Um pouco da vida de Johann Sebastian Bach

Um pouco da vida de Johann Sebastian Bach

Para falar de Bach, talvez devamos conhecer um pouco do homem e do ambiente em que viveu. Lembro que Franz Rueb, em seu livro 48 variações sobre Bach, explica o que era a educação escolar no tempo em que Bach era menino. Era algo em torno de 5 horas por dia. Em média, uma hora de matemática e ciências, outra hora para aprender alemão e as restantes 3 horas eram de religião e de cantar música religiosa. Também diz que os meninos eram perigosos à saída da escola. Formavam grupos para cometer pequenos roubos e às vezes perseguiam alguém com pedras nas mãos.

De qualquer modo, a educação terminava quando a família decidia e o filho via de regra aprendia a profissão do pai ou de um parente que admirasse. Claro, os Bach era uma família de músicos, como falarei adiante. E as universidades eram quase impossíveis para quem vivia nas pequenas cidades e principados.

A Alemanha do tempo de Bach não tinha nada a ver com a atual, ela sequer existia. Dividida em pequenos Estados soberanos, dominada majoritariamente pelo luteranismo, cujo impacto na vida cotidiana era fortíssimo, a Alemanha era formada por cortes soberanas. Cada pequeno príncipe, duque ou margrave era senhor em suas terras. A unidade alemã ainda não tinha começado. Cada principado possuía leis e costumes próprios — e, no mais das vezes, uma religião. Eu disse uma. A religião do príncipe (catolicismo, luteranismo ou calvinismo) era a dos seus súditos.

Cada um dos príncipes germânicos tinha seu Kapellmeister, seus cantores e seus instrumentistas, e algumas daquelas cortes tomaram-se centros de música de certo relevo. O que era um Kapellmeister ou Mestre de Capela? “Mestre de capela” é a pessoa que, entre outras obrigações, deve ser responsável pela música de uma igreja. Bach viveu em duas cortes onde foi Kapellmeister: a de Weimar e a de Koethen. A vida nessas cidades pequenas pautava-se pela seriedade, austeridade e gravidade provindas daquela religiosidade que permeava toda a sociedade e regulava a vida de cada indivíduo.

No entanto, na primeira metade do século XVIII, surgiu um elemento novo, o Iluminismo. Um movimento intelectual, em parte sob influência francesa, esboçou-se no interior da sociedade burguesa das cidades alemãs e reagiu contra a tradição luterana e suas estruturas estabelecidas.

Foram 4 as principais forças sociais atuantes na vida e na obra de Bach: as Cortes dos principados, a burguesia urbana, as paróquias luteranas e o Iluminismo. Ou seja, Bach esteve enraizado na sociedade das pequenas cidades alemãs, teve laços que o prendiam à religião luterana, tinha a tentação da vida na corte — da arte sacra e profana — e a cultura Iluminista.

Porém, antes de Johann Sebastian, há os Bach. Eles foram uma família que, longe de constituírem um obstáculo a sua evolução, serviram-lhe como um trampolim de notável potência.

No final do século XVI, o moleiro Veit Bach tocava cítara enquanto olhava o seu grão sendo moído. Ele foi o primeiro Bach conhecido como músico. Até Johann Sebastian, contam-se 33 homens na família: 27 deles foram músicos — organistas, mestres de capela, músicos municipais, violinistas, compositores. O menino Johann Sebastian só via à sua volta irmãos, tios, primos — e seu pai, naturalmente — ligados simultaneamente à música — como a um ofício sólido — e à igreja luterana.

A família Bach parecia ter laços inquebrantáveis com dois desses polos sociais e culturais — à igreja e à música. Não é difícil concluir o poder exercido por essa base familiar sobre a formação do jovem Johann Sebastian. Ele cedo ficou órfão. A família tomou conta dele e o educou. Arranjaram-lhe um lugar como organista — detalhe: ao largar essa colocação, mais tarde, deixou-a para um de seus primos. Ou seja, um Bach nunca estava só na vida. E foi com uma Bach — uma de suas primas — que Johann Sebastian casou.

