meme é do cacete”.

Um exemplo dos mais recentes é uma referência ao fato de Chico ter sido hostilizado verbalmente num restaurante do Leblon por defensores do impeachment da presidente Dilma. Então, sob a imagem do Chico Buarque sorridente, foi colocada a frase: “Fui jantar no Leblon”. E, debaixo da foto do compositor com uma expressão sisuda: “Encontrei playboy leitor da Veja”.

O produtor do disco, Manoel Barenbein, não lembra de onde partiu a ideia da imagem:

— Naquela época, eu cuidava apenas da gravação. A parte de arte era do Júlio Nagib (morto em 1983) — revelou Barenbein ao jornal O Globo. — Imagino que ele, Chico e Dirceu Corte-Real (que assina as fotos e o lay-out na ficha técnica do álbum) conversaram e chegaram juntos a essa ideia do Chico sorrindo e do Chico triste.

O que muita gente não imagina é que, por trás das piadas, esconde-se um tesouro — as canções que o jovem Chico escreveu em sua juventude. Abaixo, você poderá ouvir cada uma delas.

O disco foi lançado em 1966 quando o compositor tinha entre 21 e 22 anos. Nascido em 1944, Chico Buarque chegou a ingressar em 63 no curso de Arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo. Cursou dois anos e trancou a matrícula quando a carreira artística começou a tomar muito tempo.

Ele poderia ter sido mais um compositor lançado por Elis Regina, mas a cantora acabou desistindo de gravá-lo. Chico era tão tímido que Elis achou que ele “não tinha ido com sua cara” e acabou deixando de lado suas músicas. “Não vou gravar um cara que não gostou de mim”, disse. Mas não era nada disso. Chico ficara apenas constrangido ao mostrar suas criações para uma “cantora famosa”. E a honra de lançar Chico Buarque ficou para a obscura Maricene Costa, que registrou Marcha para um dia de sol em 1964.

A figura do próprio compositor revelou-se ao público brasileiro quando ele ganhou o Festival da Record em 1966 com A Banda — que abre o disco –, interpretada por Nara Leão. A canção empatou em primeiro lugar com Disparada, de Geraldo Vandré, interpretada por Jair Rodrigues. No entanto, Zuza Homem de Mello, no livro A Era dos Festivais: Uma Parábola, comprova que A Banda vencera o festival. O musicólogo preservou por décadas as folhas de votação do festival. Nelas, consta que A Banda ganhou por 7 a 5. Porém, Chico, ao perceber que ganharia, foi até o presidente da comissão e disse não aceitar a derrota de Disparada. Caso isso acontecesse, entregaria o prêmio à concorrente.

O LP de 1966 revela várias faces do futuro Chico. Ela e sua Janela, Você não ouviu e Olê Olá demonstram a faceta lírica de um compositor que chegava a uma bem sucedida pós-bossa nova. Pedro Pedreiro traz as preocupações sociais — além de ter sido a base experimental para o modo como viria a trabalhar os versos. Juca e A Rita são puro e bom Noel Rosa. A Banda é uma marchinha no estilo de Ismael Silva. Tem mais sambaMadalena foi pro marAmanhã, ninguém sabeMeu Refrão e Sonho de um Carnaval são a voz do próprio autor que seria polida nos anos seguintes.

Como quase todos, Chico também imitava João Gilberto e Tom Jobim (que o mandou estudar música), além de Vinicius de Moraes. Mas desde o primeiro momento buscou a aproximação do samba e da bossa nova. Havia nele muito Noel, mas também Tom Jobim.

Se Chico é ainda saudado hoje, na época de sua aparição era chamado de “a única unanimidade nacional”. Seu trabalho ao musicar Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, foi reverenciado pela crítica. Por outro lado, tornara-se popularíssimo graças ao fenômeno A Banda, cujo compacto de Nara Leão vendeu 100 mil cópias em uma semana.

Quando da explosão de A Banda, a gravadora RGE foi rápida. Sabia que não podia virar as costas para toda aquela popularidade. Afinal, Chico nem tinha LP e já era famoso! Tinha chegado a hora de um disco com doze canções. E ele foi gravado nos finais de semana em razão de compromissos profissionais dos envolvidos. Os arranjos foram de Toquinho. O resultado foi um disco perfeito, nascido clássico. “Lá está a filosofia de um Noel, a riqueza melódica de um Vadico, o balanço de um Janet de Almeida, um Vassourinha, um Ciro, de um Mário Reis devidamente atualizado pela batida moderna de Toquinho (…). A música popular brasileira se reencontrou com Chico Buarque de Hollanda”, escreveu Sylvio Tullio Cardoso no mesmo O Globo.

