Alguma coisa sobre Mozart

wolfgang-amadeus-mozartWolfgang Amadeus Mozart nasceu em 27 de janeiro de 1756 em Salzburgo que, na época, tinha por volta de 10.000 habitantes. Salzburgo localiza-se numa das rotas em que se entrecruzavam os trajetos germânicos e italianos. Por isso, recebia influências dos dois lados e isto significa muito em termos de Mozart, um compositor que se estabeleceu e uniu as duas maiores tradições musicais europeias. O menino Wolfgang nasceu em uma família unida e amorosa. Seu pai, Leopold, era compositor. Tratava-se de uma criança emotiva e terna; queria aprender tudo, mostrando predileção pela matemática e pela música. Seu maior passatempo era o de inventar e contar histórias para si mesmo. Ao seis anos, ao começar sua educação musical em família, logo demonstrou que podia executar e compor pequenas peças ao cravo da mesma forma com que inventava histórias. O mundo perdeu um contador de histórias e ganhou um músico imenso a também nos contar histórias. A família não deu muita atenção ao compositor, mas resolveu que o pequeno virtuose poderia gerar dinheiro, tornando-se uma glória tanto familiar quanto para a corte do príncipe-arcebispo de Salzburgo. Sempre vigiado pelo pai e tendo um porto seguro em sua cidade natal, o menino-prodígio viajará loucamente (ver as viagens que fez aos 10 anos, em 1766, por exemplo) dando concertos por toda a Europa.

Para que os menos musicais pudessem reconhecer o virtuosismo do garoto, faziam-no realizar bobagens de cão amestrado, tal como tocar por cima de um pano que cobria o teclado ou com os olhos vendados. Era afagado, bem pago e sentava-se no colo de príncipes e arquiduquesas. Porém, isto foi antes dos dois grandes encontros. O primeiro encontro que mudaria Mozart foi com Johann Christian Bach, filho de Johann Sebastian e criador do estilo que foi inteiramente adotado e hiperdesenvolvido por Mozart. Mozart ouviu-o tocar em Londres e a impressão ficou-lhe para sempre. Mesmo. Se algum desavisado ouve casualmente alguma obra de Johann Christian, diz na hora: “É Mozart”. Ouvindo com mais atenção, sentirá tratar-se de um Mozart fraquinho, sem aquela imaginação pululante. Como Johann Christian fora o “Bach de Milão” antes de ser “o de Londres”, trouxe modelos italianos ao compositor. A face germânica de Mozart parace ter vindo de seu amado Haydn, a quem dedicou vários quartetos de cordas e a quem admirava desmedidamente. Tal admiração era recíproca e tão famosa e bem humorada que há bom anedotário a respeito.

O que as pessoas normalmente não sabem é que Mozart não foi um compositor tão precoce. Foi um virtuose precoce, mas perderia, em termos de precocidade para, por exemplo, Mendelssohn. Não há, na obra de Mozart pré-1781, algo como o bom Concerto para Violino em ré menor de Mendelssohn, composto aos 14 anos de idade. Poucas obras-primas mozartianas foram compostas antes disso. Suas primeiras obras de mestre foram o Divertimento K. 287, o Concerto para Flauta e Harpa K. 299, a Sinfonia Concertante para Violino e Viola K. 364, a Gran Partita, para conjunto de sopros K. 361, a Missa da Coroação K. 317 e a estranhíssima e espetacular Posthorn-Serenade, K. 320; e estas foram todas compostas todas depois de Mozart completar 20 anos. Vejam como a precocidade tem pouco a ver com as alturas que podem ser alcançadas na maturidade: afinal, poucos ousariam ir além nesta comparação entre as obras completas do genial Mozart e do muito competente Mendelssohn…

Em 1781, aos 25 anos, Mozart explodiu. Nestes 10 anos e meio – Wolfgang morreu aos 35 anos – escreveu quase tudo o que ouvimos hoje e, puxa vida, não é pouca coisa. São dezenas de óperas, concertos, sinfonias e música de câmara de melhor qualidade. É algo inacreditável e é realmente complicado apontar uma ou outra deixando tantas obras de lado.

Há um fato que me deixa contrariado na abordagem que as pessoas fazem a ele: muitos falam de Mozart como de um compositor sempre gentil e delicado, representando-o como um lago tranquilo e eternamente ensolarado onde os patinhos nadam alegres, sem sequer desejar bicar e comer os peixes que passam despreocupados por baixo de suas barrigas sempre cheias e felizes. Também estes peixes não desejam nada, apenas aspiram a uma vida feliz entre seus amigos patinhos e os peixes menores, tão lindinhos, que estão ali para o deleite de todos e assim por diante… O mesmo valeria para sua carreira, onde ele seria uma eterna criança, sempre ingênua e injustiçada, sofrendo nas mãos de poderosos e de colegas invejosos. Não é nada disso. Talvez seja necessária alguma vivência para identificar, mas há em Mozart todo um mundo de expressões sem as quais seria impossível a sua música adequar-se tão bem aos sentimentos pungentes exigidos por um Don Giovanni ou por La Clemenza di Tito e à comicidade das óperas bufas O Rapto do Serralho, As Bodas de Fígaro, A Flauta Mágica e Così fan tutte. E há toda uma música de concerto e obras de câmara autenticamente agressivas e desesperadas. É ocioso pensar que quem alcança expressar todos os matizes dos sentimentos humanos seja um palhaço bobinho e talentoso. Mozart tinha experiência de tudo o que produzia. Não era infantil, não era uma porcelana ou um santo intocável, era alguém deste mundo.

