Estudo para uma abordagem a Lucia Berlin (II)

Estudo para uma abordagem a Lucia Berlin (II)

Conhecer a biografia de Lucia Berlin não é fundamental para entender seus contos, mas a relação entre vida x ficção faz com que quase consideremos sua obra como autoficção. “Eu exagero muito e confundo ficção e realidade, mas nunca minto” é uma frase importante que a própria autora proferiu a respeito de seus contos. Seu filho Mark disse que ela escreveu histórias verdadeiras, não exatamente autobiográficas, mas muito próximas de situações vivenciadas. Suas histórias — muitas vezes duríssimas — era o que, incrivelmente, ela contava para fazer seus filhos dormirem e algumas delas chegaram à contos que ela digitava na máquina de escrever até altas horas da noite, ao lado de uma garrafa de whisky que desaparecia rapidamente. Sim, com as pequenas alterações de praxe — nomes, locais, talvez exageros –, ela retirava de sua própria vida o material para os contos. E muitas vezes sem alterações. Por exemplo, a irmã Sally está em vários de seus contos e, bem, sua irmã chamava-se Sally e os acontecimentos que a cercam nos relatos “ficcionais” de Berlin são exatamente os mesmos da biografia da irmã. Esta era mais nova e morreu de câncer na Cidade do México, na vida real e nos contos, etc.

Lucia Berlin teve uma vida surpreendente, quase inacreditável, com muitas mudanças de situação, profissões e cidades, além do alcoolismo como o qual conviveu por décadas. Teve muitos casos amorosos. Parece que os homens apaixonavam-se facilmente por ela, o que não é muito difícil de entender. Foi uma mulher muito bonita, com algo de uma versão em tamanho maior de Elizabeth Taylor no formato do rosto e nos olhos azuis-gelo. Também foi uma professora muito querida por seus alunos, o que é claro sinal de boa expressão, simpatia e talento. Com isso, quero caracterizar uma mulher que devia ser pessoalmente fascinante.

Albuquerque, Novo México, 1954, aos 18 anos

Ela nasceu Lucia Brown em 1936, no Alasca, e morreu em 2004 no dia de seu próprio aniversário, aos 68 anos, distinção que divide com Shakespeare. A família logo se mudou. Seu pai era Engenheiro de Minas e os primeiros anos da escritora foram vividos em campos de mineração nos estados de Idaho, Kentucky e Montana. Em 1941, quando a futura escritora tinha 5 anos, o pai de Lucia partiu para a guerra e sua mãe mudou-se com ela e sua irmã mais nova para El Paso, no Texas, bem na fronteira com o México, onde seu avô era um conhecido dentista. O dentista aparece depois nos contos, claro.

Sim, a segunda história do livro é sobre o avô e é dantesca. Conta como ele arrancou os próprios dentes para colocar em si mesmo uma dentadura que seria sua obra-prima, a réplica perfeita de seus dentes. Ele seria o melhor dentista de El Paso. Detalhe: nas janelas de seu consultório, estava gravado “Dr. H. A. Moynihan. Eu não trabalho para negros”.

Aos 10 anos, Lucia teve a primeira crise de escoliose — como ela diz em vários contos, sua coluna vertebral tinha a forma de um S. Esta foi uma condição dolorosa que a acompanhou por toda a vida e que muitas vezes lhe exigiu o uso de cintas de aço. Aliás, na terceira história do livro, Estrelas e Santos, a escoliose é central. Ela sofria bullying por ser muito alta, meio torta, por usar um aparelho ortopédico nas costas e por responder a todas as perguntas da professora até calar-se para sempre, ao menos naquele colégio, em razão de um fato. Mas chega de spoilers. Só lhes digo que o final de Estrelas e Santos é abrupto e inesquecível.

Logo após voltar da guerra, o pai de Berlin levou a família para Santiago do Chile, onde ele passara a ocupar um importante cargo numa multinacional mineradora. Em Santiago, Lucia embarcou numa existência glamurosa, rica e extravagante. Lá, frequentava muitas festas. Imaginem que seu primeiro cigarro foi aceso pelo príncipe Ali Khan, do Paquistão — que foi vice-presidente da ONU e que casou com Rita Hayworth.