Porém, mesmo neste início de carreira, Chico já tinha embates com a censura. A canção Tamandaré, que estaria no disco, foi proibida após seis meses em cartaz no show Meu Refrão, por ter frases ofensivas ao patrono da marinha, Almirante Joaquim Marques Lisboa. A Marinha não achou graça e vetou a brincadeira. A figura do almirante Tamandaré era estampada nas notas de 1 cruzeiro e Chico perguntava: “Meu marquês de papel, cadê teu troféu? Cadê teu valor? Meu caro almirante, o tempo inconstante roubou…”. A  música permaneceu proibida até o ano de 1991, quando foi gravada pelo Quarteto em Cy. A curiosidade é que, para completar a trilha sonora, em substituição à Tamandaré, Chico compôs Noite dos Mascarados

“‘Seu Marquês’, ‘Seu’ Almirante / Do semblante meio contrariado / Que fazes parado / No meio dessa nota de um cruzeiro rasgado / ‘Seu Marquês’, ‘Seu’ Almirante / Sei que antigamente era bem diferente /  Desculpe a liberdade / E o samba sem maldade / Deste Zé qualquer / Perdão Marquês de Tamandaré”.

Num depoimento concedido a Regina Zappa, Chico surpreende: “Quando conheci Nara, em 65, 66, a gente achava que aquilo tudo estava ficando cansativo, a moda das canções de protesto me incomodava. Era bonitinho ser contra o governo. Parecia a burguesia brincando e dava a impressão de ser um pouco oportunista. Então fiz A Banda e dei para a Nara gravar. Foi uma coisa meio proposital, tipo um chega”. Só que a música explodiu e foi considerada mais um ataque à ditadura. Tudo, aliás, que escrevesse naquele tempo, já era considerado como crítica ao poder dos militares, o mais visível.

Mas voltemos ao disco. No texto do encarte do disco, Chico escreve: “É preciso confessar que à experiência com a música de Morte e vida Severina, devo muito do que aí está. Aquele trabalho garantiu-me que melodia e letra devem e podem formar um só corpo. Assim foi que procurei frear o orgulho das melodias, casando-as, por exemplo, ao fraseado e repetição de Pedro pedreiro, saudosismo e expectativa de Olê, olá, angústia e ironia de Ela e sua janela’, alegria e ingenuidade de A banda, etc”. No fim, falava das imagens da capa: “Enfim, cabe salientar a importância do limão galego para a voz rouca de cigarros, preocupações e gols do Fluminense (só parei de chupar limão para tirar fotografias)”.

Persona (Quando duas mulheres pecam), de Ingmar Bergman – algumas anotações

A mãe imensa e inatingível (Clique para ampliar)

Talvez fizessem 25 anos que eu não via Persona (1966), de Ingmar Bergman. Foi um período grande demais ou minha memória me traiu, pois não o lembrava como tão estranho quanto me pareceu ontem à noite, quando foi reapresentado pelo Telecine Cult. Claro a cena do discurso duplicado de Alma-Elisabeth estava em minha memória, assim como a mistura dos rostos, o ódio ao filho e os abortos. Mas não lemnrava do final com a equipe de filmagem e o filme literalmente queimado. A história (sem spoilers) é simples: Alma, uma enfermeira, deve cuidar de Elisabeth Vogler — sempre Vogler, sempre Vergerus — , uma atriz que está em boa saúde, mas que se recusa a falar. Elas saem da clínica para uma casa de praia cedida pela terapeuta. Alma fala com Elisabeth o tempo todo — há um momento muito dúbio –, inclusive sobre alguns de seus segredos, nunca recebendo resposta. A personalidade de Alma dissolve-se na de Elisabeth.

