Pavimentando a estrada: o Concerto para Piano Nº 25, K, 503, de Mozart

Pavimentando a estrada: o Concerto para Piano Nº 25, K, 503, de Mozart

Por Georg Predota, na Interlude
Tradução livre do blogueiro

Uma pegadinha: sabe que importante composição de Wolfgang Amadeus Mozart teve que esperar 147 anos depois de sua morte antes de ser executada novamente? A resposta é verdadeiramente surpreendente, pois envolve um trabalho de um gênero muito popular: é um dos últimos de seus concertos para piano. E, se você disse que foi o Concerto para Piano Nº 25, K. 503, você teria acertado. E por que nenhum pianista ou maestro tocou este concerto por quase um século e meio?

Sabemos que Mozart estreou o trabalho em 5 de dezembro de 1786 em Viena, um dia depois de ter completado a composição. No dia seguinte, Mozart estreou uma nova Sinfonia para Praga — a de Nº 38, K. 504, apropriadamente apelidada de “Praga” — e conduziu uma performance de Figaro. Não há registro de Mozart tocando seu novo concerto para piano em Praga, mas o fez novamente em 7 de abril de 1787 em Viena e em 12 de maio de 1787 em Leipzig. E a próxima apresentação deste trabalho aconteceu somente em 1934!!! Nesta ocasião, o grande Artur Schnabel foi o pianista sob a regência de George Szell com a Filarmônica de Viena. Ainda demorou mais uma década até que o trabalho finalmente assumisse seu lugar de direito no repertório. Então, o que deu errado?

Quando ouvimos o Nº 25, K. 503, fica claro que Mozart estava trabalhando em algo novo e único. Por um lado, oferece uma incomparável grandeza e um senso de integridade estrutural que — particularmente durante o tempo de Mozart — não era comumente associado ao gênero do concerto. E o que devemos dizer da exibição extravagante de contrapontos que permeia os movimentos externos? Além disso, o concerto é grandiosamente marcado, incluindo trompetes e percussão, mas surpreendentemente omitindo os clarinetes, um dos instrumentos favoritos de Mozart. Mais: não temos certeza se Mozart planejou uma cadência no primeiro movimento — é uma dos seus composições mais difíceis de executar. Essas observações iniciais tornam muito óbvio que essa composição simplesmente não atendia às expectativas do público de Mozart. Certamente, eles gostavam de melodias mais charmosas, de uma interação mais lúdica entre orquestra e solista, de frases engraçadas, modulações incomuns e surpreendentes e, acima de tudo, lirismo operístico. Para ser justo, o Finale contém uma adaptação de um tema tirado de Idomeneo, mas é claro que trata-se de território de “ópera seria”. No evento de Schnabel e Szell, os críticos de música, em pleno 1934, ainda chamavam esse concerto de “frío e sem originalidade”.

Bem… Não é pouco original, mas decididamente sinfônico o movimento de abertura — é do mundo sonoro da Júpiter — e claramente operístico no movimento do meio e no Finale. Deste modo, ele ultrapassava as fronteiras entre gêneros distintos. De acordo com o H.C. Robbins Landon, o K. 503 é “o trabalho onde Mozart resolveu de forma mais brilhante e perfeita os problemas estruturais, dramáticos e musicais que ocuparam tanto de seus melhores esforços operísticos”, é o concerto que “continha a essência da abordagem de Mozart para a forma sonata: a unidade dentro da diversidade”. Visto dentro deste contexto, não é de surpreender que audiências e artistas não pudessem entender este trabalho altamente sofisticado e sutil. Afinal, hoje sabemos que ele apontava para o futuro. Infelizmente, foi deixado para Ludwig van Beethoven a chance de realizar este futuro, especificamente em termos de grandeza de escala, espaço formal e caráter épico em seus concertos para piano. É claro que Mozart poderia ter expectativas inteiramente diferentes do gênero concerto, já que seus dois últimos esforços aderem a outro caráter. Seja como for, o Nº 25, K. 503 corajosamente rompe as barreiras da forma de concerto altamente estilizada que Mozart herdou e abre o caminho para a incrível variedade, diversidade e originalidade do gênero no século XIX.