Seu caminho estava, de certo modo, traçado desde a infância, e as reviravoltas da existência, que em outras circunstâncias teriam podido deixá-lo atrapalhado e isolado, contaram com essa grande e generosa tribo musical.

Johann Sebastian Bach nasceu em 1685, aquele ano espetacular em que também nasceram Haendel e Scarlatti filho. O pai, Ambrosius Bach, que era violinista e “músico municipal” em Eisenach (1), pequena cidade da Turíngia, ensinou o menino a tocar os instrumentos de corda, ao passo que o tio Johann Christoph, excelente compositor e organista na mesma cidade, iniciava-o no órgão. Ainda bem criança, Johann Sebastian fez parte do coro municipal.

Porém, aos nove anos ele já estava órfão de pai e de mãe. Foi seu irmão mais velho, organista em Ohrdruf, que se encarregou de sustentá-lo, ensinando o menino a tocar cravo e composição. Aos quinze anos, por sua própria iniciativa, Johann Sebastian fez-se admitir na escola de São Miguel de Lüneburg (2), onde eram acolhidos jovens pobres com alguma formação musical. Em troca de cantar na igreja, ele recebeu ali uma a educação que provavelmente não receberia em outro lugar, com aulas de retórica, latim, grego, lógica, teologia e, naturalmente, mais música. Lüneburg era uma cidade bem diferente das que Bach havia morado anteriormente: era animada e possuía grande influência da cultura francesa, fosse na música ou na culinária. Talvez seja por isso que Bach decidiu estabelecer-se ali por mais tempo. Trabalhou como cantor em diversos lugares, até que a mudança de voz fez com que buscasse empregos no ramo instrumental. Lá ele aprendeu francês — que era a língua do mundo do espetáculo, da dança, da música de Lully.

Depois, novamente com a ajuda da família Bach, fez sensação em Arnstadt (3), onde havia uma vaga para organista. Foi contratado sem fazer concurso em 1703, com apenas dezoito anos. A adolescência de Johann Sebastian Bach tem qualquer coisa de admirável. Uma espécie de instinto infalível parece movê-lo sem hesitações no sentido de um conhecimento mais amplo. Ele parecia ser dotado de uma maturidade superior à de sua idade, que guiava suas escolhas de maneira precisa. E, lá do fundo da Alemanha, ele descobre a cultura francesa e italiana.

A Itália veio até ele com a música de Frescobaldi. E havia o apelo dos organistas do norte — Georg Bõhm, o velho Reinken e, finalmente, Buxtehude. Para ouvir este último, Bach chegou mesmo a cometer uma estranha fuga: pediu quatro semanas de licença e acabou ausentando-se por quatro meses. Explicando melhor, em outubro de 1705 (20 anos), obteve uma licença de um mês para ir a Lübeck e ouvir o famoso Buxtehude, o mais destacado organista do norte da Alemanha. Bach fez a pé o trajeto de mais de 350 km. Sua visita deve ter sido proveitosa, pois ele não retornou antes de janeiro de 1706 — quatro meses –, e de imediato sua maneira de acompanhar os hinos mudou completamente, o que despertou protestos entre a congregação que, perplexa, estava acostumada a acompanhamentos simples. Este não foi o único dos problemas que Bach enfrentou. Foi censurado pelo consistório pela sua longa ausência e por causa daquelas “escandalosas” liberdades e improvisos ao órgão que confundiam os fiéis. Tendo de acatar as ordens, pouco depois foi censurado por fazer os acompanhamentos demasiado curtos. Além disso, o coro de meninos que ele tinha de reger era tudo, menos competente e dócil, registrando-se vários episódios de confrontos e altercações violentas, incluindo desafios com espada. Logo se tornou claro que ele não mais poderia permanecer em Arnstadt. Aparentemente a derradeira discórdia foi a reprimenda que recebeu por ter acompanhado ao órgão uma donzela cantora — presumivelmente Maria Barbara — numa uma ocasião em que a igreja estava vazia. Importante: naquela época, era proibido às mulheres cantarem nas igrejas. As vozes de sopranos e contraltos eram cantadas por meninos. (Arnstadt)

Então ele rompeu seu contrato tão logo surgiu outra vaga de organista, dessa vez em Mühlhausen, onde também o admitiram depois de uma audição, sem concurso. Casou-se então — tinha 22 anos — com a prima Maria Barbara Bach.