Lucia Berlin (direita) em 1949, ela tinha 13 anos

No Chile, ela terminou a formação escolar, enquanto servia como a anfitriã perfeita para as reuniões dos amigos de seu pai. Depois. a língua espanhola apareceu em muitos de seus contos e ela amava o México, assim como a postura mais liberal das pessoas da América espanhola. Sim, no conto Boa e Má, há um retrato de uma professora comunista que levava a jovem personagem principal para trabalhar para a população pobre durante os finais de semana. A professora queria causar algum desconforto a ela e fazer a cooptação da jovem privilegiada para a causa. Não deu muito certo e não por culpa de nenhuma das duas. Estou evitando spoilers.

Aos 18 anos, em 1954, ela se matriculou na Universidade do Novo México, em Albuquerque (EUA). Logo casou e teve dois filhos. Durante a gravidez do segundo filho, o marido se foi. Berlin completou sua graduação e casou-se com o pianista de jazz Race Newton em 1958 (22 anos). Suas primeiras histórias apareceram sob o nome de Lucia Newton. No ano seguinte, eles e as crianças se mudaram para um loft em Nova York.

Em 1961 (25), Lucia teve um caso com um amigo de Newton, Buddy Berlin, e o novo casal acabou viajando para o México. Berlin tornou-se o terceiro marido dela. Ele era carismático e rico. E bebia muito. Durante os anos 1962-65, mais dois filhos nasceram.

Preciso dizer que todos estes casamentos e filhos estão em suas histórias?

Em 1967, quando Lucia tinha 31 anos, os Berlin se divorciaram. Na época, Lucia estava fazendo um mestrado na Universidade do Novo México. Ela nunca casou novamente.

Os anos de 1971 a 94, isto é, entre os 35 e 58 anos de idade, foram passados ​​em Berkeley e Oakland, na Califórnia. Berlin trabalhou como professora do ensino médio, telefonista, recepcionista de hospital, faxineira e assistente de clínica médica, enquanto escrevia, criava seus quatro filhos e bebia, bebia e bebia. Em 94, venceu o alcoolismo após passar boa parte de 91 e 92 na casa da irmã, na Cidade do México, onde esta estava morrendo de câncer. A mãe morreu em 1986, num provável suicídio.

Em 1994, Edward Dorn levou Berlin para a Universidade do Colorado, e ela passou os seis anos seguintes em Boulder como escritora visitante e, finalmente, professora associada. Neste cargo, ela se tornou incrivelmente popular e amada pelos alunos. Em seu segundo ano, ela recebeu um prêmio da universidade por excelência em ensino.

Os amigos diziam que Lucia Berlin tinha lido tudo e todos e podia falar sobre isso com grande humor e paixão. Fazendo uma interrupção nada a ver, digo que ela acreditava que o mundo de Jane Austen “era tão duro quanto um alcoólatra em um quarto de motel em uma história de Raymond Carver”. Concordo com ela.

Fechando o parêntese, digo que o conteúdo autobiográfico das histórias de Berlin não prejudica a vivacidade de sua narrativa nem a astúcia da escritora. Um fino humor mina a feiura de algumas das situações retratadas. Berlin é assim: escreve coisas que a maioria dos autores ficaria envergonhada de compartilhar, depois recosta-se calmamente enquanto rimos e nos diz “Essas coisas… Bem, elas aconteceram comigo”.

Agora vamos falar sobre o livro Manual da Faxineira.

(segue)

Manual da Faxineira, de Lucia Berlin

Manual da Faxineira, de Lucia Berlin

Um livro extraordinário. Manual da Faxineira (Cia. das Letras, 532 páginas) compila os melhores trabalhos da contista Lucia Berlin. São 43 contos com um humor que guarda certo parentesco com o de Raymond Carver, mas com melancolia e realismo próprios. Berlin faz milagres com o cotidiano, descobrindo momentos sublimes em lavanderias, em casas do meio oeste estadunidense ou da classe alta da Bay Area de San Francisco, em emergências hospitalares, entre operadoras de telefonia e mães em dificuldades, caroneiros, drogados e alcoolistas. Mas como esta brilhante escritora foi a princípio ignorada? Como puderam?