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Mas por que Mozart morreu na miséria? Ora, porque tornou-se um artista absolutamente fiel a si mesmo, dando as costas ao gosto vigente na Viena de seu tempo. A partir de 1784, vieram uma sucessão de obras-primas que fez o conservador público vienense torcer seus nobres narizes. Os Concertos para piano em fá, em ré menor K. 466 e em dó maior K. 467, o em mi bemol K. 482, em lá maior K. 488, e em dó menor K. 491, o em dó maior K. 503, a Sinfonia Praga K. 543, os dois Quartetos com piano K. 478 e 493, os dois Quintetos para Cordas K. 515 e 516, o trio Kegelstatt K. 498 e a Missa em dó menor K. 427, assinalaram em dois anos a plena maturidade do Mozart-compositor que teve como resposta a hostilidade de seu público. José II, por ocasião da representação de O Rapto do Serralho (Die Entführung aus dem Serail) observou: “Notas demais, meu caro Mozart”; e obteve a resposta que nunca sairia da boca de um cortesão, mas sim de um artista absolutamente seguro de sua obra: “Nenhuma só a mais, Majestade”.

O público passou a ignorá-lo e apenas retornou ao final de 1791, dois meses antes de sua morte, quando da estréia do espetacular sucesso de A Fláuta Mágica (Die Zauberflöte). Notem que esta ópera estreou em um pequeno teatro de bairro popular em Viena com o nome de Mozart bem pequeno, para não chamar a atenção – aquele mesmo Mozart que já fora o homem mais famoso de Viena teve seu nome mostrado em letras pequenas, sob o nome garrafal do libretista Schikaneder. O sucesso foi avassalador, mas tardio. Restou-lhe tempo apenas para terminar o belíssimo Concerto para Clarinete, K. 622 e de, ironicamente, tentar terminar um Réquiem K. 626, que não escrevia para si mesmo — conforme as lendas românticas gostam de mentir –, mas por encomenda um certo Conde Franz von Walsegg, cujo contrato nada tem de misterioso e que pode ser examinado em Salzburgo. Porém, sabemos que o destino infeliz deste gênio é um convite aos que gostam de romancear tudo. Eu também gosto, mas só quando o assunto é ficção…

Espero com este post ter feito uma pequena incursão amorosa e boêmia na vida e obra de Mozart. Além da memória, utilizei-me de alguns livros e CDs, principalmente da fenomenal História da Música Ocidental de Jean & Brigitte Massin.

Observação final: Este modesto post é dedicado ao maior mozartiano que conheci. É dedicado a meu pai, morto em 1993. Ele fez com que a trilha sonora de minha infância fossem os concertos para piano de Mozart, suas serenatas para sopros e a Posthorn. Conheço tudinho, nota por nota. Ele nunca parava de falar em Mozart, Beethoven e Chopin — Mozart em primeiríssimo lugar, sempre –, assim como hoje posso passar horas falando Bach, Bartók, Beethoven e Brahms. (Não me provoquem!).

(Quando mostraram o Quarteto das Dissonâncias para Haydn, ele disse que era um equívoco, que aquilo não podia ser. Então, lhe disseram: “Mas é de Mozart”. E o velho respondeu: “Bem, neste caso, trata-se de um erro de minha parte. Eu é que não entendi.”).

A mais feliz das músicas (mesmo)

Joseph_Haydn,_målning_av_Thomas_Hardy_från_1792O pai da sinfonia. O sentimento geral é de que Haydn poderia ser tão bom quanto Mozart se não tivesse sido tão incuravelmente feliz durante a vida. Esse espírito de contentamento insinuou-se por toda sua música e diluiu-a. As últimas sinfonias foram compostas em Londres para ganhar dinheiro vivo e a sombra do contrato que pairava sobre ele acrescentou-lhe aquela pitadinha de desgraça que tanto lhe faltara antes. Talvez somente um homem verdadeiramente sem coração poderia ter composto algo tão assombrosamente feliz quanto o final da Sinfonia Nº 88.

Peter Gammond

E não esqueça.

Uma palestra simples sobre a evolução da música de Beethoven

Uma palestra simples sobre a evolução da música de Beethoven

No dia 16 de dezembro, estive no palco do StudioClio falando sobre Ludwig van Beethoven. Houve um momento em que André Carrara tocou a Patética. Fiquei olhando de frente para um público ouvinte de música pela primeira vez na minha vida. Puro cinema. Todos voltados para mim, mas atentos ao pianista (foto ao final), que é excelente. Quando a música tinha ritmo, as pessoas balançavam a cabeça, mexiam os pés, participando silenciosamente da função. Abandonados a si mesmos, pensando que não eram observados, quase todos se movimentavam. No belo adágio, alguns fecharam os olhos, enquanto outros fizeram caras embevecidas, cada um de seu jeito. Lindo. Aquele mal-humorado do Beethoven deve ter gostado. Agradeço ao Francisco Marshall pelo convite.