Depois, trocou Mühlhausen (4) pela corte de Weimar (5), com as funções de organista, violinista e compositor. Era, agora, músico “da corte” e não mais um músico municipal ou da igreja — ainda que suas funções fossem, em parte, ligadas à música religiosa. Estava a serviço de um príncipe, não de uma municipalidade ou de uma paróquia. Isso era uma promoção para ele —- mas, de certa forma, uma ruptura com sua tradição familiar.

A proposta que Bach recebeu em Weimar incluía o valor de uma remuneração que era o triplo do que recebia em Mühlhausen, além de que o alojamento de sua família era por conta da corte. Ele recebia ainda adicionais extras e gêneros como, por exemplo, 30 barris anuais da cerveja produzida no castelo e livre de impostos. Ele sempre pedia mais cerveja, por tinha alunos, filhos, família grande e o consumo era pantagruélico. Gente, cerveja é a bebida de Bach.

Esse tempo que Bach passou em Weimar (1708 a 1717, dos 23 aos 32 anos) trouxe-lhe, por outro lado, um enriquecimento musical considerável. Produziu muitas Cantatas e música para órgão. Trouxe tensões, também. O duque que estava no poder era de trato difícil. Bach era mais amigo de seu herdeiro, um melômano apaixonado. Surgiram dificuldades. Ele pediu demissão e acabou preso por um mês — sim, preso por ter pedido demissão, por ter insistido em sair da corte. Passado esse episódio, conseguiu permissão de deixar Weimar por uma outra corte, a do príncipe Leopold de Kõthen (6), onde permaneceu entre os 32 e 38 anos de idade.

E aqui chegamos a, quem sabe, o período mais feliz e importante da vida de Bach. Os cinco anos passados por ele em Köthen tiveram como resultado boa parte da música instrumental de Bach que ouvimos hoje. Até a tristeza pela morte de sua esposa Maria Barbara resultou em música, resultou na Chaconne da Partita Nº 2 para Violino Solo. Há poucos registros de textos escritos por Bach. Porém, quando morou em Köthen, tinha feito uma longa viagem de trabalho e ficara dois meses fora. Ao retornar, soube que sua mulher Maria Barbara e dois de seus filhos haviam falecido. Dias depois, Bach limitou-se a escrever no alto de uma partitura a frase: Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim.

Curiosamente, o cineasta Ingmar Bergman comentou o fato no livro Lanterna Mágica:

Eu também tenho vivido toda a minha vida com isto a que Bach chama “a sua alegria”. Ela tem-me ajudado em muitas crises e depressões, tem-me sido tão fiel quanto meu coração. Às vezes é até excessiva, difícil de dominar, mas nunca se mostrou inimiga ou foi destrutiva. Bach chamou de alegria ao seu estado de alma, uma alegria-dádiva de Deus. Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim.

O príncipe Leopold, de Köthen era inteligente, aberto, agradável e músico (ele era violista). Também reunira em torno de si a melhor orquestra da Alemanha (dezessete músicos, muitos dos quais virtuoses famosos). Lá, Bach gozava não somente de consideração e de bom salário, mas de verdadeira amizade por parte de Leopold e dos que o rodeavam. Essas condições ideais para um artista — ter à sua disposição todos os meios para criar e saber que sua obra é compreendida e apreciada, que artista não sonhou com isso? –, iriam permitir a Bach uma produção abundante. Concertos, sonatas (quase toda a sua música de câmara data dessa época), O cravo bem temperado, as suítes e partitas, as aberturas para orquestra, os Concertos de Brandenburgo…

Muito teria para se falar da música de câmara de Bach, que em sua maior parte data do período de Kõthen: sonatas para violino e cravo, para violino solo e violoncelo solo.

