Uma palestra simples sobre a evolução da música de Beethoven

Uma palestra simples sobre a evolução da música de Beethoven

No dia 16 de dezembro, estive no palco do StudioClio falando sobre Ludwig van Beethoven. Houve um momento em que André Carrara tocou a Patética. Fiquei olhando de frente para um público ouvinte de música pela primeira vez na minha vida. Puro cinema. Todos voltados para mim, mas atentos ao pianista (foto ao final), que é excelente. Quando a música tinha ritmo, as pessoas balançavam a cabeça, mexiam os pés, participando silenciosamente da função. Abandonados a si mesmos, pensando que não eram observados, quase todos se movimentavam. No belo adágio, alguns fecharam os olhos, enquanto outros fizeram caras embevecidas, cada um de seu jeito. Lindo. Aquele mal-humorado do Beethoven deve ter gostado. Agradeço ao Francisco Marshall pelo convite.

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Beethoven aos 13 anos
Beethoven aos 13 anos

Alguns compositores parecem ter nascido prontos, outros não. No primeiro grupo, por exemplo, estão Bach e Brahms, quem sabe Haydn. Bach parece ter nascido com voz própria e definitiva e as diferenças entre suas obras mais parecem resultantes de suas funções nos diversos empregos que ocupou do que de uma evolução de estilo. Na época de Bach não havia a noção da construção de uma obra pessoal para a posteridade. Brahms já tinha esta noção, mas ele também se inclui facilmente no grupo dos “nascidos prontos”. Ouvindo-se os primeiros opus de Brahms, o grande compositor já é facilmente reconhecível. Haydn é um caso semelhante. É complicado reconhecer obras suas como “da juventude” ou “da maturidade”. Apenas suas últimas sinfonias são diferentes. Os tempos do emprego estável com os Esterházy tinham acabado e elas foram compostas em Londres para ganhar dinheiro vivo. A sombra do contrato que pairava sobre sua cabeça acrescentou tensão e aquela possibilidade de fracasso que lhe faltara antes.

Ter nascido e morrido com a mesma cara — ou, melhor dizendo, com o mesmo estilo – não representa mérito ou demérito. Muitos dos grandes compositores evoluíram profunda e espetacularmente. Mozart e Beethoven, por exemplo, foram criadores que alteraram muito suas linguagens ao longo dos anos. Mozart menos, certamente por ter vivido pouco. Beethoven alterou-se de tal forma que sua evolução acabou por ser a própria transição da música do período clássico para o romantismo. Isto deu-se certamente por uma necessidade interna, mas fatores externos também os influenciaram.

Por alguma razão, o gráfico abaixo ignora Bach, mas no restante ele nos serve.

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Haydn, Mozart e Beethoven são considerados os maiores compositores do período clássico. Haydn viveu 77 anos, Mozart, 35, Beethoven, 57.

Não gosto muito das classificações por escolas, mas, grosso modo, pode-se dizer que o barroco começa em 1600 (data da invenção da ópera) e acaba em 1750, quando Bach morre. O período clássico vai daí até aproximadamente 1810 (quando inicia o segundo período da obra beethoveniana). Já o Romântico inicia no segundo período de Beethoven e vai até 1900, trocado pelo século XX.

Enquanto isso, Beethoven, que nasceu depois dos dois, começa criando obras muito semelhantes às de Mozart, mas evolui de tal modo que funda o romantismo musical. O ponto de partida do Romantismo é normalmente considerado a composição da Sinfonia Nº 3, Eroica. Talvez Mozart o tivesse acompanhado nesta aventura de transformação, mas sua morte interrompeu a jornada.

Ouçamos um trecho da Sonata Nº 1, Op. 2 de Beethoven. Notem como parece Mozart.

Beethoven foi fundamental na transição do clássico para o romântico. Notem que tal transição não se deveu a uma arbitrariedade histórica como a virada de um século nem à morte de um compositor, mas a uma alteração de estilo, ao desenvolvimento da linguagem de um criador. Claro que a posição cronológica favoreceu-o sobremaneira, mas o compositor contribuiu. Ele era um campo fertilíssimo.

Ludwig van Beethoven nasceu há 250 anos, em 17 de dezembro de 1770, na cidade de Bonn, atual Alemanha. Seu sobrenome, porém, era de origem holandesa. Consta que é derivado da aldeia de Bettenhoven (que quer dizer “horta de beterrabas”), no interior da Holanda. Apesar do sobrenome holandês, o avô paterno de Beethoven era originário de Antuérpia, na atual Bélgica. Ele era músico e emigrou para Bonn, local de nascimento de nosso biografado.

Beethoven em 1810
Beethoven em 1810

A vida de Ludwig van Beethoven (1770-1827) mostrou-se tão adequada a romances e filmes que as lendas em torno de sua figura foram se criando de forma indiscriminada, às vezes paradoxal. Sua surdez, por exemplo, contribuiu muito para popularizá-lo e para que fosse lamentado. O escritor Victor Hugo dizia que sua música era a de “Um deus cego que criava o Sol”, mas quem o conhecesse talvez reduzisse este tom de piedade.

Beethoven era uma pessoa absolutamente segura de seu talento – não mentiríamos se o chamássemos de arrogante – e tinha a perfeita noção de que estava criando um conjunto espetacular de obras musicais. Sabia-se imortal. A surdez representava uma tragédia muito mais do ponto de vista social, das relações amorosas e das de amizade, além, é claro, de prejudicar de forma definitiva sua carreira de grande pianista. Mas não era um obstáculo no plano da criação.