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Beethoven aos 13 anos
Beethoven aos 13 anos

Alguns compositores parecem ter nascido prontos, outros não. No primeiro grupo, por exemplo, estão Bach e Brahms, quem sabe Haydn. Bach parece ter nascido com voz própria e definitiva e as diferenças entre suas obras mais parecem resultantes de suas funções nos diversos empregos que ocupou do que de uma evolução de estilo. Na época de Bach não havia a noção da construção de uma obra pessoal para a posteridade. Brahms já tinha esta noção, mas ele também se inclui facilmente no grupo dos “nascidos prontos”. Ouvindo-se os primeiros opus de Brahms, o grande compositor já é facilmente reconhecível. Haydn é um caso semelhante. É complicado reconhecer obras suas como “da juventude” ou “da maturidade”. Apenas suas últimas sinfonias são diferentes. Os tempos do emprego estável com os Esterházy tinham acabado e elas foram compostas em Londres para ganhar dinheiro vivo. A sombra do contrato que pairava sobre sua cabeça acrescentou tensão e aquela possibilidade de fracasso que lhe faltara antes.

Ter nascido e morrido com a mesma cara — ou, melhor dizendo, com o mesmo estilo – não representa mérito ou demérito. Muitos dos grandes compositores evoluíram profunda e espetacularmente. Mozart e Beethoven, por exemplo, foram criadores que alteraram muito suas linguagens ao longo dos anos. Mozart menos, certamente por ter vivido pouco. Beethoven alterou-se de tal forma que sua evolução acabou por ser a própria transição da música do período clássico para o romantismo. Isto deu-se certamente por uma necessidade interna, mas fatores externos também os influenciaram.

Por alguma razão, o gráfico abaixo ignora Bach, mas no restante ele nos serve.

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Haydn, Mozart e Beethoven são considerados os maiores compositores do período clássico. Haydn viveu 77 anos, Mozart, 35, Beethoven, 57.

Não gosto muito das classificações por escolas, mas, grosso modo, pode-se dizer que o barroco começa em 1600 (data da invenção da ópera) e acaba em 1750, quando Bach morre. O período clássico vai daí até aproximadamente 1810 (quando inicia o segundo período da obra beethoveniana). Já o Romântico inicia no segundo período de Beethoven e vai até 1900, trocado pelo século XX.

Enquanto isso, Beethoven, que nasceu depois dos dois, começa criando obras muito semelhantes às de Mozart, mas evolui de tal modo que funda o romantismo musical. O ponto de partida do Romantismo é normalmente considerado a composição da Sinfonia Nº 3, Eroica. Talvez Mozart o tivesse acompanhado nesta aventura de transformação, mas sua morte interrompeu a jornada.

Ouçamos um trecho da Sonata Nº 1, Op. 2 de Beethoven. Notem como parece Mozart.

Beethoven foi fundamental na transição do clássico para o romântico. Notem que tal transição não se deveu a uma arbitrariedade histórica como a virada de um século nem à morte de um compositor, mas a uma alteração de estilo, ao desenvolvimento da linguagem de um criador. Claro que a posição cronológica favoreceu-o sobremaneira, mas o compositor contribuiu. Ele era um campo fertilíssimo.

Ludwig van Beethoven nasceu há 250 anos, em 17 de dezembro de 1770, na cidade de Bonn, atual Alemanha. Seu sobrenome, porém, era de origem holandesa. Consta que é derivado da aldeia de Bettenhoven (que quer dizer “horta de beterrabas”), no interior da Holanda. Apesar do sobrenome holandês, o avô paterno de Beethoven era originário de Antuérpia, na atual Bélgica. Ele era músico e emigrou para Bonn, local de nascimento de nosso biografado.

Beethoven em 1810
Beethoven em 1810

A vida de Ludwig van Beethoven (1770-1827) mostrou-se tão adequada a romances e filmes que as lendas em torno de sua figura foram se criando de forma indiscriminada, às vezes paradoxal. Sua surdez, por exemplo, contribuiu muito para popularizá-lo e para que fosse lamentado. O escritor Victor Hugo dizia que sua música era a de “Um deus cego que criava o Sol”, mas quem o conhecesse talvez reduzisse este tom de piedade.

Beethoven era uma pessoa absolutamente segura de seu talento – não mentiríamos se o chamássemos de arrogante – e tinha a perfeita noção de que estava criando um conjunto espetacular de obras musicais. Sabia-se imortal. A surdez representava uma tragédia muito mais do ponto de vista social, das relações amorosas e das de amizade, além, é claro, de prejudicar de forma definitiva sua carreira de grande pianista. Mas não era um obstáculo no plano da criação.

O problema começou a manifestar-se aos 26 anos de idade e aos 46 o compositor estava praticamente surdo. Por exemplo, ao final da primeira apresentação pública da 9ª Sinfonia, Beethoven permaneceu absorto na leitura da partitura e não percebeu que estava sendo ovacionado até que um amigo, tocando em seu braço, voltou sua atenção para o que acontecia na sala, onde a plateia o aplaudia em pé. Ou seja, aos 54 anos, época da composição da Nona, ele era totalmente surdo.

Com isso, não estou dizendo que ele não tenha sofrido com o progressivo ensurdecimento. Sofreu a ponto pensar em suicídio. Era 1802, Beethoven tinha 31 anos – idade com que Schubert morreu – e pensava em matar-se. Mas deixou a intenção apenas escrita em cartas. Ao que se sabe, nunca fez uma tentativa. Porém, se a fizesse e fosse bem-sucedido, talvez ainda assim estivéssemos falando dele.