Alguma coisa sobre Mozart

wolfgang-amadeus-mozartWolfgang Amadeus Mozart nasceu em 27 de janeiro de 1756 em Salzburgo que, na época, tinha por volta de 10.000 habitantes. Salzburgo localiza-se numa das rotas em que se entrecruzavam os trajetos germânicos e italianos. Por isso, recebia influências dos dois lados e isto significa muito em termos de Mozart, um compositor que se estabeleceu e uniu as duas maiores tradições musicais europeias. O menino Wolfgang nasceu em uma família unida e amorosa. Seu pai, Leopold, era compositor. Tratava-se de uma criança emotiva e terna; queria aprender tudo, mostrando predileção pela matemática e pela música. Seu maior passatempo era o de inventar e contar histórias para si mesmo. Ao seis anos, ao começar sua educação musical em família, logo demonstrou que podia executar e compor pequenas peças ao cravo da mesma forma com que inventava histórias. O mundo perdeu um contador de histórias e ganhou um músico imenso a também nos contar histórias. A família não deu muita atenção ao compositor, mas resolveu que o pequeno virtuose poderia gerar dinheiro, tornando-se uma glória tanto familiar quanto para a corte do príncipe-arcebispo de Salzburgo. Sempre vigiado pelo pai e tendo um porto seguro em sua cidade natal, o menino-prodígio viajará loucamente (ver as viagens que fez aos 10 anos, em 1766, por exemplo) dando concertos por toda a Europa.

Para que os menos musicais pudessem reconhecer o virtuosismo do garoto, faziam-no realizar bobagens de cão amestrado, tal como tocar por cima de um pano que cobria o teclado ou com os olhos vendados. Era afagado, bem pago e sentava-se no colo de príncipes e arquiduquesas. Porém, isto foi antes dos dois grandes encontros. O primeiro encontro que mudaria Mozart foi com Johann Christian Bach, filho de Johann Sebastian e criador do estilo que foi inteiramente adotado e hiperdesenvolvido por Mozart. Mozart ouviu-o tocar em Londres e a impressão ficou-lhe para sempre. Mesmo. Se algum desavisado ouve casualmente alguma obra de Johann Christian, diz na hora: “É Mozart”. Ouvindo com mais atenção, sentirá tratar-se de um Mozart fraquinho, sem aquela imaginação pululante. Como Johann Christian fora o “Bach de Milão” antes de ser “o de Londres”, trouxe modelos italianos ao compositor. A face germânica de Mozart parace ter vindo de seu amado Haydn, a quem dedicou vários quartetos de cordas e a quem admirava desmedidamente. Tal admiração era recíproca e tão famosa e bem humorada que há bom anedotário a respeito.

O que as pessoas normalmente não sabem é que Mozart não foi um compositor tão precoce. Foi um virtuose precoce, mas perderia, em termos de precocidade para, por exemplo, Mendelssohn. Não há, na obra de Mozart pré-1781, algo como o bom Concerto para Violino em ré menor de Mendelssohn, composto aos 14 anos de idade. Poucas obras-primas mozartianas foram compostas antes disso. Suas primeiras obras de mestre foram o Divertimento K. 287, o Concerto para Flauta e Harpa K. 299, a Sinfonia Concertante para Violino e Viola K. 364, a Gran Partita, para conjunto de sopros K. 361, a Missa da Coroação K. 317 e a estranhíssima e espetacular Posthorn-Serenade, K. 320; e estas foram todas compostas todas depois de Mozart completar 20 anos. Vejam como a precocidade tem pouco a ver com as alturas que podem ser alcançadas na maturidade: afinal, poucos ousariam ir além nesta comparação entre as obras completas do genial Mozart e do muito competente Mendelssohn…

Em 1781, aos 25 anos, Mozart explodiu. Nestes 10 anos e meio – Wolfgang morreu aos 35 anos – escreveu quase tudo o que ouvimos hoje e, puxa vida, não é pouca coisa. São dezenas de óperas, concertos, sinfonias e música de câmara de melhor qualidade. É algo inacreditável e é realmente complicado apontar uma ou outra deixando tantas obras de lado.