O problema começou a manifestar-se aos 26 anos de idade e aos 46 o compositor estava praticamente surdo. Por exemplo, ao final da primeira apresentação pública da 9ª Sinfonia, Beethoven permaneceu absorto na leitura da partitura e não percebeu que estava sendo ovacionado até que um amigo, tocando em seu braço, voltou sua atenção para o que acontecia na sala, onde a plateia o aplaudia em pé. Ou seja, aos 54 anos, época da composição da Nona, ele era totalmente surdo.

Com isso, não estou dizendo que ele não tenha sofrido com o progressivo ensurdecimento. Sofreu a ponto pensar em suicídio. Era 1802, Beethoven tinha 31 anos – idade com que Schubert morreu – e pensava em matar-se. Mas deixou a intenção apenas escrita em cartas. Ao que se sabe, nunca fez uma tentativa. Porém, se a fizesse e fosse bem-sucedido, talvez ainda assim estivéssemos falando dele.

Beethoven não era fácil. Em seus anos de aluno, ele utilizava harmonias que eram consideradas inadmissíveis. Quando lhe diziam que eram estranhas, perguntava de volta: “Quem as proibiu?”. Em 1792, quando Haydn visitou Bonn, foi apresentado a ele. Beethoven tinha 21 anos e mostrou algumas de suas obras a Haydn. Este, impressionado, propôs que o jovem se transferisse para Viena a fim de que pudesse ser seu aluno. No mesmo ano, Beethoven instalou-se em Viena, mas recebia aulas de forma irregular, pois Haydn estava no auge de sua carreira e tinha de sair frequentemente da cidade.

Beethoven logo ficou descontente devido a pouca dedicação de Haydn para com ele. Sabe-se que Haydn ensinou-lhe muito, apesar de considerá-lo um chato. Chamava-o de Sua Majestade. Assim, em 1794, Beethoven aproveitou-se de uma viagem de Haydn a Londres e procurou um novo mestre. A relação entre ele e o novo professor também não foi muito tranquila. Tanto que Albrechtsberger, depois de dispensado, proferiu uma daquelas frases que fazem a alegria dos biógrafos. Ele disse: “Não percam tempo com ele. Ele nada aprendeu e nada fará de bom”. Bem, assim é que se faz para entrar na história pela porta dos fundos…

Hoje, 250 anos depois, não temos a intenção de contar os casos em que fica comprovado que Beethoven era um brigão — procuremos ver sua postura por um lado mais indulgente: a de um sujeito orgulhoso, consciente do próprio valor e, em relação ao pobre Albrechtsberger, claramente superior.

Há um fato muito curioso na formação de Beethoven. Desde cedo ele teve uma noção muito clara daquilo que lhe faltava: faltava-lhe conhecer literatura. E ele, com entusiasmo, atirou-se à leitura de Homero, Shakespeare, Goethe e Schiller. Pensava que só assim – e tendo bons professores de composição – poderia ser o que tinha planejado para si: tornar-se o Tondichter da Alemanha, o poeta dos sons de seu país.

Ele queria ainda mais poesia do que isso…

As obras escritas antes de seus 30 anos obedeciam e também traíam seus mestres. Apesar de respeitar as estruturas aprendidas, já são claros os procedimentos expressivos que utilizaria nas fases seguintes – os temas curtos e afirmativos, os súbitos silêncios, o uso simultâneo de graves e agudos do teclado, a primazia do ritmo. O seu “classicismo vienense” era muito pessoal.

Um exemplo famoso de tema curto é o tema inicial da 5ª Sinfonia. Notem os gestos incríveis do maestro Masato Usuki. Agora, se algum de vocês puder me explicar como a orquestra entra junto depois do maestro mexer os braços daquele jeito… (Sim, sabemos, há um spalla para salvar tudo).

É tradicionalmente aceito dividir a vida artística de Beethoven em três fases. A primeira começa com a mudança para Viena, em 1792. Uma fase quase mozartiana. Nove anos depois, em 1801, Beethoven afirmou não estar satisfeito com o que compusera até então, decidindo tomar um “novo caminho”. Tudo parecia levá-lo ao épico e, dois anos depois, em 1803, surge um grande fruto desse “caminho”: a Sinfonia Nº 3, Eroica. Ela abre um verdadeiro ciclo épico. A Sinfonia era para ser dedicada a Napoleão Bonaparte, pois Beethoven admirava Napoleão e os ideais da Revolução Francesa. Porém, quando o corso autoproclamou-se Imperador da França em maio de 1804, Beethoven retirou a dedicatória de forma bastante característica… Foi até a mesa onde estava a sinfonia já pronta, pegou a primeira página e riscou o nome de Napoleão com tanta força que ficou um buraco no papel. É que ele apagara a referência ao novo Imperador com uma faca… E que música havia naquelas folhas!

O ciclo épico iniciado pela Eroica seguiu com obras verdadeiramente espantosas e originais, que cantavam a força da humanidade, a paixão pela liberdade e a vitória do espírito humano.

Vieram a Sinfonia Nº 5, a Nº 6, Pastoral, as sonatas Waldstein e Appassionata, o Concerto para Piano Nº 5, chamado Imperador, a Fantasia para piano, orquestra e coro. Eram músicas intensas, triunfantes, românticas, às vezes belicosas. Importante explicar o título Imperador do Concerto Nº 5 para piano e orquestra. O compositor jamais quis este apelido para o Concerto. Quem deu este nome foi o editor responsável pela publicação da partitura na Inglaterra. Este acreditou ser aquele um Concerto tão grandioso como nenhum outro e o chamou assim. O próprio Beethoven não gostou do apelido, mas isso de nada adiantou.

