Mattinata, de Fernando Monteiro

Em italiano, mattinata significa o período da manhã. Se escrevermos a palavra no Google Images, encontraremos fotos da uma luminosa praia de mesmo nome na Regione Puglia, de uma Cafeteira da Arno e do mais recente livro de Fernando Monteiro. O livro é formado por três poemas narrativos longos: Mattinata, Escritos no Túmulo e E para que ser poeta em tempos de penúria? Mattinata é uma coedição da Nephelibata (SC) e da Sol Negro (RN). Parabéns a ambas, que em parceria trouxeram à tona esta coleção de poemas de Monteiro, do qual já conhecíamos os romances e o extraordinário poema Vi uma foto de Anna Akhmátova.

Se a Mattinata-cidade das fotos é bela e luminosa, podemos dizer o mesmo das paradoxais luzes que invadem lentamente o quarto do casal que se decidiu pela separação na noite anterior. Mas aqui beleza é a descrição da tristeza e da decadência de uma relação. Ele, o homem do poema, despertou, ela dorme, ou finge. O ritmo é clássico.

divididos pelas sombras do que foi dito
e do que foi calado antes da alba

(…)

Algum deus belicoso
seguiu o táxi na volta
e esteve aqui
neste apartamento em que outros
igualmente se separaram
após uma tempestade.

Houve duas tempestades, uma lá fora que derrubou placas e molhou a rua, e outra interna:

Com quem você falava ao telefone?

E, antes quem era aquele
na outra mesa, no maldito reaturante indiano
que seguirá existindo
depois da nossa separação

Aos poucos, de forma incompleta, através de detalhes, impressões e livres-associações, ganhamos alguns subsídios para espreitar o que houve e a tristeza que virá. Há até uma referência a um jogo entre Benfica e Barcelona que me fez ir inutilmente pesquisar a data de seus jogos mais importantes a fim de saber aproximadamente quando aqueles dois separaram-se naquela manhã chuvosa da Via Aurelia. A descrição desta manhã noturna…

aquele que compra um jornal
e o que não compra,
preferindo não saber
sobre a mais nova catástrofe.

A nossa?

Ora, não é sequer
um caso,
uma notícia vaga,
um boato
cruzando a rua à frente dos que tiveram de
acordar
antes das aves.

O muito elegante Mattinata é o poema que prefiro no livro, apesar da importância sociológica dos dois seguintes. Ele ocupa 48 páginas do volume de de 81. A seguir vem Escritos no túmulo todo em caixa alta e itálico, de modo a nos endereçar às lápides de antigos — certamente antiquíssimos — cemitérios. O objetivo de Monteiro não é o de nos explicar a antiguidade, mas de explicar nosso tempo a partir dela. Afinal, hoje, a …

PORNOGRAFIA GROSSA
GRASSA POR TODA PARTE
PORÉM PINTURAS DE DOIS
MIL ANOS SÃO INTER
DITAS “LICENCIOSAS”
POR EXIBIREM O ARDOR
DO AMOR DE UM HOMEM
POR OUTRO REFLEXO
NO VIDRO A FOSFORECER
NA PELE IRIDESCENTE
DOS AMPLEXOS

A interdição de nossos dias a algo que deveria — por que motivo? — ser necessariamente sacro e anódino, chega a ser cômica, não fosse antes burra e preconceituosa. Mas não devemos restringir o símbolo de Escritos no túmulo ao “amor de um homem a seu reflexo”, mas àquilo que o passado pode nos apontar. Porém, não resisto e sigo reduzindo e dizendo que o citado símbolo é tanto mais poderoso por usar como vetor aqueles que hoje estão na ponta de lança das transformações sociaisComo sempre, a história e o que se deseja que esteja morto vêm apontar seus dedos trêmulos para nós.

Um dedo lastimavelmente trêmulo também está apontado para nós no terceiro poema, E para que ser poeta em tempos de penúria? Intenso, sociológico e grave, ele tem como foco a vida — e principalmente a morte — de Roberto Piva (1937-2010). Poeta pobre, solitário, vítima de Parkinson, transgressor ao estilo de Pasolini, fragmentário e pagão, teve uma morte anônima que serve como modelo para um mundo em consumação não apenas física e planetária, como de ponto de vista prévio: o cultural — pois parece que nosso desmonte será por partes.

Tudo tão verdadeiro quanto distante
da essência de outras penúrias
entre esquinas de garoas
e galerias de arte em vernissages
cujo rumor de cálices noturnos
chega aos guardadores de carros
como a música do paraíso
de inalcançáveis perdizes.

Para que ser poeta em tempos assim?

Quando Piva faleceu (e faz pouco tempo),
evitaram cuidadosamente
a simplicidade descocertante
da interrogação relativa
aos Tempos de Penúria

E, quando uma moça pede para Monteiro dar uma palestra, o diálogo:

“Eu aceito, mas vou para falar sobre o Roberto Piva”.