A música é um erudito contemporâneo bastante percussivo que serve de fundo adequado ao denso, pessimistae claustrofóbico. Bergman escreveu o roteiro em meio a uma internação por pneumonia. Sempre muito ativo, estava desesperado. Era necessário escrever qualquer coisa que apaziguasse a sensação de futilidade que sentia, a sensação de estar marcando passo.” É muito interessante notar que duas longas cenas tratam da impossibilidade do artista mudar a realidade, como se os filmes e os livros fossem algo fútil. A auto-imolação de um vietnamita e a fotografia da guerra vão vistas com verdadeiro horror por Elisabeth, que é chamada por Alma como a artista ou grande atriz. Mas o cerne do filme é a questão da maternidade. Elizabeth renega ativamente seu filho desde a gravidez, enquanto Alma não suporta a lembrança de um aborto que fizera anos antes. Sabe-se que Bergman teve nove filhos e, segundo ele mesmo, foi um péssimo pai. Segundo amigos, era um pai distante e sarcástico.

Persona é o primeiro filme da longeva parceria entre Bergman e Liv Ullmann (Elisabeth Vogler). Já Bibi Andersson era uma figurinha carimbada desde os anos 50. A atuação de ambas é notável. A fotografia em preto e branco — de Sven Nykvist — revela um cuidado estético incomum no Bergman daqueles anos despojados. A cena branca do quarto, em que chega Elisabeth para encontrar-se com Alma, e a forma como é sugerido um “momento de amor” entre ambas são belíssimas atmosferas de sonho. Na verdade, parecem Tarkóvski, não?

Para terminar: é incrível que o filme tenha apenas 85 minutos e diga tanto.

O rostos de Bibi Andersson e Liv Ullmann dissolvidos

Seis filmes clássicos que completaram 50 anos em 2016

Seis filmes clássicos que completaram 50 anos em 2016

Introdução, tradução e compilação do blogueiro

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O ano de 1966 foi extraordinário para o cinema mundial. Não houve grande movimentação no Brasil, mas a cena internacional viu surgir uma série de clássicos. Enquanto os EUA mantinham 250 mil soldados lutando no Vietname, enquanto a China dava início à Revolução Cultural, enquanto o Brasil fazia fiasco na Copa e via ocorrer uma eleição indireta para presidente, Ingmar Bergman, Michelangelo Antonioni, Sergio Leone e Andrei Tarkovsky faziam uma revolução na linguagem cinematográfica.

Os seis filmes que escolhemos revelam nosso gosto. Poderíamos ter colocados outros de Godard — que produziu dois naquele ano febril –, Polanski, Rivette, Zinnemann, Nichols, etc. Foi um ano riquíssimo.

Os textos que escolhemos sobre cada filme foram encontrados na rede. Fizemos resumos e, ao lado dos títulos dos filmes, deixamos disponíveis os links para eles.

1. Andrei Rublev, de Andrei Tarkovsky — The Guardian

Espectadores e críticos sempre têm os seus filmes favoritos, mas alguns destes alcançam por unanimidade o status de obra-prima, como se houvesse um acordo. É o caso de Andrei Rublev. Vê-lo é uma tarefa que requer investimento de tempo. Ele tem 205 minutos de duração em sua versão mais completa, é falado em russo e é em preto e branco. Poucos personagens são claramente identificados, pouco acontece e o que acontece não está necessariamente em ordem cronológica. Seu tema é um pintor de ícones do século XV e herói nacional, mas você não vai vê-lo pintar e nem ele fará nada de heroico. Em muitos dos episódios do filme ele não está presente e, nos últimos, ele faz um voto de silêncio. Não é um filme que precisa ser longamente pensado ou até mesmo compreendido. É para ser experimentado e admirado. Um filme de poeta.

Desde a primeira cena, quando seguimos o voo de um balão rudimentar de ar quente, ficamos confusos e espantados como o próprio Rublev. Nas três horas seguintes, estaremos na lama e no caos da Rússia medieval, convivendo com ataques tártaros, rituais pagãos bizarros, fome, tortura e sofrimento físico. E experimentaremos tal vida de forma peculiarmente intensa.

Com Andrei Rublev, Tarkovsky estava conscientemente elaborando uma linguagem que não devia nada à literatura e é uma pena que tão poucos o tenham seguido. Em uma atmosfera de sonho, Andrei Rublev opera dentro de uma compreensão diferente de tempo e de história. Faz perguntas sobre a relação entre o artista, sua sociedade e suas crenças espirituais e não pretende responder a elas. “No cinema não é necessário explicar, mas estar de acordo com os sentimentos do espectador. Esta emoção é o que provocará o pensamento”, escreveu Tarkovsky.