Há um fato que me deixa contrariado na abordagem que as pessoas fazem a ele: muitos falam de Mozart como de um compositor sempre gentil e delicado, representando-o como um lago tranquilo e eternamente ensolarado onde os patinhos nadam alegres, sem sequer desejar bicar e comer os peixes que passam despreocupados por baixo de suas barrigas sempre cheias e felizes. Também estes peixes não desejam nada, apenas aspiram a uma vida feliz entre seus amigos patinhos e os peixes menores, tão lindinhos, que estão ali para o deleite de todos e assim por diante… O mesmo valeria para sua carreira, onde ele seria uma eterna criança, sempre ingênua e injustiçada, sofrendo nas mãos de poderosos e de colegas invejosos. Não é nada disso. Talvez seja necessária alguma vivência para identificar, mas há em Mozart todo um mundo de expressões sem as quais seria impossível a sua música adequar-se tão bem aos sentimentos pungentes exigidos por um Don Giovanni ou por La Clemenza di Tito e à comicidade das óperas bufas O Rapto do Serralho, As Bodas de Fígaro, A Flauta Mágica e Così fan tutte. E há toda uma música de concerto e obras de câmara autenticamente agressivas e desesperadas. É ocioso pensar que quem alcança expressar todos os matizes dos sentimentos humanos seja um palhaço bobinho e talentoso. Mozart tinha experiência de tudo o que produzia. Não era infantil, não era uma porcelana ou um santo intocável, era alguém deste mundo.

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Mas por que Mozart morreu na miséria? Ora, porque tornou-se um artista absolutamente fiel a si mesmo, dando as costas ao gosto vigente na Viena de seu tempo. A partir de 1784, vieram uma sucessão de obras-primas que fez o conservador público vienense torcer seus nobres narizes. Os Concertos para piano em fá, em ré menor K. 466 e em dó maior K. 467, o em mi bemol K. 482, em lá maior K. 488, e em dó menor K. 491, o em dó maior K. 503, a Sinfonia Praga K. 543, os dois Quartetos com piano K. 478 e 493, os dois Quintetos para Cordas K. 515 e 516, o trio Kegelstatt K. 498 e a Missa em dó menor K. 427, assinalaram em dois anos a plena maturidade do Mozart-compositor que teve como resposta a hostilidade de seu público. José II, por ocasião da representação de O Rapto do Serralho (Die Entführung aus dem Serail) observou: “Notas demais, meu caro Mozart”; e obteve a resposta que nunca sairia da boca de um cortesão, mas sim de um artista absolutamente seguro de sua obra: “Nenhuma só a mais, Majestade”.

O público passou a ignorá-lo e apenas retornou ao final de 1791, dois meses antes de sua morte, quando da estréia do espetacular sucesso de A Fláuta Mágica (Die Zauberflöte). Notem que esta ópera estreou em um pequeno teatro de bairro popular em Viena com o nome de Mozart bem pequeno, para não chamar a atenção – aquele mesmo Mozart que já fora o homem mais famoso de Viena teve seu nome mostrado em letras pequenas, sob o nome garrafal do libretista Schikaneder. O sucesso foi avassalador, mas tardio. Restou-lhe tempo apenas para terminar o belíssimo Concerto para Clarinete, K. 622 e de, ironicamente, tentar terminar um Réquiem K. 626, que não escrevia para si mesmo — conforme as lendas românticas gostam de mentir –, mas por encomenda um certo Conde Franz von Walsegg, cujo contrato nada tem de misterioso e que pode ser examinado em Salzburgo. Porém, sabemos que o destino infeliz deste gênio é um convite aos que gostam de romancear tudo. Eu também gosto, mas só quando o assunto é ficção…

Espero com este post ter feito uma pequena incursão amorosa e boêmia na vida e obra de Mozart. Além da memória, utilizei-me de alguns livros e CDs, principalmente da fenomenal História da Música Ocidental de Jean & Brigitte Massin.

Observação final: Este modesto post é dedicado ao maior mozartiano que conheci. É dedicado a meu pai, morto em 1993. Ele fez com que a trilha sonora de minha infância fossem os concertos para piano de Mozart, suas serenatas para sopros e a Posthorn. Conheço tudinho, nota por nota. Ele nunca parava de falar em Mozart, Beethoven e Chopin — Mozart em primeiríssimo lugar, sempre –, assim como hoje posso passar horas falando Bach, Bartók, Beethoven e Brahms. (Não me provoquem!).

(Quando mostraram o Quarteto das Dissonâncias para Haydn, ele disse que era um equívoco, que aquilo não podia ser. Então, lhe disseram: “Mas é de Mozart”. E o velho respondeu: “Bem, neste caso, trata-se de um erro de minha parte. Eu é que não entendi.”).