Beethoven não era fácil. Em seus anos de aluno, ele utilizava harmonias que eram consideradas inadmissíveis. Quando lhe diziam que eram estranhas, perguntava de volta: “Quem as proibiu?”. Em 1792, quando Haydn visitou Bonn, foi apresentado a ele. Beethoven tinha 21 anos e mostrou algumas de suas obras a Haydn. Este, impressionado, propôs que o jovem se transferisse para Viena a fim de que pudesse ser seu aluno. No mesmo ano, Beethoven instalou-se em Viena, mas recebia aulas de forma irregular, pois Haydn estava no auge de sua carreira e tinha de sair frequentemente da cidade.

Beethoven logo ficou descontente devido a pouca dedicação de Haydn para com ele. Sabe-se que Haydn ensinou-lhe muito, apesar de considerá-lo um chato. Chamava-o de Sua Majestade. Assim, em 1794, Beethoven aproveitou-se de uma viagem de Haydn a Londres e procurou um novo mestre. A relação entre ele e o novo professor também não foi muito tranquila. Tanto que Albrechtsberger, depois de dispensado, proferiu uma daquelas frases que fazem a alegria dos biógrafos. Ele disse: “Não percam tempo com ele. Ele nada aprendeu e nada fará de bom”. Bem, assim é que se faz para entrar na história pela porta dos fundos…

Hoje, 250 anos depois, não temos a intenção de contar os casos em que fica comprovado que Beethoven era um brigão — procuremos ver sua postura por um lado mais indulgente: a de um sujeito orgulhoso, consciente do próprio valor e, em relação ao pobre Albrechtsberger, claramente superior.

Há um fato muito curioso na formação de Beethoven. Desde cedo ele teve uma noção muito clara daquilo que lhe faltava: faltava-lhe conhecer literatura. E ele, com entusiasmo, atirou-se à leitura de Homero, Shakespeare, Goethe e Schiller. Pensava que só assim – e tendo bons professores de composição – poderia ser o que tinha planejado para si: tornar-se o Tondichter da Alemanha, o poeta dos sons de seu país.

Ele queria ainda mais poesia do que isso…

As obras escritas antes de seus 30 anos obedeciam e também traíam seus mestres. Apesar de respeitar as estruturas aprendidas, já são claros os procedimentos expressivos que utilizaria nas fases seguintes – os temas curtos e afirmativos, os súbitos silêncios, o uso simultâneo de graves e agudos do teclado, a primazia do ritmo. O seu “classicismo vienense” era muito pessoal.

Um exemplo famoso de tema curto é o tema inicial da 5ª Sinfonia. Notem os gestos incríveis do maestro Masato Usuki. Agora, se algum de vocês puder me explicar como a orquestra entra junto depois do maestro mexer os braços daquele jeito… (Sim, sabemos, há um spalla para salvar tudo).

É tradicionalmente aceito dividir a vida artística de Beethoven em três fases. A primeira começa com a mudança para Viena, em 1792. Uma fase quase mozartiana. Nove anos depois, em 1801, Beethoven afirmou não estar satisfeito com o que compusera até então, decidindo tomar um “novo caminho”. Tudo parecia levá-lo ao épico e, dois anos depois, em 1803, surge um grande fruto desse “caminho”: a Sinfonia Nº 3, Eroica. Ela abre um verdadeiro ciclo épico. A Sinfonia era para ser dedicada a Napoleão Bonaparte, pois Beethoven admirava Napoleão e os ideais da Revolução Francesa. Porém, quando o corso autoproclamou-se Imperador da França em maio de 1804, Beethoven retirou a dedicatória de forma bastante característica… Foi até a mesa onde estava a sinfonia já pronta, pegou a primeira página e riscou o nome de Napoleão com tanta força que ficou um buraco no papel. É que ele apagara a referência ao novo Imperador com uma faca… E que música havia naquelas folhas!

O ciclo épico iniciado pela Eroica seguiu com obras verdadeiramente espantosas e originais, que cantavam a força da humanidade, a paixão pela liberdade e a vitória do espírito humano.

Vieram a Sinfonia Nº 5, a Nº 6, Pastoral, as sonatas Waldstein e Appassionata, o Concerto para Piano Nº 5, chamado Imperador, a Fantasia para piano, orquestra e coro. Eram músicas intensas, triunfantes, românticas, às vezes belicosas. Importante explicar o título Imperador do Concerto Nº 5 para piano e orquestra. O compositor jamais quis este apelido para o Concerto. Quem deu este nome foi o editor responsável pela publicação da partitura na Inglaterra. Este acreditou ser aquele um Concerto tão grandioso como nenhum outro e o chamou assim. O próprio Beethoven não gostou do apelido, mas isso de nada adiantou.

A época da morte de Haydn, em 1809, ainda dentro da primeira fase beethoveniana, foram anos de grande fertilidade criativa. As obras-primas brotavam de sua pena. Vieram também o Concerto para Piano nº 4, Op. 58; os Três Quartetos de Cordas, intitulados Razumovsky, em 1806; o Concerto para Violino, Op. 61 e a Sonata Patética.

Enquanto isso, a vida amorosa de Beethoven ia de mal a pior. Dono de uma personalidade apaixonada, sofria decepções em série. Um dos mais famosos casos foi o com Bettina Brentano, que fez uma extensa descrição do mestre em suas cartas. Resumidamente, ela o descreveu como “pequeno, moreno, marcado pela varicela, o que se chama de feio”. Porém, “tinha uma fronte nobremente modelada, parecendo ter trinta anos” – tinha quarenta – e vestia “andrajos com ar magnífico e imponente”.