O filme foi finalizado em 1966 e imediatamente proibido. Foi liberado para o Festival de Cannes de 1969, após Tarkovsky ter declarado que se mataria se não fosse apresentado.

2. A Batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo — Opera Mundi

O ex-assessor norte-americano para assuntos de Segurança Nacional e pensador influente da política externa dos EUA, Zbigniew Brzezinski, afirmou em 2005 que, se quiséssemos realmente entender o que estava acontecendo no Iraque, deveríamos assistir ao filme A Batalha de Argel. O recado se fez ouvir nos corredores do Pentágono, onde a exibição do filme contou com uma audiência de aproximadamente quarenta oficiais, que foram estimulados a avaliar e a debater os assuntos centrais do filme, como as vantagens e os custos de se recorrer à tortura e a outras formas de intimidação para desvendar os planos de um inimigo que se camufla na multidão.

Os convidados receberam o convite com o seguinte comunicado: “Como ganhar uma batalha contra o terrorismo e perder a guerra das ideias. As crianças alvejam os soldados, mulheres plantam bombas em bares e, gradualmente, a população inteira protesta fervorosamente. Soa familiar? Os franceses têm um plano. Prosperam taticamente, mas fracassam estrategicamente. Venha assistir a exibição desse filme e saiba o porquê” (Kaufman, 2003).

Produzido em 1965, no contexto das guerras de libertação na África, a temática da insurgência urbana e a violência perpetrada pelos insurgentes e torturadores é abordada de tal forma que faz com que o filme seja sempre atual, pois poderíamos ainda utilizá-lo para compreender a presente intervenção francesa no Mali, as revoltas árabes e os  conflitos na Palestina, no Afeganistão, no Sudão e outros tantos do mesmo tipo. Filmado em preto-e-branco, com atores argelinos e franceses desconhecidos, recriando cenas e figuras históricas em locais de batalhas reais com técnica utilizada pelos cineastas neo-realistas, o diretor italiano Gillo Pontecorvo nos induz a pensar que se trata de um documentário.

A Batalha de Argel retrata os conflitos em Argel (1954-1957) entre a FLN (Frente de Libertação Nacional) e o exército francês. A primeira parte do filme mostra a campanha de terror desencadeada pela FLN contra o domínio colonial francês em torno do personagem Ali La Pointe, mostrando sua gradual conversão à guerrilha urbana. Já a segunda metade focaliza a reação do exército francês, que consiste principalmente em uma campanha de tortura e assassinatos comandados pelo coronel Mathieu. As ações terroristas vão se intensificando e ampliando seus alvos à medida que a repressão se torna mais eficiente, passando dos assassinatos de policiais às bombas em restaurantes, bares e clubes frequentados por jovens franceses. Mas igualmente ilustrativas são as imagens da repressão colonial, do racismo francês e do desprezo pelos árabes isolados na Casbah (bairro popular da capital argelina).

O filme não idealiza terroristas, não demoniza os franceses, nem exalta a violência em nome de algum tipo de revolução ou justificativa de qualquer ordem; em vez disso, o diretor examina a fundo os motivos, justificativas e contradições de todos os beligerantes. Os combatentes não escolhem seus alvos, ambos os lados se atacam indiscriminadamente e fornecem argumentos racionais para provar que estão no lado justo. Não há heróis nem vítimas inocentes. As crianças são cúmplices dos atentados, as mulheres plantam bombas em bares, os franceses atiram nas multidões, soldados brutalizam seus prisioneiros e o exército arrasa edifícios, matando civis inocentes.

Ali La Pointe encarna a figura do oponente irascível, ladrão e cafetão. É recrutado pela FLN e torna-se um guerrilheiro profissional, um líder revolucionário. Seu olhar ameaçador revela o próprio sofrimento e cólera dos árabes oprimidos diariamente pelos pieds-noirs (que, em francês, significa, literalmente, “pés-negros” e é um termo usado para descrever a população francesa que vivia na Argélia e que se repatriou na França depois de 1962, ano em que a Argélia se tornou independente).

O personagem procura expulsar a ocupação a todo custo, disposto a matar ou mesmo morrer pela causa. É isso que faz com que o seu destino seja trágico, culminando com sua morte (suicídio?), diferentemente do militante marxista El-hadi Jaffar, que negocia a rendição preservando sua vida.