A época da morte de Haydn, em 1809, ainda dentro da primeira fase beethoveniana, foram anos de grande fertilidade criativa. As obras-primas brotavam de sua pena. Vieram também o Concerto para Piano nº 4, Op. 58; os Três Quartetos de Cordas, intitulados Razumovsky, em 1806; o Concerto para Violino, Op. 61 e a Sonata Patética.

Enquanto isso, a vida amorosa de Beethoven ia de mal a pior. Dono de uma personalidade apaixonada, sofria decepções em série. Um dos mais famosos casos foi o com Bettina Brentano, que fez uma extensa descrição do mestre em suas cartas. Resumidamente, ela o descreveu como “pequeno, moreno, marcado pela varicela, o que se chama de feio”. Porém, “tinha uma fronte nobremente modelada, parecendo ter trinta anos” – tinha quarenta – e vestia “andrajos com ar magnífico e imponente”.

“O incidente de Teplitz” em pintura de Carl Rohling
“O incidente de Teplitz” em pintura de Carl Rohling

Bettina apresentou-o a Goethe. Não deu nada certo. Em julho de 1812, Beethoven recebeu o convite para um encontro com o maior escritor de língua alemã. O encontro deu-se em Teplitz. Há algum tempo os dois se estudavam à distância: Goethe tinha grande admiração pela 5ª Sinfonia, “simplesmente espantosa e grandiosa” e Beethoven era interessado em literatura em geral e no mestre em especial. Em 1811, por exemplo, Beethoven tinha mandado para Goethe um exemplar da música que fizera para Egmont. Era esperado um encontro dos Titãs.

Porém, a possibilidade de uma amizade acabou muito rápido. O caso é conhecido como “O incidente de Teplitz” e ocorreu na época da composição da 7ª Sinfonia.

Os dois caminhavam de braço quando viram o Imperador do recém-fundado Império Austríaco, os duques e toda a corte caminhando em direção oposta. Bettina conta que Beethoven disse para Goethe ignorá-los, ele queria que os aristocratas abrissem caminho para eles. Goethe, discordou silenciosamente, deu um passo para o lado e tirou o chapéu para cumprimentar a família real, enquanto Beethoven passava decididamente no meio da corte, sem nem tirar o chapéu. Quando Goethe alcançou Beethoven, este lhe disse: “Eu esperei por você porque respeito seu trabalho, mas você demonstrou um apreço exagerado por estas pessoas”.

Em carta para a sua esposa, o escritor disse sobre Ludwig: “Seu talento me surpreendeu; no entanto, ele tem uma personalidade absolutamente incontrolável. Não está equivocado ao pensar no mundo como um local horrível, mas nada faz para torná-lo mais agradável para si e para os outros”. Enquanto isso, Beethoven escrevia para seu editor dizendo que “Goethe se encanta mais com a atmosfera da corte do que em ser um grande poeta”. Os dois nunca mais se encontraram. Anos depois, Beethoven mandou uma carta para Goethe. Não houve resposta.

Nesta época iniciava a segunda fase da produção de Beethoven. Ela já era reconhecido como o maior compositor de sua época. Então começou a fazer algumas bobagens. Entre 1813 e 17, passa por uma crise criativa. Talvez a progressiva surdez — ele começara a se comunicar com as pessoas por gestos ou por escrito –, ou a perda das esperanças matrimoniais, ou os problemas na tentativa de ganhar a custódia do sobrinho, fizeram com que ele sofresse uma crise criativa. Mas seguiu compondo: escreveu a pior das músicas em A Vitória de Wellington. “É uma estupidez”, admitiu, mas o público saudou o triunfalismo da obra. Era o músico nacional e tudo o que fizesse era adorado. A vaidade jogou-o em outras empreitadas mal sucedidas. Eram cantatas como Cristo no Monte das Oliveiras e a desconhecida Missa em Dó Maior, além de ciclos de canções que consistiam em músicas de circunstância que alcançavam o aplauso, mas que não permaneceram.

Agora, a tal A Vitória de Wellington. Vejam se isso parece Beethoven… Depois da introdução, parece que nasce um mau Handel romântico…

A sorte foi ele ter conhecido a Condessa Maria Erdödy, que preferia música de verdade. Foi esta grande e inspiradora amiga quem conseguiu retirá-lo da letargia e ele recomeçou, em 1818, a compor lentamente o que seriam, na minha opinião, suas maiores obras. À Condessa foram dedicadas as duas esplêndidas Sonatas para Violoncelo e Piano Op. 102.

A postura de ambos os amigos era de romantismo total. Uma das cartas da Condessa dirigidas a ele: “Nós, seres limitados de espírito ilimitado, nascemos para o sofrimento e para a alegria. Sendo que os mais destacados, como você, apropriam-se da alegria através do sofrimento”. Enquanto isso, um fato paralelo preocupava demais o compositor: a conquista de Viena por parte de Rossini. Desta época de recuperação criativa, temos o maravilhoso Trio Arquiduque, que marca o final da segunda fase beethoveniana.