Em Köthen, Bach casou-se pela segunda vez, com Anna Magdalena Wilcken, filha de um trompetista da orquestra e cantora da corte. Manifesta-se, contudo, nesse período, uma insatisfação. E é por onde se pode medir o domínio exercido, consciente ou inconscientemente, pela tradição familiar. O príncipe Leopold era calvinista e, em Kõthen, a música religiosa não tinha qualquer participação no culto. O papel de Bach era, portanto, exclusivamente profano. Ao que parece, Bach teria sentido fortemente a necessidade de voltar a trabalhar para a igreja, como sempre haviam feito seu pai e seus antepassados. Tentou, de início, conseguir um lugar como organista em Hamburgo. Até que apareceu a chance de ir para a Thomasschule [Escola de Santo Tomás] em Leipzig (7).

Então Bach mudou o curso de sua vida e renunciou a todas as vantagens adquiridas. Por um salário menor, escolheu o posto de Leipzig, repleto de inconveniências que não demoraram muito a tornar-se insuportáveis. A Escola de Santo Tomás de Leipzig era uma antiga instituição criada pela Reforma. Meio orfanato, meio conservatório, estava estreitamente inserida na vida da igreja e na da cidade.

A função que Bach exercia já tinha vivido melhores dias. Johann Kuhnau, o predecessor de Bach, era simultaneamente professor de letras, de teologia, professor de música e diretor das atividades musicais da igreja, regente do coro, regente da orquestra e — é claro — compositor. Mas, em 1730, essa função já era anacrônica, tal como a estrutura da escola. E aqui intervém o último dos fatores culturais de que falei mais atrás: o Iluminismo estava provocando uma modificação nas relações e nas estruturas sociais. A Escola de Santo Tomás, com sua organização antiquada, já não correspondia às aspirações intelectuais do século XVIII. O reitor da Escola desejava fazer da Escola de São Tomás algo mais moderno. E a função de Bach era um dos fatores que o atrapalhava. Bach pedia mais recursos para a música religiosa, uma disponibilidade maior dos alunos, enquanto o reitor gostaria de vê-los estudar latim ou grego, de preferência, a gastar horas e horas com ensaios no coro. O impasse era total, e Bach se revelou muito pouco político. Ele apenas brigava e sua música “fora de moda”, não agradava. Ele negligenciava os cursos de latim e os transferia a inspetores. Tudo virou uma grande luta.

A tragédia — pois trata-se autenticamente de uma — é que essa amarga decepção vinha precisamente daqueles para quem havia escolhido trabalhar e consagrar sua vida. Por essa estrutura paroquial ele renunciara à vida fácil da corte e à segurança de Köthen. Ao buscar o modelo social, cultural e religioso que foi o de todos os Bach antes dele e à sua volta, J.S. Bach escolheu um caminho que era já anacrônico e retrógrado.

Os primeiros anos de Bach em Leipzig dão testemunho da felicidade que, no início, a situação lhe proporcionou, o que se pode medir por sua vitalidade criadora: foram 48 cantatas só durante o ano de 1723 — quase uma por semana —, duas Paixões (São João em 1723 e São Mateus em 1729), motetos, e a Missa em si menor em 1733.

Mas, aos poucos, não somente ele se desinteressou da escola, descarregando suas obrigações sobre os inspetores, como se fez mais vagaroso na criação de suas composições: umas poucas cantatas, apenas, ao longo dos vinte últimos anos de sua vida. É que, para Bach, compor era um ofício e como seu ofício parecia ter-se tornado inútil — então ele praticamente se calou. Em Bach não havia a noção de criar uma obra para a posteridade. E a movimentada vida em sua casa, entre filhos e alunos passou a interessá-lo mais.

Os últimos anos de sua vida foram tristes. A música evoluía. O estilo “galante” foi se impondo pouco a pouco. Um compositor menor, mas bom, como Telemann, adaptou-se à perfeição aos novos tempos. Bach não mudou. Seu estilo estava fora de moda. Só uns poucos especialistas o compreendiam. Não escrevia mais que algumas obras difíceis — como A Arte da Fuga –, destinadas a um pequeno número de melômanos capazes de apreciá-las. Recolheu-se a um isolamento altivo e intransigente.