Lucia Berlin (1936-2004) trabalhou de maneira brilhante, mas esporádica, durante as décadas de 1960, 1970 e 1980. Suas histórias são inspiradas por uma infância em várias cidades da Califórnia, Novo México e Texas. Teve também uma glamourosa adolescência em Santiago do Chile, três casamentos, um problema grave com alcoolismo e quatro filhos. Para piorar, Lucia era uma moça alta que sofria de escoliose e usou um colete ortopédico de aço durante seus anos jovens. Depois, sóbria e escrevendo de forma constante na década de 1990, ela assumiu o cargo de escritora visitante na Universidade do Colorado (Boulder) em 1994 e logo foi promovida a professora associada. Em 2001, com problemas de saúde, ela se mudou para o sul da Califórnia para ficar perto de seus filhos. Morreu em 2004, em Marina del Rey. Tudo isso é muito importante porque, em suas histórias, há muito de sua biografia.

Como disse, os contos de Lucia Berlin não foram muito divulgados durante sua vida. Algumas coleções publicadas por pequenas editoras entre os anos 70 e 90 ganharam um pequeno e dedicado grupo de admiradores, como Saul Bellow. As 43 histórias reunidas em Manual da Faxineira são uma poderosa reivindicação por reconhecimento.

Realmente, Berlin pareceu ter o condão de encaixar muitas vidas em seus 68 anos. Criada nos remotos campos de mineração do Alasca e do centro-oeste, ela foi uma criança solitária e abusada no Texas dos tempos da 2ª Guerra; depois uma jovem rica e privilegiada em Santiago; uma boêmia que vivia em lofts nos anos 50, em Nova York; uma recepcionista em um pronto-socorro de emergências no centro de Oakland, nos anos 70. Quando tinha 32 anos, já se casara três vezes, tinha quatro filhos e lutava, ou não, contra o alcoolismo.

Sua vida agitada fornece assunto para suas histórias. Sua alegria também. Há sempre um fundo de bom humor em seus textos. Ela é dura e papo reto, mas a brutalidade é compensada pela compaixão à fragilidade humana e pela inteligência da narrativa. E o prazer de ler acaba sendo maior que a dor. Em Até mais, o casamento com um viciado em heroína é descrito como “tempos de intensa felicidade tecnicolor e tempos sórdidos e assustadores”. A solidão está presente em histórias ambientadas em hospitais, clínicas de desintoxicação, lares e prisões, porém, apesar do território frequentemente sombrio, a escrita de Berlin é caracterizada por um enorme apetite pela vida e de amor. Em Mordidas de tigre, uma história que detalha os horrores de uma clínica de aborto no México, é o calor e a diversão perversa do relacionamento entre a narradora e sua prima glamourosa que permanece em primeiro plano.

Como teve muitos empregos, Berlin é uma cronista aguda de instituições e do mundo do trabalho muitas vezes esquecido — em particular o trabalho de baixo prestígio e baixa remuneração de enfermarias, faxineiras e auxiliares. Em Quero ver você sorrindo, um personagem é descrito como possuindo uma curiosidade compassiva por todos, e o mesmo se aplicava claramente à autora. Algumas das histórias, como Caderno de notas do setor de emergência, 1977, têm abordagem jornalística, mas há sempre um olho no poético:

Se suas bolsas já não foram furtadas, as velhinhas parecem carregar nada a não ser a dentadura de baixo, um folheto com o horário do ônibus 51 uma caderneta de endereços e telefones em que não se acha um único sobrenome.

Berlin credita sua mãe por seus poderes de observação, escrevendo em Mamãe sobre como lembrava de suas piadas e de sua maneira de olhar, nunca perdendo nada.

Lembramos de suas piadas e do seu jeito de olhar, aquele olhar que nunca deixava escapar nada. Você nos deu isso. Essa capacidade de olhar.

Não a de ouvir, porém. Você nos dava talvez uns cinco minutos para te contar alguma coisa e depois dizia “Chega”.

São histórias que capturam o mundo quase invisível ao nosso redor, revelando o banal e o pungente. Em Mijito, uma enfermeira fala sobre as crianças doentes sob seus cuidados. A maioria das crianças não pode chorar. Há apenas lágrimas rolando e este horrível rangido do mundo, como um portão enferrujado, ao fundo.