E então começou a terceira fase, a mais vanguardista delas. Como dissemos, a partir de 1818, o compositor, aparentemente recuperado, passou a compor mais lentamente, mas com vigor renovado. Apesar do vanguardismo e das pessoas da época considerarem aquilo incompreensível, há obras muito populares nesta fase – não esqueçam que tal fase contém a ultra e justamente popular Sinfonia Nº 9 – , mas há também aquelas que, de tão perfeitas, serviram de base de apoio para um alto número de compositores que vieram depois. A irrepetível sequência de músicas perfeitas e revolucionárias começou com a Sonata para Piano, Op. 106, Hammerklavier. Beethoven teve que prestar explicações a seus contemporâneos, que não a entenderam, o que gerou mais um rosário de deliciosas respostas mal humoradas. “Não pensei no pianista quando a escrevi”. “Não gostam agora? Gostarão mais tarde. Não escrevo para vocês, escrevo para o futuro”.

beethoven

As sonatas seguintes, de Op. 109, 110 e 111, são inacreditáveis, considerando-se a época em que foram compostas. Porém, ouvindo-as hoje, são apenas belíssimas, assim como as Variações sobre um tema de Diabelli, onde uma valsa muito simples é desenvolvida e transformada até atingir alturas prodigiosas. A Sonata Op. 111 gerou um dos mais belos momentos da literatura de todos os tempos: a aula do Prof. Kretzschmar em Doutor Fausto, de Thomas Mann. E, até a morte de Beethoven, haveria mais obras para as quais os melômanos revirariam os olhos ao falarem delas — os últimos quartetos, por exemplo. Em meio à doenças e reclamações contra Rossini e à italianização do mundo, tais composições vieram uma a uma à tona e serviram como pedra fundamental para a música do futuro. Quando soube que os últimos quartetos tinham sido pessimamente acolhidos, repetiu, mais uma vez com razão: “Não são para vós, mas para as gerações futuras”.

Pois o futuro lhe abriria as portas como fez para poucos. No início do século XX, o escritor Romain Rolland acreditava ser o último beethoveniano. Não poderia estar mais errado. Bartók, Xenakis, Varèse, Shostakovich e Schnittke foram decisivamente influenciados. Além disso, Beethoven tornou-se o mais popular dos compositores eruditos, o elo perfeito para aqueles que raramente ouvem a música erudita pudessem adentrar em um novo mundo. Ludwig van tinha a admiração, por exemplo, de Alex DeLarge, personagem de A Laranja Mecânica; é utilizado por alunos de piano nas facilidades do primeiro movimento da Sonata ao Luar; também tem a admiração das pessoas que invadem praças ou salas de concerto para ouvirem o final da Nona Sinfonia. E conta com o assombro dos entendidos.

Como dissemos, no famoso capítulo VIII do Doutor Fausto, de Thomas Mann, o imaginário professor Kretzschmar dá uma aula sobre o tema “Porque Beethoven não escreveu o terceiro movimento da Sonata Op. 111”. A ideia da aula descrita por Mann nasceu quando um descuidado pianista contemporâneo de Beethoven perguntou sobre o motivo da inexistência do mesmo. A resposta do compositor foi típica: “Não tive tempo de escrever um!”. Mann explorou habilmente a história.

Pois o incrível – e Mann aparentemente não sabia disso — é que os musicólogos descobriram que havia um terceiro movimento para esta sonata. Em alguns manuscritos originais, há anotações: segundo movimento – Arietta; terceiro movimento – Presto. O Kretzschmar de Mann diz que a Arietta (o segundo movimento) seria um adeus. Trata-se de um tema com variações que dá ao ouvinte uma sensação muito íntima. Nas três primeiras variações, o tema – que segundo Kretzschmar seria um dim-da-da que poderia ser balbuciado distraidamente por um bebê — vai sendo cada vez mais movimentado: as notas vão se multiplicando e o ritmo começa a ser quebrado e animado até culminar na famosa terceira variação, muito comparada a um boogie-woogie, 100 anos antes disso existir.

Claro que a invenção dessa despedida foi uma das muitas liberdades poéticas tomadas pelo entusiasmado professor de Mann. Está bem, foi a última sonata para piano de Beethoven, porém após o Op. 111 ainda vieram outras obras importantes para piano, como as Variações Diabelli (Op.120) e as Bagatelas (Op.126), além, é claro, de todos os últimos quartetos. Ou seja, quando Beethoven escreveu o Op. 111, era um compositor em plena atividade e com vários projetos diferentes a desenvolver.

De 1816 até 1827, ano da sua morte, conseguiu compor cerca de 44 obras musicais. Ao morrer, a 26 de Março de 1827, estava trabalhando numa nova sinfonia, assim como projetava escrever um Réquiem. Ao contrário de Mozart, que foi enterrado anonimamente em uma vala comum, 20.000 cidadãos vienenses — Viena tinha 300.000 habitantes — foram ao funeral de Beethoven.

E, com efeito, o interesse pela obra de Beethoven mudou Viena. O historiador Paul Johnson diz que “Existia uma nova fé e Beethoven era o seu profeta. Não foi por acidente que, aproximadamente na mesma época, as novas casas de espetáculo recebiam fachadas parecidas com as dos templos, exaltando o novo status moral e cultural da sinfonia e da música de câmara.”

Em 1824, surge Sinfonia nº 9, Op.125, para muitos a sua obra-prima. Pela primeira vez na história da música, é inserida a voz humana num movimento de uma sinfonia. Os solistas e o coral exaltam de forma dionisíaca a fraternidade universal, começando pela aliança entre duas artes irmãs: a poesia e a música. O texto é uma adaptação do poema de Schiller, “Ode à Alegria”, feita pelo próprio Beethoven. E, bem, todos conhecem esta grande música que precede os quartetos finais.

Agora, uma referência moderna à Nona e a Beethoven, uma das tantas presentes no filme A Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick. Há muitas mais, basta lembrar do Nostalgia de Tarkóvsky e muitos outros filmes modernos que usam a Nona.

BeethovenOs anos finais de Beethoven foram dedicados quase que exclusivamente à composição de Quartetos de Cordas. Foi nesse meio que ele produziu algumas de suas mais profundas e visionárias obras: os Op. 127, 130, 131, 132, 135 e a Grande Fuga, Op. 133, todos encomendados pelo príncipe Galitzin, que pagou 50 ducados por cada um. Pagou mesmo? Beethoven recebeu o pagamento apenas do primeiro quarteto. Embora o príncipe russo jamais tivesse negado a dívida, os quartetos restantes só foram pagos aos herdeiros de Beethoven em 1852, 25 anos após a morte do compositor.