Ela: “Quem?”
Eu: “Piva, o poeta que acaba de morrer.”
Ela: “Era seu amigo?”
Eu: “Não”.
Ela: “E por que o senhor quer falar sobre ele?”
Eu: “Porque um de seus últimos versos não me sai da cabeça”.
Ela: “É tão bonito assim?”
Eu: “Versos não precisam ser bonitos. Versos precisam ser verdadeiros.”
Ela: “Diga ele”.
Eu: “Diga-o”.
Ela: “Eu não sei qual verso é esse que não sai da cabeça do senhor.”
Eu: “Eu sei.”
Ela: “Então, diga”.
Eu: “E para que ser poeta em tempos de penúria?”

O pequeno livro de Monteiro, tão bom e relevante, teve uma primeira edição de poucos exemplares. Provavelmente, Mattinata não irá espraiar-se por aí se não houver outras edições ou meios de distribuição. É impossível não relacioná-lo com “penúria”, mas não a financeira. O desinteresse pelo grandes temas, ainda mais quando incomodam,  ainda mais quando expressos em poesia, são sintomas graves de outras penúrias.

.oOo.

Não obstante, não falo sozinho. Mattinata já foi multi criticado de forma sempre elogiosa. Vejamos:

Nelson Patriota
Entrevista na Tribuna do Norte
Lívio Oliveira no Substantivo Plural
Diogo Guedes no Jornal do Commercio
José Castello no Valor Econômico
José Castello em O Globo

Fernando Monteiro

Pelo telefone

O que há de ficção neste texto de Fernando Monteiro? Olha, acho que bem pouco… Retirado daqui. Ah, Monteiro está publicando Mattinata.

– Alô (com indisfarçável má vontade)… Te disse pra não telefonar. Nunca.
– Sei disso. Só que…
– “Só que” nada, pô. Vou desligar.
– Ouve, primeiro. É sobre a loura.
– Pior ainda. Esse assunto é outro Vietnam, aqui dentro.
– Vietnam que vai piorar. Nas próximas horas.
– Cara, cê tá onde?
– Que pergunta é essa? Brentwood. Em frente da casa da vagabunda, onde montamos a…
– Não sei de nada. Não sei com quem tô falando, nem conheço loura nenhuma.
– Frescura. Ouve, que é melhor. Ela pirou.
– Novidade nenhuma. Frank me disse.
– O quê?
– Que ela pirou. Aliás, sempre foi pirada…
– Aquele cantorzinho sabe de merda nenhuma.
– Você não diz que ela “pirou”? Então, ele sabe.
– Pirou m-e-s-m-o, eu quis dizer. Não é só uma frase.
– Que fase?
– Frase. Não é só conversa fiada, isso dela pirar. Tô falando de loucura mesmo… Ela tá lá na casa, deitada, sem tomar banho…
– Grande novidade.
– Pera aí. E menstruada sem tampão…
– Pô.
– Isso num é nada. Espera pra ouvir o resto.
– Devia tá dopadinha, quetinha, isso sim. A gente paga a porra de um médico…
– A mulher ficou fora de controle, Bob. Agora, ela ficou.
– Como assim? Conheço a doida bem demais.
– Conhece nada…

(Silêncio, logo depois que surgem uns ruídos de telefonia)

– Que é isso? Tá escutando?…
– Sei lá. Te disse pra não ligar.
– Desligo?
– Pera aí. Vou dar outro número.
– Pra ligar?
– Anota, engraçadinho: 33-07-66-02.
– DF?
– Claro, né? Saigon é que não é.

(Curto intervalo)