“O incidente de Teplitz” em pintura de Carl Rohling
“O incidente de Teplitz” em pintura de Carl Rohling

Bettina apresentou-o a Goethe. Não deu nada certo. Em julho de 1812, Beethoven recebeu o convite para um encontro com o maior escritor de língua alemã. O encontro deu-se em Teplitz. Há algum tempo os dois se estudavam à distância: Goethe tinha grande admiração pela 5ª Sinfonia, “simplesmente espantosa e grandiosa” e Beethoven era interessado em literatura em geral e no mestre em especial. Em 1811, por exemplo, Beethoven tinha mandado para Goethe um exemplar da música que fizera para Egmont. Era esperado um encontro dos Titãs.

Porém, a possibilidade de uma amizade acabou muito rápido. O caso é conhecido como “O incidente de Teplitz” e ocorreu na época da composição da 7ª Sinfonia.

Os dois caminhavam de braço quando viram o Imperador do recém-fundado Império Austríaco, os duques e toda a corte caminhando em direção oposta. Bettina conta que Beethoven disse para Goethe ignorá-los, ele queria que os aristocratas abrissem caminho para eles. Goethe, discordou silenciosamente, deu um passo para o lado e tirou o chapéu para cumprimentar a família real, enquanto Beethoven passava decididamente no meio da corte, sem nem tirar o chapéu. Quando Goethe alcançou Beethoven, este lhe disse: “Eu esperei por você porque respeito seu trabalho, mas você demonstrou um apreço exagerado por estas pessoas”.

Em carta para a sua esposa, o escritor disse sobre Ludwig: “Seu talento me surpreendeu; no entanto, ele tem uma personalidade absolutamente incontrolável. Não está equivocado ao pensar no mundo como um local horrível, mas nada faz para torná-lo mais agradável para si e para os outros”. Enquanto isso, Beethoven escrevia para seu editor dizendo que “Goethe se encanta mais com a atmosfera da corte do que em ser um grande poeta”. Os dois nunca mais se encontraram. Anos depois, Beethoven mandou uma carta para Goethe. Não houve resposta.

Nesta época iniciava a segunda fase da produção de Beethoven. Ela já era reconhecido como o maior compositor de sua época. Então começou a fazer algumas bobagens. Entre 1813 e 17, passa por uma crise criativa. Talvez a progressiva surdez — ele começara a se comunicar com as pessoas por gestos ou por escrito –, ou a perda das esperanças matrimoniais, ou os problemas na tentativa de ganhar a custódia do sobrinho, fizeram com que ele sofresse uma crise criativa. Mas seguiu compondo: escreveu a pior das músicas em A Vitória de Wellington. “É uma estupidez”, admitiu, mas o público saudou o triunfalismo da obra. Era o músico nacional e tudo o que fizesse era adorado. A vaidade jogou-o em outras empreitadas mal sucedidas. Eram cantatas como Cristo no Monte das Oliveiras e a desconhecida Missa em Dó Maior, além de ciclos de canções que consistiam em músicas de circunstância que alcançavam o aplauso, mas que não permaneceram.

Agora, a tal A Vitória de Wellington. Vejam se isso parece Beethoven… Depois da introdução, parece que nasce um mau Handel romântico…

A sorte foi ele ter conhecido a Condessa Maria Erdödy, que preferia música de verdade. Foi esta grande e inspiradora amiga quem conseguiu retirá-lo da letargia e ele recomeçou, em 1818, a compor lentamente o que seriam, na minha opinião, suas maiores obras. À Condessa foram dedicadas as duas esplêndidas Sonatas para Violoncelo e Piano Op. 102.

A postura de ambos os amigos era de romantismo total. Uma das cartas da Condessa dirigidas a ele: “Nós, seres limitados de espírito ilimitado, nascemos para o sofrimento e para a alegria. Sendo que os mais destacados, como você, apropriam-se da alegria através do sofrimento”. Enquanto isso, um fato paralelo preocupava demais o compositor: a conquista de Viena por parte de Rossini. Desta época de recuperação criativa, temos o maravilhoso Trio Arquiduque, que marca o final da segunda fase beethoveniana.

E então começou a terceira fase, a mais vanguardista delas. Como dissemos, a partir de 1818, o compositor, aparentemente recuperado, passou a compor mais lentamente, mas com vigor renovado. Apesar do vanguardismo e das pessoas da época considerarem aquilo incompreensível, há obras muito populares nesta fase – não esqueçam que tal fase contém a ultra e justamente popular Sinfonia Nº 9 – , mas há também aquelas que, de tão perfeitas, serviram de base de apoio para um alto número de compositores que vieram depois. A irrepetível sequência de músicas perfeitas e revolucionárias começou com a Sonata para Piano, Op. 106, Hammerklavier. Beethoven teve que prestar explicações a seus contemporâneos, que não a entenderam, o que gerou mais um rosário de deliciosas respostas mal humoradas. “Não pensei no pianista quando a escrevi”. “Não gostam agora? Gostarão mais tarde. Não escrevo para vocês, escrevo para o futuro”.