Na opinião de Beethoven, o quarteto — que fora inventado por Haydn — era a manifestação mais alta da arte musical. E o compositor utilizou-o como veículo de expressão de todo um projeto de renovação de sua música.

A obra sinfônica de Beethoven é bem mais acessível ao público, mais do que a pianística e muito mais do que os quartetos. Pode-se dizer que os quartetos de Beethoven da primeira e segunda fases fossem sinfonias reduzidas para poucos instrumentos, mas, ouvindo os da última fase, a ideia de orquestração não passa por nossa cabeça. Aqui, ele se desliga estilisticamente da sinfonia, dando lugar a um intimismo raramente alcançado e apenas possível camaristicamente.

O Quarteto Op. 132 é absolutamente pessoal, como pode ser demonstrado pelas anotações na partitura. Beethoven passara um inverno sem complicações de saúde, mas a primavera trouxera-lhe moléstias pulmonares – ele cuspia sangue –, digestivas e intestinais que o debilitaram muito, ao ponto de deixá-lo de cama por vários dias. Durante esta doença, Beethoven trabalhava no Op. 132. Sua situação foi comentada musicalmente. Na partitura, há anotações como “ação de graças de um convalescente”, “sentindo novas forças” ou “Tu (referindo-se a deus) me devolveste a vontade de viver”. Trata-se de um caso único na história da música — um compositor expor problemas tão terrenos uma cpomposoção. Normalmente, quando se fala na dor que uma música representa, em geral nos referimos a dores da alma, dificilmente a sofrimentos corporais.

Dores e recuperação: de 21`30 até 24`30. 

E finaliza com uma valsa fantástica, de pura alegria: 39`01

Essa é a natureza do conflito captado pelo Op. 132.

O Op. 130 foi o último a ser escrito e também tem história curiosa. Para encerrar grandiosamente a encomenda do príncipe Galitzin, Beethoven escreveu uma Grande Fuga. Depois, ele aceitou a sugestão de seu editor de separar esta fuga do Quarteto Op. 130, tornando-a uma peça independente. Os motivos teriam sido comerciais, eles lucrariam mais dividindo o quarteto em dois. Ainda mais que o russo não pagava…

Um adjetivo acaba associado à Große Fuge Op. 133 (1826): ela seria “assustadora”. Tento explicar. Uma fuga é uma forma musical que exige grande conhecimento técnico de composição. Então imagine quando ela é escrita de maneira inesperadamente violenta e dissonante como aqui – provavelmente a obra mais moderna de Beethoven. Sua estrutura geral parece condensar, além da forma de uma fuga a quatro vozes, a estrutura de uma sinfonia em quatro movimentos – pois há quatro episódios: os internos lembram um andamento lento e um scherzo, os externos seriam a introdução e o finale.

Ouçamos o começo da Grande Fuga, quando, após a introdução, vem o susto da exposição, com notas caindo para todos os lados, os instrumentos entrando um por um onde parece não haver espaço para mais nada e um tema totalmente anguloso e dissonante.

0`45 em diante (por uns 3 minutos)

Então, a última fase de Beethoven foi finalizada por um gênero de música que nunca fora ouvida antes. As composições desta fase foram criadas sem a preocupação em respeitar regras.

Tanto que o último movimento do Quarteto Op. 135 demonstra claramente a noção que Beethoven tinha de estar em terreno jamais palmilhado. O nome que um dos movimentos recebe mais parece uma brincadeira: “A difícil decisão: Deve ser assim? Deve ser assim!”.

13) Op. 135 – 0`36 em diante por uns dois minutos

Beethoven morreu em 1827 de motivos ainda controversos. Uns falam em cirrose, porém, modernamente, análises de seus cabelos têm levado a conclusões de que o compositor teria sido acidentalmente levado à morte por envenenamento devido a doses excessivas de chumbo, a base dos tratamentos administrados por seu médico.

Considerado um poeta-músico, Beethoven foi o primeiro romântico apaixonado pelo lirismo dramático e pela liberdade de expressão. Se foi condicionado por algo, foi pelo equilíbrio, pelo amor à natureza e pelos grandes ideais humanitários. Inaugurou a tradição do compositor livre, que escreve música para si, nem sempre vinculada ao desejo de um mecenas ou do público. Hoje em dia, muitos críticos o consideram como o maior compositor do século XIX, a quem se deve a inauguração do período Romântico, e todos o distinguem como um dos poucos homens que merecem a adjetivação de “gênio”.

E agora digam que ele não escrevia para o futuro!

Fontes consultadas:
— História da Música Ocidental, de Jean e Brigitte Massin.
— O blog Euterpe, texto de Leonardo T. Oliveira
Beethoven e o Sentido da Transformação, de José Viegas Muniz Neto
Beethoven, de Barry Cooper
— Biografia de Beethoven

Falando sobre Beethoven
Eu falando sobre Beethoven
André Carrara durante a Patética
E observando André Carrara na Sonata Patética

Anotações sobre Beethoven (Parte II)

Anotações sobre Beethoven (Parte II)
Beethoven em 1810
Beethoven em 1810

Ludwig van Beethoven (16 de dezembro de 1770 – 26 de março de 1827) foi um compositor cuja existência mostrou ser tão adequada a romances e filmes que as lendas em torno de sua figura foram se criando de forma indiscriminada, às vezes paradoxal. Sua surdez, por exemplo, contribuiu muito para popularizá-lo e para que fosse lamentado. Victor Hugo dizia que sua música era a de “Um deus cego que criava o Sol”, mas quem o conhecesse talvez reduzisse o tom de piedade.