Ainda houve ocasiões festivas, como a viagem à corte de Potsdam, onde seu filho Carl Philipp Emanuel era cravista e durante a qual Frederico II dispensou-lhe honrarias. Mas a saúde de Bach se enfraqueceu. Ele teve catarata e ficou totalmente cego após um charlatão operá-lo. Este charlatão foi o médico John Taylor. A existência de Taylor foi altamente destrutiva para a música. As cirurgias de Taylor incluíam o uso de sangue e de fezes de pombos recém abatidos, além de açúcar e sal. No final de março de 1750, Taylor operou duas vezes a catarata de Bach em Leipzig e o cegou. Bach adoeceu logo após a segunda operação e faleceu menos de quatro meses depois. Oito anos depois, Taylor operou e cegou também Handel, que morreu logo a seguir.

Muito se tem simplificado a personalidade de Bach. Porque teve vinte filhos, porque sua vida transcorreu aparentemente como um fio ininterrupto sem maiores perturbações, sem paixões tempestuosas, sem aventuras, centrada no estudo e no trabalho, resolveu-se fazer dele um modelo de perfeito cidadão, pai perfeito de 20 filhos, marido perfeito, compositor perfeito. Em parte é verdade: Bach constitui um desmentido ao estereótipo da arte maldita, da arte inadaptada, do gênio marginalizado. Parece ter passado pouco por dramas íntimos, mas teve, sem dúvida, sofrimentos e dores. Sua vida nas cortes e nas igrejas, à exceção de Köthen, era a de brigar por mais recursos sendo muito pouco político. Sim, era um brigão, um resmungão. Houve a morte de uma mulher amada, a de numerosos filhos, dos quais dez não chegaram à adolescência. Ou seja, não se deve aceitar facilmente essa ideia de serenidade perpétua.

O que impressiona na vida de Bach, como em sua obra, é uma força e persistência imensas. Não foi um homem amável ou diplomata. Desde a adolescência, Bach parece ter sido adulto. Solucionava seus problemas familiares — duas esposas, vinte filhos, incontáveis alunos — com uma segurança que poucos artistas parecem ter possuído. Se houve serenidade, foi uma conquista. Talvez sua obra contenha sofrimento e dor, sentidas e superadas.

Johann Sebastian Bach

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O fundamento da gramática musical de Bach é o contraponto. Pode-se dizer que tem no contraponto a sua língua materna, sua maneira natural de falar. Bach é o herdeiro de toda a tradição polifónica europeia — digamos, de cinco séculos de polifonia. Uma melodia, para Bach, nunca vem só: engendra por si mesma uma ou muitas outras, independentes e complementares. O pensamento musical de Bach apresenta-se sempre, e da maneira mais espontânea, como uma polimelodia, uma estrutura combinatória em que mais de uma linha musical conserva toda a sua independência melódica.

O virtuosismo de Bach no domínio do contraponto é espantoso. Ele parece capaz de “combinar” qualquer melodia com uma outra, ou consigo mesma, de todas as formas imagináveis.

Homens como Lully e Haendel, por exemplo, pensam a música de outra forma. Com eles, só a melodia principal move-se no tempo; sua harmonização é pensada em função da eficácia imediata do acorde. Bach, no entanto, pensa “simultaneamente” nos dois sistemas, e nisso está a fonte da extraordinária eficácia de sua linguagem musical. Virtuose do contraponto, ou seja, sempre à espreita da “perspectiva” desenhada pelas melodias ao longo de seu desenrolar no tempo, jamais perde de vista o resultado produzido no imediato pela superposição das notas captadas em sua simultaneidade.

Isso explica, também, que Bach não tenha herdeiro musical. Sua síntese é única, porque não se poderia fazer algo assim senão entre 1700 e 1750. A evolução da estética musical torna-a impossível mais tarde. Já no fim de sua vida, Bach era incompreendido e “superado” aos olhos de seus contemporâneos. Seu filho Friedemann, tão próximo do pai no pensamento musical, viveu dilacerado pela impossibilidade de realizar um ideal estético anacrônico.