O estilo de Berlin é direto. Mijito é de verossimilhança quase insuportável. Você pode ser enganado ao pensar que está lendo cartas de uma amiga quando ela fala em frases como “Eu sei, romantizo tudo”. Mas esse estilo coloquial é traído por brutais falas e mudanças súbitas que deixam claro que essas são histórias minuciosamente elaboradas. O narrador de Mamãe passa o tempo todo conversando, finalmente convencendo sua irmã moribunda de que a mãe insensível e bêbada merecia alguma compaixão, antes de revelar na última linha: Eu… eu não tenho compaixão.

A mesma mãe e irmã (Sally) aparecem em muitas histórias, e a natureza parcialmente autobiográfica da coleção faz desta uma experiência de leitura em densas camadas. Personagens e cenários se repetem, e certos períodos são vistos através de filtros diferentes, com o elenco principal e seus relacionamentos entrando e saindo de foco.

Em Voltando para casa, a história final, Berlin observa os hábitos dos corvos de sua varanda:

…mas o que me incomoda é que eu só reparei neles por acidente. O que mais será que deixei passar? Quantas vezes na minha vida eu estive, por assim dizer, na varanda dos fundos, e não na varanda da frente? O que será que me disseram que eu não ouvi? Que amor poderia ter existido que eu não senti?

Ponto de Vista, Mijito e Incontrolável são contos inesquecíveis. Dos melhores que li até hoje. Berlin sofreu muito, mas seu poder de observação e arrebatador virtuosismo literário farão dela um clássico, se o mundo não acabar nos próximos anos.

Com informações do The Guardian.


Luiz Ruffato escreveu:

Raros são os autores que conseguem construir uma obra homogênea, em que nós, leitores, não temos que descer de altíssimos picos para percorrer vales profundos. Mais raro ainda encontrar um autor que, sendo unicamente contista, não perca a mão e ofereça, em meio a jóias, algumas bijuterias. Por isso, é surpreendente esse livro. São 43 contos – dos 76 que a Autora escreveu entre ao longo de sua curta vida – e todos eles, sem uma única exceção, são ótimos. O mais interessante é que, no caso, é impossível separar a biografia da Autora de seus textos ficcionais. Até porque eles são declaradamente autobiográficos, ou, como ela mesma afirma: “Eu exagero muito e misturo ficção com realidade, mas nunca chego de fato a mentir” (p. 410). Quase sempre a história gira em torno de uma narradora, mãe de quatro filhos, que tem sérios problemas com bebida, e uma irmã que agoniza no México, padecendo com um câncer terminal. Os nomes dos personagens podem variar, eventualmente, mas eles são sempre reconhecíveis. E isso dá um caráter peculiar ao livro, pois é como se estivéssemos desdobrando episódios de uma biografia, preenchendo lacunas de uma vida: a infância de uma menina com sérios problemas na coluna (escoliose) em regiões mineradoras dos Estados Unidos ou no Chile, acompanhado o pai, geólogo, e a mãe, alcoólatra, e a vida adulta entre a Califórnia (Oakland), Texas (El Paso) e Novo México (Albuquerque) e a Cidade do México, em estranhas aventuras imersas em álcool e culpa. Embora haja diversas histórias sobre alcoólatras e drogados, a Autora não glamuriza esse universo (como fazem certos autores que romantizam essa tragédia), e sim mostra como todos são afetados pelo vício, uns mais outros menos, mas sem qualquer moralismo – apenas exibindo vidas que, em algum momento, descarrilharam e tombaram… Interessante também é ver estampadas nestas páginas personagens pouco presentes na literatura estadunidense – os párias do capitalismo, índios miseráveis, mexicanos ignorados, negros pobres, todos empurrados para o submundo, de onde a Autora os resgata, restituindo-lhes a dignidade, e de maneira admirável. O cerne de suas reflexões poderia ser sintetizada em suas próprias palavras: “Medo, pobreza, alcoolismo e solidão são doenças terminais” (p. 119). Para tentar elucidar essa questão – “(…) é a morte que eu não entendo” (p. 327) – que o leitor deve mergulhar em cada página e deixar-se impregnar de cada palavra. O resultado, pode ter certeza, é magnífico.