Já a figura do coronel Mathieu foi inspirada na vida do general Massu, considerado pelos soldados franceses a personificação da tradição militar francesa. Herói militar da Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial, que também esteve presente na derrota da França na Indochina, Massu, em 1971, publica o livro A Batalha de Argel, que ficou proibido durante muitos anos na França. Nele, justificava a tortura como “uma cruel necessidade”. Dizia Massu: “Penso que, na maioria dos casos, os militares franceses foram obrigados a usá-la para vencer o terrorismo”.

3. Blow-up, de Michelangelo Antonioni — O Rato Cinéfilo

Único e surpreendente sucesso comercial de Antonioni, e o primeiro realizado fora de Itália, Blow-Up é um dos filmes que melhor retratam a Swinging London dos anos 60. Muito embora pudesse ter sido rodado em Paris ou Nova Iorque, a capital inglesa teve a preferência do realizador italiano devido à nova mentalidade instalada e que revolucionou todo um comportamento e estilo de vida. Antonioni deixou-se imergir voluntariamente na cena londrina, com as suas cores pop, música e liberdade sexual. No entanto, e apesar da modernidade que envolvia Blow-Up, toda a ambiguidade do universo de Antonioni se encontrava presente até ao mais ínfimo dos pormenores – a incomunicabilidade e impossibilidade de relações entre as pessoas ou a alienação no seio de uma sociedade de consumo prolongavam as ideias que o mestre italiano já nos dera a conhecer nos seus filmes precedentes.

Thomas (David Hemmings) é um jovem fotógrafo que trabalha no universo da moda. Ele capta casualmente algumas imagens num parque londrino. Mais tarde, durante o processo de revelação do rolo e espicaçado pela insistência da mulher retratada que quer a todo o custo reaver os originais da película, Thomas percebe que testemunhou, sem querer, um assassinato. Este fio de intriga, vagamente policial, poderia conduzir facilmente a um thriller como tantos outros. Mas não nas mãos de Antonioni.

De início não se vê na fotografia mais que uma mancha difusa e amorfa; aumentando-a, distingue-se uma figura que bem poderia ser humana; um aumento maior apresentará uma tonalidade diversa. Isto é tudo. Quanto mais nos aproximamos do mistério que tínhamos impressão de dominar, mais nos desviamos e começamos a recusar compreendê-lo. E assim por diante, até chegarmos a duvidar da própria realidade das coisas e dos seres.

4. Fahrenheit 451, de François Truffaut — De Mattar

O filme é baseado no mau romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, publicado em 1953. Montag (Oskar Werner) é um bombeiro cuja função é queimar livros, proibidos na sociedade do futuro. Sua esposa, Linda, é fútil e superficial, e presta mais atenção na televisão “interativa” do que no marido. Influenciado por sua vizinha Clarisse (o oposto de Linda, mas representada pela mesma atriz, Julie Christie), ele começa a guardar e ler alguns livros.

Uma cena marcante do filme: uma mulher recusa-se a sair de sua casa e é queimada junto com seus livros, sendo que ela mesma acende um fósforo e inicia a fogueira. Ao se apaixonar pela leitura, Montag decide sair da corporação, mas seu último serviço é em sua própria casa, pois fora denunciado por sua esposa Linda. Durante o serviço, ele queima seu chefe, Capitão Beatty, e foge. Refugia-se no local onde outras pessoas que leem se refugiam, representando personagens e decorando os livros, antes de queimá-los. O livro que ele começa a memorizar: Contos de mistério e imaginação, de Edgar Alan Poe.

Terezinha Elisabeth da Silva escreve:

O clima lúgubre e opressivo daquela sociedade é pintado com cores frias e pálidas, contrastadas com a única cor quente do filme: o vermelho do fogo e das viaturas dos bombeiros. Ritmo lento, cenários áridos e sem charme e diálogos escassos completam o panorama melancólico da obra. Com esses elementos, Truffaut impõe uma atmosfera pesada ao tempo de Fahrenheit, um tempo sem alternativas e, por isso mesmo, deprimente.

O título: na escala Fahrenheit, 451 graus (233 Celsius) é a temperatura a partir da qual o fogo queima o papel.