Leia mais:
Anotações sobre Beethoven (Parte I)

Beethoven era uma pessoa absolutamente segura de seu talento – não mentiríamos se o chamássemos de arrogante – e tinha certeza da imortalidade de sua obra. Ele tinha a perfeita noção de que estava criando um conjunto espetacular de obras musicais. A surdez representava uma tragédia muito mais do ponto de vista social, das relações amorosas e das de amizade, além prejudicar de forma fatal sua carreira de grande pianista, mas nunca foi encarada por ele como um obstáculo no plano da criação.

O problema começou a manifestar-se aos 26 anos de idade e aos 46 o compositor estava praticamente surdo. Ao final da primeira apresentação pública da 9ª Sinfonia, Beethoven permaneceu absorto na leitura da partitura e não percebeu que estava sendo ovacionado até que um amigo, tocando em seu braço, voltou a sua atenção para o que acontecia na sala, onde a platéia o aplaudia em pé. Ou seja, aos 54 anos, época da composição da Nona, ele era totalmente surdo.

Com isso, não estou dizendo que ele não tenha sofrido muito com o progressivo ensurdecimento. Sofreu a ponto de ter pensado em suicidar-se. Era 1802, Beethoven tinha 31 anos – idade com que Schubert morreu – e pensava em matar-se. Ao que se sabe, nunca fez uma tentativa, mas, se a fizesse e fosse bem-sucedido, talvez ainda assim estivéssemos falando dele.

Beethoven não era fácil. Em seus anos de aluno, ele utilizava harmonias que eram consideradas inadmissíveis. Quando lhe diziam que eram estranhas, perguntava de volta: “Quem as proibiu?”. Em 1792, quando Haydn visitou Bonn, foi apresentado a ele. Aos 21 anos, Beethoven mostrou-lhe algumas de suas obras e Haydn, impressionado, propôs que se mudasse para Viena a fim de que pudesse ser seu aluno. No mesmo ano, Beethoven instalou-se em Viena, mas recebia aulas de forma irregular, pois Haydn estava no auge de sua carreira e tinha de sair frequentemente da cidade.

Beethoven estava descontente devido a pouca dedicação de Haydn para com ele. Sabe-se que Haydn ensinou-lhe muito, apesar de considerá-lo um chato. Chamava Beethoven de Sua Majestade. Assim, em 1794, Beethoven aproveitou-se de uma viagem de Haydn a Londres e procurou um novo mestre: Georg Albrechtsberger. A relação entre ele e o novo professor também não foi muito tranquila. Tanto que Albrechtsberger, depois que foi dispensado, acabou proferindo uma daquelas frases que fazem a alegria dos biógrafos. Ele disse: “Não percam tempo com ele. Ele nada aprendeu e nada fará de bom”. Assim é que se faz para entrar na história pela porta dos fundos…

Hoje, quase 250 anos depois, não temos a intenção de contar os casos em que fica comprovado que Beethoven era um brigão — procuremos ver sua postura por um lado mais indulgente: era sujeito orgulhoso, consciente do próprio valor e, no caso do pobre Albrechtsberger, claramente superior.

Há um fato muito curioso na formação de Beethoven. Desde cedo ele teve uma noção muito curiosa sobre aquilo que lhe faltava: faltava-lhe conhecer literatura. E ele, com entusiasmo, atirou-se à leitura de Homero, Shakespeare, Goethe e Schiller. Pensava que só assim – e tendo bons professores de composição – poderia ser o que tinha planejado para si: tornar-se o Tondichter da Alemanha, o poeta dos sons.

Mais poesia do que isso?

As obras escritas antes de seus 30 anos obedeciam e traíam seus mestres. Apesar de respeitar as estruturas aprendidas, ele já anunciava os procedimentos expressivos que utilizaria nas fases seguintes — temas curtos e afirmativos, súbitos silêncios, uso simultâneo de graves e agudos do teclado, a primazia do ritmo. O seu “classicismo vienense” era, na verdade, um classicismo muito pessoal.

op59-1

O uso dos silêncios

Os temas curtos sob os gestos incríveis do maestro Masato Usuki

Sua vida artística pode ser dividida em três fases — o que é tradicionalmente aceito. A primeira começa com a mudança para Viena, em 1792. Nove anos depois, em 1801, Beethoven afirmou não estar satisfeito com o que compusera até então, decidindo tomar um “novo caminho”. Tudo parecia levá-lo ao épico e, dois anos depois, em 1803, surge um grande fruto desse “novo caminho”: a Sinfonia Nº 3, Eroica. Ela abre um verdadeiro ciclo épico. A Sinfonia era para ser dedicada a Napoleão Bonaparte, pois Beethoven admirava os ideais da Revolução Francesa e Napoleão. Porém, quando Napoleão autoproclamou-se Imperador da França em maio de 1804, Beethoven retirou a dedicatória de forma pessoal, mas violenta… Foi à mesa onde estava a sinfonia já pronta, pegou a primeira página e riscou o nome de Napoleão tão violentamente que ficou um buraco no papel. Ele apagara a napoleônica referência com uma faca… E que música havia ali!

https://youtu.be/by2TA_yDlJg

O ciclo épico iniciado pela Eroica seguiu com obras verdadeiramente espantosas e originais, que cantavam a força da humanidade, a paixão pela liberdade e a vitória do espírito humano.