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As sonatas seguintes, de Op. 109, 110 e 111, são inacreditáveis, considerando-se a época em que foram compostas. Porém, ouvindo-as hoje, são apenas belíssimas, assim como as Variações sobre um tema de Diabelli, onde uma valsa muito simples é desenvolvida e transformada até atingir alturas prodigiosas. A Sonata Op. 111 gerou um dos mais belos momentos da literatura de todos os tempos: a aula do Prof. Kretzschmar em Doutor Fausto, de Thomas Mann. E, até a morte de Beethoven, haveria mais obras para as quais os melômanos revirariam os olhos ao falarem delas — os últimos quartetos, por exemplo. Em meio à doenças e reclamações contra Rossini e à italianização do mundo, tais composições vieram uma a uma à tona e serviram como pedra fundamental para a música do futuro. Quando soube que os últimos quartetos tinham sido pessimamente acolhidos, repetiu, mais uma vez com razão: “Não são para vós, mas para as gerações futuras”.

Pois o futuro lhe abriria as portas como fez para poucos. No início do século XX, o escritor Romain Rolland acreditava ser o último beethoveniano. Não poderia estar mais errado. Bartók, Xenakis, Varèse, Shostakovich e Schnittke foram decisivamente influenciados. Além disso, Beethoven tornou-se o mais popular dos compositores eruditos, o elo perfeito para aqueles que raramente ouvem a música erudita pudessem adentrar em um novo mundo. Ludwig van tinha a admiração, por exemplo, de Alex DeLarge, personagem de A Laranja Mecânica; é utilizado por alunos de piano nas facilidades do primeiro movimento da Sonata ao Luar; também tem a admiração das pessoas que invadem praças ou salas de concerto para ouvirem o final da Nona Sinfonia. E conta com o assombro dos entendidos.

Como dissemos, no famoso capítulo VIII do Doutor Fausto, de Thomas Mann, o imaginário professor Kretzschmar dá uma aula sobre o tema “Porque Beethoven não escreveu o terceiro movimento da Sonata Op. 111”. A ideia da aula descrita por Mann nasceu quando um descuidado pianista contemporâneo de Beethoven perguntou sobre o motivo da inexistência do mesmo. A resposta do compositor foi típica: “Não tive tempo de escrever um!”. Mann explorou habilmente a história.

Pois o incrível – e Mann aparentemente não sabia disso — é que os musicólogos descobriram que havia um terceiro movimento para esta sonata. Em alguns manuscritos originais, há anotações: segundo movimento – Arietta; terceiro movimento – Presto. O Kretzschmar de Mann diz que a Arietta (o segundo movimento) seria um adeus. Trata-se de um tema com variações que dá ao ouvinte uma sensação muito íntima. Nas três primeiras variações, o tema – que segundo Kretzschmar seria um dim-da-da que poderia ser balbuciado distraidamente por um bebê — vai sendo cada vez mais movimentado: as notas vão se multiplicando e o ritmo começa a ser quebrado e animado até culminar na famosa terceira variação, muito comparada a um boogie-woogie, 100 anos antes disso existir.

Claro que a invenção dessa despedida foi uma das muitas liberdades poéticas tomadas pelo entusiasmado professor de Mann. Está bem, foi a última sonata para piano de Beethoven, porém após o Op. 111 ainda vieram outras obras importantes para piano, como as Variações Diabelli (Op.120) e as Bagatelas (Op.126), além, é claro, de todos os últimos quartetos. Ou seja, quando Beethoven escreveu o Op. 111, era um compositor em plena atividade e com vários projetos diferentes a desenvolver.

De 1816 até 1827, ano da sua morte, conseguiu compor cerca de 44 obras musicais. Ao morrer, a 26 de Março de 1827, estava trabalhando numa nova sinfonia, assim como projetava escrever um Réquiem. Ao contrário de Mozart, que foi enterrado anonimamente em uma vala comum, 20.000 cidadãos vienenses — Viena tinha 300.000 habitantes — foram ao funeral de Beethoven.

E, com efeito, o interesse pela obra de Beethoven mudou Viena. O historiador Paul Johnson diz que “Existia uma nova fé e Beethoven era o seu profeta. Não foi por acidente que, aproximadamente na mesma época, as novas casas de espetáculo recebiam fachadas parecidas com as dos templos, exaltando o novo status moral e cultural da sinfonia e da música de câmara.”

Em 1824, surge Sinfonia nº 9, Op.125, para muitos a sua obra-prima. Pela primeira vez na história da música, é inserida a voz humana num movimento de uma sinfonia. Os solistas e o coral exaltam de forma dionisíaca a fraternidade universal, começando pela aliança entre duas artes irmãs: a poesia e a música. O texto é uma adaptação do poema de Schiller, “Ode à Alegria”, feita pelo próprio Beethoven. E, bem, todos conhecem esta grande música que precede os quartetos finais.

Agora, uma referência moderna à Nona e a Beethoven, uma das tantas presentes no filme A Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick. Há muitas mais, basta lembrar do Nostalgia de Tarkóvsky e muitos outros filmes modernos que usam a Nona.

BeethovenOs anos finais de Beethoven foram dedicados quase que exclusivamente à composição de Quartetos de Cordas. Foi nesse meio que ele produziu algumas de suas mais profundas e visionárias obras: os Op. 127, 130, 131, 132, 135 e a Grande Fuga, Op. 133, todos encomendados pelo príncipe Galitzin, que pagou 50 ducados por cada um. Pagou mesmo? Beethoven recebeu o pagamento apenas do primeiro quarteto. Embora o príncipe russo jamais tivesse negado a dívida, os quartetos restantes só foram pagos aos herdeiros de Beethoven em 1852, 25 anos após a morte do compositor.