5. Persona (Quando duas mulheres pecam), de Ingmar Bergman — Clube do Filme

“Tudo o que se disser sobre Persona pode ser contradito, o oposto também será verdade”, palavras do escritor inglês Peter Cowie. Para o crítico americano John Simon, Persona “é o filme mais difícil de todos os tempos”. A crítica de arte Susan Sontag, por sua vez, foi categórica ao afirmar que Persona era o melhor filme da história do cinema. Há quase cinco décadas, a cultuada obra-prima de Ingmar Bergman vem exercendo um verdadeiro fascínio em gerações e gerações de cinéfilos e especialistas. Presente em inúmeras listas de melhores filmes do cinema (Sight and Sound, Empire, British Film Institute, New York Times, para citar algumas), Persona é constantemente apontado como a mais primorosa realização de Bergman no cinema, algo considerável se levarmos em conta a brilhante filmografia do diretor.

Persona conta a história de Elizabet (Liv Ullmann), uma atriz que para de falar repentinamente em meio a uma apresentação da tragédia Electra, entrando num estado de próximo ao catatônico. Nenhuma explicação física ou neurológica é encontrada para a crise de Elizabet. Internada em um hospital, ela é posta sob os cuidados da jovem enfermeira Alma (Bibi Andersson). Após algum tempo de internação, a médica de Elizabet sugere que esta passe uma temporada em sua casa de praia, ainda sob os cuidados de Alma. Isoladas do resto do mundo, as duas mulheres vão se tornando cada vez mais próximas. Alma encontra na emudecida Elizabet uma perfeita ouvinte e lhe conta os seus mais íntimos segredos, como uma orgia praticada com dois jovens adolescentes e uma amiga numa praia deserta e um subsequente aborto. Após ler uma carta comprometedora de Elizabet, Alma começa a perder o controle sobre si mesma, sentindo-se extremamente ligada à atriz e, ao mesmo tempo, oprimida pelo seu silêncio. Gradualmente, a persona de Elizabet toma conta da enfermeira e as identidades das mulheres parecem se fundir em uma só.

O filme se inicia por um intrigante prelúdio em que vemos uma série de imagens de duração variável (algumas que duram o tempo de um piscar de olhos, como aquela que mostra um pênis ereto). Essa sequência inicial consiste em uma justaposição de imagens heterogêneas, que lembra o experimentalismo das vanguardas modernistas e o surrealismo. Bergman faz diversas alusões ao próprio cinema, aos equipamentos, às suas primeiras formas, aos filmes mudos. A imagem da fita em movimento, dos aparelhos cinematográficos ou da fita que se deteriora intervém diversas vezes ao longo dessa primeira sequência e de maneira pontual no resto do filme. Existe algo de hipnótico na sequência de abertura que se deve muito ao atrevimento da montagem e a utilização poética de imagens impactantes. Ao final do filme, Bergman introduz novamente a imagem de uma câmera (manuseadas por Nykvist e o diretor), o que confere uma forma cíclica ao filme.

Persona é uma coleção de momentos antológicos. Uma das sequências inesquecíveis do filme é aquela em que Alma relata sua aventura sexual com um garoto, o momento de maior felicidade e gozo da vida da personagem. Certamente, o monólogo de Alma corresponde a um dos momentos mais eróticos da história do cinema. O diretor se dispensa de representar o ato sexual visualmente, o que poderia ser feito através de um flashback. O erotismo da cena é fruto do poder de evocação do ousado texto de Bergman e da maneira envolvente com que Bibi Anderson o declama. Para Pauline Kael, essa sequência corresponde a “um dos raros momentos verdadeiramente eróticos do cinema”. Outra cena brilhante do filme é aquela em que Elizabet entra no quarto de Alma no meio da noite. A lindíssima fotografia do genial Sven Nykvist confere uma atmosfera fantasmagórica à cena (sonho? realidade?). O instante em que as duas mulheres olham para si mesmas, como se estivessem diante de um espelho, enquanto trocam carícias, é uma das imagens mais marcantes da filmografia de Bergman.

Por fim, é inevitável não mencionar a escolha de Bergman de repetir o monólogo de Alma sobre o filho de Elizabet, uma vez com a câmera focalizando o rosto de uma, depois o da outra. O texto é exatamente o mesmo, assim como a montagem. Bergman parece querer mostrar a mesma história contada pelas duas mulheres, ainda que a voz seja só a de Alma (já que Elizabet não fala). Essa sequência mostra a união das duas mulheres e não por acaso ela termina pela colagem do rosto das duas atrizes, uma imagem impressionante que revela o quanto as identidades das duas se tornaram uma só.