Vieram a Sinfonia Nº 5, a Nº 6, Pastoral, as sonatas Waldstein e Appassionata, o Concerto para Piano Nº 5, chamado Imperador, a Fantasia para piano, orquestra e coro. Eram músicas altamente belicosas, intensas, triunfantes e românticas. Importante explicar o título Imperador do Concerto Nº 5 para piano e orquestra. O compositor jamais quis este apelido para o Concerto. Quem deu este nome foi o editor responsável pela publicação da partitura na Inglaterra. Este acreditou ser aquele um Concerto tão grandioso como nenhum outro e o chamou de “Emperor”. O próprio Beethoven não gostou do apelido, mas isso de nada adiantou.

Na época da morte de Haydn, em 1809, ainda na primeira fase beethoveniana, foram anos de grande fertilidade criativa e, junto com as obras citadas, obras-primas brotavam de sua pena como beterrabas. Vieram também o Concerto para Piano nº 4, Op. 58 — recentemente interpretado por André Carrara com a Ospa; os Três Quartetos de Cordas, intitulados Razumovsky, em 1806; e o Concerto para Violino, Op. 61.

(continua)

Beethoven, o surdo imortal que escrevia para o futuro

Beethoven, o surdo imortal que escrevia para o futuro
Sua surdez era trágica do ponto de vista social. No plano artístico, apenas impediu uma carreira como pianista.

Publicado em 16 de dezembro de 2012 no Sul21

Ludwig van Beethoven (16 de dezembro de 1770 – 26 de março de 1827) foi um compositor cuja existência foi tão adequada a romances e filmes que as lendas em torno de sua figura foram se criando de forma indiscriminada, às vezes paradoxalmente. Sua surdez, por exemplo, contribuiu muito para popularizá-lo e para que fosse lamentado. Victor Hugo dizia que sua música era a de “Um deus cego que criava o Sol”, mas quem o conhecesse talvez reduzisse o tom de piedade. Beethoven era uma pessoa absolutamente segura de seu talento – não mentiríamos se o chamássemos de arrogante – e tinha certeza da imortalidade de sua obra. Com toda a razão. Ele tinha a perfeita noção de que criava um conjunto espetacular de obras musicais, que alicerçava uma Obra, noção que inexistia ao tempo de Bach, o qual tratava suas composições como se fossem sapatos a serem entregues ao consumidor. A surdez representava uma tragédia muito mais do ponto de vista social, das relações amorosas e das de amizade, além prejudicar de forma fatal sua carreira de grande pianista, mas nunca foi encarada por ele como um obstáculo no plano da criação.

Aos 31 anos, Beethoven já ouvia muito pouco, mas seguiu compondo até a morte, aos 56 anos | Arte de
Aos 31 anos, Beethoven já ouvia muito pouco, mas seguiu compondo até a morte, aos 56 anos | Arte de Sergio Artigas (http://artigas.deviantart.com/art/Ludwig-van-Beethoven-07-152989423)

Com isso, não estamos dizendo que ele não tenha sofrido muito com o progressivo ensurdecimento. Sofreu a ponto de ter pensado em suicidar-se. Era 1802, Beethoven tinha 31 anos – idade com que Schubert morreu – e pensava em matar-se. Ao que se sabe, nunca fez uma tentativa, mas, se a fizesse e fosse bem-sucedido, talvez ainda assim estivéssemos falando dele.

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Dmitri Shostakovich (VIII – Final)

Na primeira parte do último texto, escreverei uma pequena introdução sobre meu diletantismo radical de escolher um compositor para passar centenas de horas a lê-lo e ouvi-lo. Há muita coisa boa e muita porcaria publicada. Já as gravações são quase todas boas. Ele não é compositor para músicos diletantes…

Os piores textos vêm daquelas alas que atribuem ou buscam descobrir alguma posição política no homem e na obra. Tais posturas, encontráveis tanto à direita quanto à esquerda, com predominância daquela, servem apenas para mostrar a ideologia de quem escreve, o que, convenhamos, pouco interessa neste caso. Depois de muito ler, fica clara a grande e falsa exposição que Shostakovich obteve durante da Guerra Fria, no Oriente e no Ocidente. Ambos os lados o utilizaram como exemplo de suas teses. Ele e outros intelectuais soviéticos foram espécies de caixas pretas nas quais se podia adesivar as mais diversas opiniões e posições. Não, Shostakovich nem representava o governo soviético, nem esteve ao lado dos dissidentes Soljenítsin e Sakharov. Se teve inúmeras oportunidades de permanecer no Ocidente e não o fez (argumento da esquerda), também sofreu horrores com Jdanov, Stálin e mesmo depois (argumento da direita); se escreveu ironias ao estado soviético (Cantata Rayok, argumento da direita), também cantou o heroísmo da revolução em obras não encomendadas. Shostakovich parece-me ter sido alguém cujo pensamento político possuía pouca relevância e que agia sempre como artista e ponto. Só isso? Não, em minha opinião, ele era um comunista muito crítico e reto, com uma complexa relação de amor e ódio ao poder da URSS. Apenas Stálin era cem por cento abominado. Era um artista, não um político; não seguia as linhas tortuosas, às vezes indefensáveis, que os partidos frequentemente defendem. Utilizou-se de temas de sua época, porém a perspectiva sob a qual via o mundo era, curiosamente, sempre foi a dos mortos. Dos mortos pelos nazistas, pelos anti-semitas, pelos soviéticos, por Stálin ou pelo passar do tempo, como em toda sua obra final. Como escreveu Fernando Monteiro, toda grande obra gira em torno de três temas: Amor, Deus e Morte. Acho que Shostakovich, teve muito a dizer sobre todos, principalmente sobre os dois últimos temas; o primeiro pela inexistência, o segundo pela onipresença.