Na opinião de Beethoven, o quarteto — que fora inventado por Haydn — era a manifestação mais alta da arte musical. E o compositor utilizou-o como veículo de expressão de todo um projeto de renovação de sua música.

A obra sinfônica de Beethoven é bem mais acessível ao público, mais do que a pianística e muito mais do que os quartetos. Pode-se dizer que os quartetos de Beethoven da primeira e segunda fases fossem sinfonias reduzidas para poucos instrumentos, mas, ouvindo os da última fase, a ideia de orquestração não passa por nossa cabeça. Aqui, ele se desliga estilisticamente da sinfonia, dando lugar a um intimismo raramente alcançado e apenas possível camaristicamente.

O Quarteto Op. 132 é absolutamente pessoal, como pode ser demonstrado pelas anotações na partitura. Beethoven passara um inverno sem complicações de saúde, mas a primavera trouxera-lhe moléstias pulmonares – ele cuspia sangue –, digestivas e intestinais que o debilitaram muito, ao ponto de deixá-lo de cama por vários dias. Durante esta doença, Beethoven trabalhava no Op. 132. Sua situação foi comentada musicalmente. Na partitura, há anotações como “ação de graças de um convalescente”, “sentindo novas forças” ou “Tu (referindo-se a deus) me devolveste a vontade de viver”. Trata-se de um caso único na história da música — um compositor expor problemas tão terrenos uma cpomposoção. Normalmente, quando se fala na dor que uma música representa, em geral nos referimos a dores da alma, dificilmente a sofrimentos corporais.

Dores e recuperação: de 21`30 até 24`30. 

E finaliza com uma valsa fantástica, de pura alegria: 39`01

Essa é a natureza do conflito captado pelo Op. 132.

O Op. 130 foi o último a ser escrito e também tem história curiosa. Para encerrar grandiosamente a encomenda do príncipe Galitzin, Beethoven escreveu uma Grande Fuga. Depois, ele aceitou a sugestão de seu editor de separar esta fuga do Quarteto Op. 130, tornando-a uma peça independente. Os motivos teriam sido comerciais, eles lucrariam mais dividindo o quarteto em dois. Ainda mais que o russo não pagava…

Um adjetivo acaba associado à Große Fuge Op. 133 (1826): ela seria “assustadora”. Tento explicar. Uma fuga é uma forma musical que exige grande conhecimento técnico de composição. Então imagine quando ela é escrita de maneira inesperadamente violenta e dissonante como aqui – provavelmente a obra mais moderna de Beethoven. Sua estrutura geral parece condensar, além da forma de uma fuga a quatro vozes, a estrutura de uma sinfonia em quatro movimentos – pois há quatro episódios: os internos lembram um andamento lento e um scherzo, os externos seriam a introdução e o finale.

Ouçamos o começo da Grande Fuga, quando, após a introdução, vem o susto da exposição, com notas caindo para todos os lados, os instrumentos entrando um por um onde parece não haver espaço para mais nada e um tema totalmente anguloso e dissonante.

0`45 em diante (por uns 3 minutos)

Então, a última fase de Beethoven foi finalizada por um gênero de música que nunca fora ouvida antes. As composições desta fase foram criadas sem a preocupação em respeitar regras.

Tanto que o último movimento do Quarteto Op. 135 demonstra claramente a noção que Beethoven tinha de estar em terreno jamais palmilhado. O nome que um dos movimentos recebe mais parece uma brincadeira: “A difícil decisão: Deve ser assim? Deve ser assim!”.

13) Op. 135 – 0`36 em diante por uns dois minutos

Beethoven morreu em 1827 de motivos ainda controversos. Uns falam em cirrose, porém, modernamente, análises de seus cabelos têm levado a conclusões de que o compositor teria sido acidentalmente levado à morte por envenenamento devido a doses excessivas de chumbo, a base dos tratamentos administrados por seu médico.

Considerado um poeta-músico, Beethoven foi o primeiro romântico apaixonado pelo lirismo dramático e pela liberdade de expressão. Se foi condicionado por algo, foi pelo equilíbrio, pelo amor à natureza e pelos grandes ideais humanitários. Inaugurou a tradição do compositor livre, que escreve música para si, nem sempre vinculada ao desejo de um mecenas ou do público. Hoje em dia, muitos críticos o consideram como o maior compositor do século XIX, a quem se deve a inauguração do período Romântico, e todos o distinguem como um dos poucos homens que merecem a adjetivação de “gênio”.

E agora digam que ele não escrevia para o futuro!

Fontes consultadas:
— História da Música Ocidental, de Jean e Brigitte Massin.
— O blog Euterpe, texto de Leonardo T. Oliveira
Beethoven e o Sentido da Transformação, de José Viegas Muniz Neto
Beethoven, de Barry Cooper
— Biografia de Beethoven

Falando sobre Beethoven
Eu falando sobre Beethoven
André Carrara durante a Patética
E observando André Carrara na Sonata Patética

Anotações sobre Beethoven (Parte I)