6. Três Homens em Conflito (O Bom, o Mau e o Feio), de Sergio Leone — Cine Indiscreto

O filme focaliza três personagens: Blondie (Clint Eastwood) é o bom, Olhos de Anjo (Lee Van Cleef) é o mau e Tuco (Eli Wallach) é o feio (do nome original, The good, the bad and the ugly). A história dos três se junta porque estão atrás de duzentos mil dólares em ouro, uma fortuna na época.

Em Três Homens em Conflito, Leone constrói cuidadosamente cada imagem, como se estivesse pintando um grande quadro. Leone se mostra excepcionalmente criativo para construir longas tomadas sem cortes, criando tensão e atmosfera a partir da contraposição de tomadas panorâmicas de beleza tensa e dramática, na maioria das vezes paisagens com personagens minúsculos e close-ups de rostos rígidos e queimados pelo sol que revelam muito mais do que os olhos dos personagens. Esse talento transforma o filme em uma verdadeira experiência de imagens e sons inesquecíveis.

Ao contrário da maioria do gênero, os personagens de Leone são sujos, feios e parecem sangrar de verdade. Os protagonistas falam pouco, mas seus gestos e olhares dizem tudo.

Nos faroestes de Leone, os personagens não costumam atirar pra tudo quanto é lado. O diretor construía um duelo longo e sua grande preparação consiste em minutos de espera pelo primeiro disparo. Antes do revólver disparar, os personagens se analisam por inteiro e o silêncio só não toma conta do filme graças à fenomenal trilha sonora de Ennio Morricone, que ganha intensidade na medida em que começam cortes rápidos de um rosto para outro, capturando cada olhar tenso e cada mão buscando o revólver.

No começo do filme é revelado quem é o bom, o mau e o feio, mas com o desenrolar da trama percebemos que todos são bons, maus e feios… Descobrimos que, apesar de trambiqueiro e assassino, o homem sem nome guarda alguma bondade dentro de seu coração, como na cena em que o mesmo mostra uma certa compaixão por um combatente que está morrendo. A ganância pelo ouro revela o pior de cada um, mas comparados ao horror da Guerra Civil, os três são mocinhos.

Da abertura ao primeiro diálogo, temos cerca de 10 minutos de silêncio. Nenhuma palavra é ouvida. É a criatividade de Leone construindo uma narrativa baseada apenas em imagem, som e música. Outra cena que destaca o talento de Leone é quando o feio corre pelas lápides ao som de The Ecstasy of Gold, de Ennio Morricone. É simplesmente fantástico o efeito provocado. Uma viagem ofegante dos limites do oeste ao ápice da violência.

O filme é dispensa palavras, muitas vezes um pequeno desvio de câmera revela uma nova e surpreendente perspectiva. Outra técnica usada no filme é que os personagens não vêem (assim como nós) o que está fora do enquadramento. Assim a todo momento eles são surpreendidos por tiros ou balas de canhões que, normalmente, seriam vistas ao lado.

Uma obra prima revolucionária, que é, com grande estilo, homenageada por grandes cineastas da atualidade principalmente por Tarantino. Nesse filme testemunhamos o bom gosto, a inventividade e o controle de Leone sobre a narrativa.

 

Cena de Fahrenheit 451 (1966), clássico de François Truffaut

Cena de Fahrenheit 451 (1966), clássico de François Truffaut

Com Julie Christie e Oskar Werner. Baseado no romance homônimo de Ray Bradbury (1920-2012) que apresenta um futuro onde todos os livros são proibidos, opiniões próprias são consideradas antissociais e hedonistas, e o pensamento crítico é suprimido. O personagem central, Montag (Werner), trabalha como “bombeiro” (o que na história significa “incendiário de livros”). O número 451 é a temperatura (em graus Fahrenheit) da queima do papel, equivalente a 233 graus Celsius.

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Fonte das imagens: o blog O homem que sabia demasiado.