Bach é ao mesmo tempo um arquiteto e um miniaturista. Mas a força de seu discurso musical, o poder de sua invenção melódica são tais que essas inflexões e essas intenções expressivas acham-se sempre perfeitamente integradas. Uma obra de Bach tem sempre duas dimensões, assemelhando-se de certo modo àqueles quadros flamengos que podem ser decifrados a duas distâncias. A uma primeira distância, admiram-se as linhas, as massas, as proporções, a luz, as figuras, o desenho. Ouve-se uma cantata ou a Paixão segundo São Mateus como quem olha, a dois metros, o retrato de Arnolfini e de sua esposa por Van Eyck. Mas, se chegarmos mais perto, perceberemos, no espelho que está por trás do casal, todo um mundo em miniatura, como um quadro dentro do quadro e que a dois metros não era possível distinguir.

Bastante adaptado a partir de trechos do capítulo sobre Johann Sebastian Bach, publicado no livro História da Música Ocidental, de Jean & Brigitte Massin.

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Sopros estritamente barrocos e algumas mãos pesadas

Sopros estritamente barrocos e algumas mãos pesadas
Rodrigo Calveyra
O flautista Rodrigo Calveyra

Ontem (17), fui ver o concerto da Orquestra de Câmara da Ulbra no Leopoldina Juvenil, com regência de Tiago Flores. O programa foi o que segue:

Haendel (1685 – 1759): Concerto Grosso op. 6 n° 2
Sammartini (1695 – 1750): Concerto in F major (Solista: Rodrigo Calveyra)
Vivaldi (1678 – 1741): Concerto per flautino in Sol M – RV 443 (Solista: Rodrigo Calveyra)
Haendel (1685 – 1759): Concerto Grosso op.6 N° 10

O concerto iniciou bem complicado. O Concerto Grosso, Op. 6, Nº 2, de Handel, foi levado com mão pesada pelas cordas da orquestra e só a cabeleira do maestro Tiago Flores me causava algum prazer. Ela medrou vicejante no último verão e está efetivamente magnífica! Porém, os bonitos jogos entre os dois primeiros violinistas cresceram um tanto opacos, nada barrocos. Não creio que a culpa seja de nosso Tiago Flores, mas da cintura dura de alguns músicos.

Quando veio o Concerto em Fá Maior para Flauta de Sammartini, notou-se claramente que quem tinha espírito efetivamente barroco eram o extraordinário solista Rodrigo Calveyra e o violoncelista Alexandre Diel. Eles tinham a leveza e a sutileza; os outros, a força. É uma questão de adaptação. Muitos não conseguem. O violinista Emmanuele Baldini, por exemplo, faz Mendelssohn ou Tartini com senso de estilo e sotaque, adequando-os aos autores. (Sei de um cara que fala mais de cinco sotaques do interior gaúcho. Eu só sei fazer o meu e dos “magro do Bonfa” dos anos 70 e 80). Enquanto isso, Calveyra é um sujeito que respira música antiga, não sendo necessária a adaptação à qual a orquestra deveria dobrar-se. Já Diel, que eu pouco conhecia, surpreendeu com leveza e baixo contínuo consistentes.

O negócio era ficar com o solista e seu escudeiro Diel. O Concerto para Flautino em Dó Maior — não está errado no programa? — estava espetacular pelo largo espaço que Vivaldi deu ao solista acompanhado pelo baixo contínuo.

Rodrigo Calveyra é um caso à parte. Ele foi o motivo de eu ter ido ao Leopoldina. É um flautista que dá notável dimensão artística e expressiva a seu instrumento. Apaixonado pelo que faz, gosta espalhar conhecimento contando histórias e dando explicações sobre músicas e instrumentos. Tal generosidade também ocorre quando toca. Ele se coloca inteiramente a serviço de ideias e estilos musicais. Seu Vivaldi de ontem teve o exato virtuosismo e estilo exigidos pela obra. O seu bis, do barroco holandês, já foi inteiramente diferente. Nada da alegria vivaldiana, mas sim a vetustez de um barroco mais longínquo. Trata-se de um músico de extrema sensibilidade e sofisticação.

Não assisti o solo de batuta final no Concerto Grosso, Op. 6, Nº 10 de Handel. Preferi ouvir o jogo do Inter, que estava em seus 15 minutos finais.

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