Anotações sobre Beethoven (Parte I)
Beethoven aos 13 anos
Beethoven aos 13 anos

Alguns compositores parecem ter nascido prontos, outros não. No primeiro grupo, por exemplo, estão Bach e Brahms, quem sabe Haydn. O primeiro parece ter nascido com voz própria e definitiva e as diferenças entre suas obras mais parecem resultantes de suas funções nos diversos empregos que ocupou do que de uma evolução de estilo ou expressão própria. Na época de Bach não havia a noção da construção de uma obra pessoal para a posteridade. Brahms já tinha esta noção, mas ele se inclui facilmente no grupo dos “nascidos prontos”. Ouvindo-se os primeiros opus de Brahms, o grande compositor já é reconhecido facilmente. Haydn é um caso semelhante. É complicado reconhecer obras suas como “da juventude” ou “da maturidade”. Porém, suas últimas sinfonias já são um pouco diferentes. Elas foram compostas em Londres para ganhar dinheiro vivo e a sombra do contrato que pairava sobre sua cabeça acrescentou aquela possibilidade de fracasso que tanto lhe faltara antes, quando era apenas um brilhante e feliz empregado da rica família Esterhazy. E as londrinas são suas melhores sinfonias.

Ter nascido e morrido com a mesma cara — ou, melhor dizendo, com o mesmo estilo –não é um mérito nem demérito. Muitos dos grandes compositores evoluíram profunda e espetacularmente. Mozart e Beethoven, por exemplo, foram criadores que alteraram muito sua linguagem durante seus períodos criativos. Mozart viveu muito pouco, talvez por isso não tenha alterado tanto sua linguagem. Beethoven alterou tanto que acabou por ser a principal marca da transição da música do período clássico para o romantismo. Isto deu-se certamente por uma necessidade interna, mas fatores externos também os influenciaram.

Por alguma razão, o gráfico abaixo ignora Bach, mas no restante ele nos serve.

timeline_classical

Haydn, Mozart e Beethoven são considerados os maiores compositores do período clássico. Haydn viveu 77 anos, Mozart, 35, Beethoven, 57.

Não gosto muito de classificações por escolas, mas, grosso modo, pode-se dizer que o barroco começa em 1600 (data da invenção da ópera) e acaba em 1750, quando Bach morre. O período clássico vai daí até aproximadamente 1810 (quando inicia o segundo período da obra beethoveniana). Já o Romântico inicia no segundo período de Beethoven e vai até 1900, trocado pelo século XX.

Considerando-se tais datas, Mozart, até por ter vivido tão pouco, viveu no período clássico e produziu realmente música clássica. O igualmente clássico Haydn, com seus 77 anos, nasceu lá no período do barroco tardio e invadiu o período romântico, sem dobrar-se a ele.

Enquanto isso, Beethoven, que nasceu depois dos dois, começa criando obras muito semelhantes às de Mozart, mas evolui de tal modo que funda o romantismo musical com a composição de sua Sinfonia Nº 3, Eroica. Talvez Mozart o tivesse acompanhado nesta aventura de transformação, mas sua morte interrompeu a jornada.


Parece Mozart, não?

Beethoven foi fundamental para a fixação da transição do clássico para o romântico. Notem que tal transição não se deveu a uma arbitrariedade histórica como a virada de um século nem à morte de um compositor, mas a uma alteração de estilo, ao desenvolvimento da linguagem de um compositor: Beethoven. Claro que a posição cronológica favoreceu-o sobremaneira, mas o compositor contribuía. Ele era um campo fertilíssimo e não falo exatamente de uma plantação de beterrabas.

Ludwig van Beethoven nasceu há 245 anos, em 16 de dezembro de 1770, na cidade de Bonn, atual Alemanha. Seu sobrenome, porém, era de origem holandesa. Consta que é derivado da aldeia de Bettenhoven (que quer dizer horta de beterrabas), no interior da Holanda. Apesar do sobrenome holandês, o avô paterno de Beethoven era originário de Antuérpia, na atual Bélgica. O avô emigrou para Bonn, cidade onde exerceu a função de diretor de música da corte de Colônia. Seus pais tiveram sete filhos, dos quais apenas três chegaram à vida adulta.

(continua com os professores e primeiras obras de Beethoven)

Haydn para blefadores

A série de livros de “Manual do Blefador” (Ediouro) dá dicas a pessoas que não querem passar vergonha entre entendidos. Há vários desses livrinhos: sobre música, vinhos, literatura, arte moderna, filosofia, teatro, etc. Eles são ótimos, engraçadíssimos, como demonstra este verbete sobre Haydn:

Haydn.

O pai da sinfonia. Ao contrário do normal, ninguém soube quem foi sua mãe. Haydn decidiu que as sinfonias deviam ter princípio, meio e fim, primeiros movimentos nas sonatas, nas missas e nos trios. Beethoven, em seu estilo grosseiro, desconsiderou e estragou esse belo modelo convencional.

O sentimento geral é de que Haydn podia ser tão bom quanto Mozart se não tivesse sido tão incuravelmente feliz durante a vida. Esse espírito de contentamento insinuou-se por toda sua música e diluiu-se. As últimas sinfonias foram compostas em Londres para ganhar dinheiro vivo, e a sombra do contrato que pairava sobre ele acrescentou-lhe aquela pitadinha de desgraça que tanto lhe faltara antes. Talvez somente um homem verdadeiramente sem coração poderia ter composto algo tão assombrosamente feliz quanto o final da Sinfonia Nº 88.

Existem muitas e muitas sinfonias que praticamente não são tocadas e que você pode considerar suas favoritas, mas o excelente comentário sobre Haydn é afirmar que o melhor de suas músicas foram as missas — e não haverá necessidade de falar sobre isso.

Peter Gammond — Manual do Blefador: Música