Dois tópicos cinematográficos

AUTO-AJUDA ENTRE SEMIDEUSES E A CAIXINHA BERGMAN. Tenho desmedida admiração por Ingmar Bergman e Johann Sebastian Bach. O que não sabia, até anos atrás, era da admiração que Bergman nutria pelo alemão. Nos livros do diretor sueco, há referências diretas a Bach. Não são observações triviais ou meramente elogiosas, são observações de profundo conhecedor, de alguém que estudou inclusive o complexo simbolismo numérico que perpassa várias obras.

Ele diz ter utilizado a música de Bach nas cenas mais importantes de seus filmes ou, pelo menos, naquelas em que achava que a atenção do espectador pudesse ser dividida com a música. A escolha era quase sempre entre Bach ou o silêncio. No livro “Lanterna Mágica”, Bergman transcreve uma longa conversa que teve com o ator Erland Josephson. Nela, nos revela que, nos momentos de maior desespero, costuma contar para si mesmo uma história vivida por Bach.

Johann Sebastian havia feito uma longa viagem de trabalho e ficara dois meses fora. Ao retornar, soube que sua mulher Maria Barbara e dois de seus filhos haviam falecido. Dias depois, profundamente triste, Bach limitou-se a escrever no alto de uma partitura a frase que serve para consolar Bergman: Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim.

Bergman escreve em A Lanterna Mágica:

Eu também tenho vivido toda a minha vida com isto a que Bach chama “a sua alegria”. Ela tem-me ajudado em muitas crises e depressões, tem-me sido tão fiel quanto meu coração. Às vezes é até excessiva, difícil de dominar, mas nunca se mostrou inimiga ou destrutiva. Bach chamou de alegria ao seu estado de alma, uma alegria-dádiva de Deus. Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim, repito no meu íntimo.

Às vezes eu, o limitado e ateu — tal como Bergman — Milton Ribeiro, repito esta frase. Ela me emociona, me acalma e me faz pensar que minha alegria ainda está ali comigo, tem de estar. É um grito infantil que reconheço facilmente e que ainda não me abandonou.

Deve ter sido um íntimo grito infantil o que bradei quando vi uma caixa com 4 filmes de Bergman à venda na videolocadora. Fiquei louco e arrematei O Sétimo Selo, Morangos Silvestres, A Fonte da Donzela e Gritos e Sussurros. São filmes que conheço quase cena a cena. Só não entendo uma coisa: por que a caixa traz 3 filmes do final da década de 50 e um filme de 71? Por que esta confusão? Ao final dos 50, Bergman fez 5 filmes de enfiada que são a maior seqüência que um cineasta já realizou:

1955: Sorrisos de uma Noite de Verão,
1956: O Sétimo Selo,
1957: Morangos Silvestres,
1958: O Rosto e
1959: A Fonte da Donzela.

Então, por que tirar 2 e substituí-los por Gritos e Sussurros? Gritos está entre os meus 10 mais de todos os tempos, mas qual a razão desta falta de critério? Poderiam ter feito outra caixa com, por exemplo:

Gritos e Sussurros (1971),
O Ovo da Serpente (1976),
Sonata de Outono (1977),
Da Vida das Marionetes (1979),
Fanny e Alexander (1981) e
Infiel (que foi dirigido por Liv Ullmann mas possui texto, cor e pedigree deste grupo de filmes bergmanianos).

E outra com os muito citados e pouco vistos:

Através do Espelho (1961),
O Silêncio (1962),
Persona (1965),
A Hora do Lobo (1966) e
A Paixão de Ana (1968).

Chega de delírios!

INDICAÇÃO DE FILME BOM. Quero elogiar um tremendo filme. Trata-se Reconstrução de um Amor, criativa tradução de Reconstruction, filme dinamarquês de 2003, dirigido por Cristoffer Boe. A sinopse do filme nos leva a pensar em algo já visto: “Homem e mulher se conhecem e tentam se desvencilhar de seus relacionamentos para ficarem juntos.” O inédito do filme são os artifícios utilizados na montagem. Não pretendo estragar o prazer de ninguém, mas prestem atenção à voz do narrador quando ele diz: “Tudo aqui é montagem, mas mesmo assim dói”. Alguns comentaristas compararam o papel do escritor que há no filme (representado pelo ator Krister Henriksson) com alguns personagens de Bergman. Pode ser… É, talvez não tenha sido tão casual o fato de eu ter lembrado tanto do velho Ingmar nos últimos dias…