Aliás, com o passar do tempo — o qual tem o bom costume de fazer aparecer a verdade e o pouco recomendável hábito de fazer desaparecer nossos pobres corpos –, a discussão sobre o pensamento político de Shostakovich tornar-se-á ociosa e ficará o que interessa: o homem e o compositor; e este era um sujeito brilhante e produtivo, deprimido e eufórico, que torcia interminavelmente os dedos, como mostram os filmes soviéticos, sentado num trem olhando a chuva bater na janela; que homenageava a pureza de alguns revolucionários e criticava ou expelia seu amargor e sarcasmo aos governantes; que permanecia parado por horas em silêncio com os amigos de que gostava — e só com eles.

Por falar em gostar, o que gosto em Shostakovich é sua música. Ela é produto de um artista apaixonado e inacreditavelmente produtivo. A forma com que ele se relacionou com seu tempo serviu à sua música e não o contrário. Escrevia para ser compreendido e para expressar-se, mas não tinha ilusões de mudar seu país e o mundo, que é como parece pensar quem só vê política na arte de Shostakovich. Sua música, antiquada para os modernos e moderna para os anacrônicos (sem ofensas, sem ofensas…), consegue ser visceral e cerebral, e concordo com este artigo quando seu autor fala no quanto a audição de Shostakovich demandou-lhe subjetivamente. Não é música para ser assimilada nas primeiras abordagens e nem esquecida facilmente. São experiências oferecidas por alguém disposto a buscar tudo o que estivesse à mão para expressar o que desejava e que produziu uma obra séria, sarcástica, deprimente, divertida, inteligente, lúdica e extraordinária: às vezes, tudo ao mesmo tempo.

A seguir, comento as três últimas grandes obras de Shostakovich.

Quarteto de Cordas Nº 14, Op. 142 (1972-73)

Este é quase um quarteto para violoncelo solo e trio de cordas, tal é a proeminência dada àquele instrumento. É um quarteto inspiradíssimo, escrito em três movimentos (Allegretto – Adagio – Allegretto), e que tem seu centro dramático em um dilacerante adagio de 9 minutos. Não consigo imaginar uma audição deste quarteto sem a audição em seqüência do Nº 15. Eles, que costumam aparecer juntos, seja em vinil ou em CD, formam, em minha imaginação, uma só música.

Quarteto de Cordas Nº 15, Op. 144 (1974)

Este trabalho, assim como a sonata a seguir, são tidas como obras-primas e seriam os dois principais “réquiens privados” de Shostakovich. Concordo.

O que dizer de um obra escrita em seis movimentos, em que quatro deles são adagio e os outros dois são adagio molto, sendo que, destes dois últimos, um é uma marcha funeral e outro um epílogo…? Ora, no mínimo que é lenta. Porém, como estamos falando do Shostakovich final, estamos falando de uma obra que tem como fundo a morte. Há três movimentos realmente notáveis nesta música: a Serenata: Adagio, a Marcha Fúnebre – Adagio Molto e o musicalmente espetacular Epílogo – Adagio Molto. O Epílogo recebeu vários arranjos sinfônicos e costuma aparecer — separadamente ou não do resto do quarteto — em gravações orquestrais.

Sonata para Viola e piano, Op. 147 (1975) – A Última Composição

Esta é a última composição de Shostakovich e uma de minhas preferidas. Ele começou a escrevê-la em 25 de junho de 1975 e, apesar de ter sido hospitalizado por problemas no coração e nos pulmões neste ínterim, terminou a primeira versão rapidamente, em 6 de julho. Para piorar, os problemas ortopédicos voltaram: “Eu tinha dificuldades para escrever com minha mão direita, foi muito complicado, mas consegui terminar a Sonata para Viola e Piano”. Depois, passou um mês revisando o trabalho em meio aos novos episódios de ordem médica que o levaram a falecer em 9 de agosto.

Sentindo a proximidade da morte, Shostakovich escreveu que procurava repetir a postura estóica de Mussorgsky, que teria enfrentado o inevitável sem auto-comiseração. E, ao ouvirmos esta Sonata, parece que temos mesmo de volta alguma luz dentro da tristeza das últimas obras. A intenção era a de que o primeiro movimento fosse uma espécie de conto, o segundo um scherzo e o terceiro um adágio em homenagem a Beethoven. O resultado é arrasadoramente belo com o som encorpado da viola dominando a sonata.

Os primeiros compassos da Sonata ao Luar, de Beethoven, uma obra que Shostakovich frequentemente executava quando jovem pianista, é citada repetidamente no terceiro movimento, sempre de forma levemente transformada e arrepiante, ao menos no meu caso… O scherzo possui uma marcha e vários motivos dançantes, retirados de uma outra ópera baseada em Gógol — seria sua segunda ópera composta sobre histórias do ucraniano, pois, na sua juventude ele já escrevera O Nariz (1929) — que tinha sido abandonada há mais de trinta anos. Outras alusões são feitas nesta sonata. Há pequenas citações da 9ª Sinfonia (de Shostakovich), da 4ª de Tchaikovski, da 5ª de Beethoven, da Sonata Op.110 de Beethoven, de Stravinsky, Mahler e Brahms. E a abertura da Sonata utiliza trecho do Concerto para Violino de Alban Berg, também conhecido pelo nome de “À memória de um anjo”, o qual é dedicado à filha de Alma Mahler, Manon, morta aos 18 anos, com poliomielite.

Creio não ser apenas invenção deste ouvinte- – há uma constante interferência do inexorável nesta música, talvez sugerida pela intromissão de temas de outros compositores na partitura, talvez sugerida pela atmosfera melancólica da sonata, talvez por meu conhecimento de que ouço um réquiem. O fato é que Shostakovich estava aguardando.

Shostakovich morreu sem ouvir a sonata, que foi estreada num concerto privado no dia 25 de setembro de 1975, data em que faria 69 anos.