– Alô.
– Pronto. Vai, fala.
– O que foi aquilo?
– Menor ideia. Isso aqui é vizinho do Oval, pô. Todo mundo grampeia todo mundo…
– Eu sei. Trabalhei aí quase a vida toda, lembra-se?
– Pois é. E a loura? Por que você acha que ela pirou mais ainda?
– Hein? A outra linha tava melhor.
– Esta é mais segura.
– Fala mais alto.
– Uma ova. Tenta escutar mais, tira a cera do…
– Não tô escutando quase nada, agora.
– Merda. Não posso GRITAR.
– Agora tô ouvindo.
– A loura. Por que ela parou?
– Parou de quê?
– Você num disse que ela pirou? Ela parou de ser razoável. Com o Jack.
– É pior do que pensam. A gente gravou ela dizendo que vai falar. Tudo.
– Tudo o quê?
– Tudo.
– …
– Alô?
– Sobre o quê?
– Sobre a ligação com vocês.
– Pera aí… Que ligação?
– Dela. Contigo e com teu irmão.
– Com o Presidente?
– É. Com o Procurador e com o Chefão.
– Não tem “chefão” aqui.
– Tem.
– Você tá falando do Presidente dos Estados Unidos, idiota.
– Teu irmão sempre armou. É doente pela coisa.
– Cala a boca.
– Vi Jack de cueiro. Você nem era nascido ainda. Vão pra merda, os dois.
– …
– Alô.
– Escuta. Tás falando o que não dev…
– Entende, Procurador, vou soletrar: num-dá-mais-tempo. Só isso.
– Pra quê?
– Cê num tava querendo “conversar” com ela de novo? Não dá mais.
– Claro que dá. Nem que tenha que bater na suja.
– Já falei: ela pirou. MM pirou. Diz até que abortou.
– Como é?!
– Tô falando: ela pirou.
– Para de falar “ela pirou”. Que negócio é esse de aborto?
– Ela está disposta a jogar merda toda no ventilador, Robert. Sério. E basta ela fazer uns telefonemas, convocar os putos da imprensa…
– Pô. A merda cobre.
– Então. E enche o Oval (e o país inteiro): de sujeira, de esperma, de droga, de Sam Giancana…
– Esse tá ferrado, o sacana.
– Tá nada. O Sam tá é muito puto com vocês dois…
– Me respeita, cara. E respeita o Presidente.
– Cacete que eu respeito. Dois fudedores comendo todo mundo…
– Cala essa boca.
– VOCÊ me escuta, garoto. Os dois armam, e sobra pra quem? Pra mim. Pro “tio” velho.
– O que é que ela quer? Dinheiro?
– Ela tem.
– Uma merreca.
– Mas assim mesmo ela não quer mais merreca de grana, santo deus. Entende isso, cara. Nem tudo é dinheiro.
– Ô “São Franciscuzinho”, desembucha de uma vez. O que é que a porra da mulher tá querendo?
– O que ela quer? Ela quer ferrar.
– Alô?
– FERRAR. Ela quer isso! Chamar todo mundo, dizer: “sabe quem me come? Eles, os dois…”
– Isso é loucura. Fica calmo.
– Foda-se. Tô calmíssimo. E vendo ela aqui, na minha frente, pelo monitor. Tá possuída, a doida…
– Desliga…
– Desliga o quê? Meu monitor?
– O telefone! VOCÊ tá gritando, cacete.
– É ela que vai gritar. Pra todo mundo ouvir. Jornal, rádio, TV, o escambau…
– …
– Vai gritar que quer casar com o Jack Grandão.
– …
– “Happy birthday Mr. President”… (canta em falsete, irônico)
– …
– Parece até que eu posso ver o casalzinho, e Bob, o mister Procurador… de padrinho.
– CALA A B-O-C-A.
– Eu to avisando: essa mulher é pior que um ataque de míssel russo.
– Deixa eu falar com o Jack.
– Agora?
– Agora. Ele tá vindo pro Oval. E já tá encarando…
– O quê?
– A solução.
– Final?
– Hum-hum.
– Aquela?
– Você próprio acaba de dizer que ela agora ficou doida pra ferrar todo mundo.
– Tá gravado aqui. Posso mandar a fita.
– Manda não. Tu tem razão. Agora, tem é que parar essa desgraçada.
– Bom, isso aí já é falar como homem. Nembutal?
(Silêncio, por um momento)
– Bob? Alô?…
– Tô aqui.
– Nembutal?
– É. Nembutal. Mas, SL. Serviço limpo.
– Autópsia, tudo garantido?
– Cem por cento. Altamente profissonal, nem preciso dizer.
– Sim, mas olha que é a MM, hein? Num é uma qualquer, como aquelas que…
– Escuta, eu vou desligar. Tá ficando perigoso. E Jack chegou lá no Salão. Acendeu a luzinha aqui.
– E o irmãozinho vai falar claro com ele?
– Vou. Mas ele mesmo já tinha pensado em se livrar agora, bem antes da campanha.
– Ok. E eu fico esperando autorizar “despirar” a loura forever?
– Fica. Mas isso não vai ser pelo telefone.
Um click, desligando.

NB:
A atriz Marilyn Monroe, de 36 anos, foi encontrada morta em menos de 24 horas depois dessa conversa por mim transcrita na manhã de 10 de agosto de 1962.
Os jornais informaram mais ou menos assim: “MM faleceu enquanto dormia em sua casa de Brentwood, na Califórnia, aparentemente por efeito de um dose letal de barbitúricos ingeridos pela atriz com a intenção de acabar com a própria vida…”
E hoje está até na geleia geral da Wikipédia: “Ninguém sabe de fato o que aconteceu naquela noite. Ouviu-se o barulho de um helicóptero. Uma ambulância foi vista esperando fora da casa dela antes que a empregada desse o alarme. As gravações de seus telefonemas e outras evidências desapareceram. O relatório da autópsia foi perdido. Toda a documentação do FBI sobre sua morte foi suprimida e os amigos de Marilyn que tentaram investigar o que aconteceu receberam ameaças de morte”.