Karajan: o maestro super ego

Karajan: o maestro super ego

MAIS ACLAMADO REGENTE DO SÉCULO 20, HERBERT VON KARAJAN, QUE ESTARIA FAZENDO CEM ANOS, ESTERILIZOU A IMAGEM DA MÚSICA ERUDITA PARA AS FUTURAS GERAÇÕES, DIZ CRÍTICO INGLÊS

NORMAN LEBRECHT

Quando acordo ao som da música de Herbert von Karajan [1908-89] no rádio, esfrego os olhos para ter certeza de que Mao Tse-tung não continua no poder e a União Soviética deixou mesmo de ser uma potência mundial.

Houve um momento, definido pela forte presença de ditaduras, no qual Karajan parecia ser o fundo musical inevitável. Nos anos 70 e 80, ele era onipresente, uma presença cultural imponente cercada por admiradores nos mais altos postos. Afinal, era tudo que um político decaído aspirava ser: ultra-elegante e onipotente.

O centenário de seu nascimento, no último dia 5, está sendo celebrado por um dilúvio de produtos de uma indústria musical que ele conduziu à prosperidade e depois lançou à quase ruína.

Se o mercado de música clássica convencional se estreitou imensamente nos cinco últimos anos, isso é consequência inevitável dos excessos da era Karajan. Se a própria música clássica é vista por muitos (injustamente) como elitista, antiquada e retrospectiva, deve-se agradecer a Herbert von Karajan por tê-la transformado em uma forma de entretenimento seguro, empresarial, apresentado em festivais cujos preços são proibitivos ao espectador comum.

Trata-se de afirmações que mal requerem prova, mas continuam a existir nostálgicos que defendem a “grandeza” de Karajan em certas seções da imprensa.

O termo não significa nada em termos críticos, e até mesmo alguém um dia ousado como Simon Rattle se sente obrigado, à frente da Filarmônica de Berlim, que por tanto tempo foi dirigida por Karajan, a homenagear o velho tirano no ano de seu centenário. Quem sabe reviveremos também o culto a Brejnev [1906-82, presidente da União Soviética].

Karajan, como diretor musical e negociante escuso, dominou o cenário em Berlim e Salzburgo dos anos 1950 em diante, pagando cachês extravagantes a seus amigos e usando os ensaios de sua orquestra, cujos salários eram pagos pelo Estado, como sessões de gravação de discos comerciais.

Karajan enriqueceu de forma desmedida e levou muitos de seus músicos à prosperidade com ele, deixando uma fortuna avaliada em US$ 500 milhões [R$ 844 milhões], estruturada de maneira a evitar impostos, e uma pilha de 900 discos.

Ele manipulou a indústria fonográfica, dividindo para conquistar, sempre trabalhando com dois dos grandes selos e cortejando um terceiro. Em dado momento, ele respondia por um terço da receita da Deutsche Grammophon (DG), a maior gravadora mundial de música clássica.

Beleza artificial

Quase tudo o que regia soava muito liso, mais ou menos como camisetas de algodão que passaram por um banho de amaciante de roupa.

Não importa que estivesse executando Bach ou Bruckner, “Rigoletto” [de Verdi] ou uma rapsódia, a música acompanhava uma linha inconsútil de beleza artificial que devia menos à inventividade do compositor do que à intenção do regente de manufaturar um produto reconhecível.

Criado em Salzburgo depois da Primeira Guerra Mundial -uma cidadezinha que se tornou a segunda maior do Estado austríaco encolhido pela derrota-, Karajan aprendeu os perigos de viver em posição de fraqueza.

Quando Hitler subiu ao poder, em 1933, ele aderiu ao Partido Nazista não só uma como duas vezes, e foi recompensando com um posto oficial em Aachen -o mais jovem diretor musical do Reich.

Não demorou para que começasse a ser elogiado pelos jornais controlados por Goebbels como “Das Wunder Karajan” (o milagre Karajan), em contraste com Wilhelm Furtwängler, maestro que não merecia a confiança política do regime. Karajan aprendeu com Goebbels como dividir para governar, entre outras artes obscuras da política.

Exibiu seus talentos sombrios na Paris e na Amsterdã ocupadas, servindo para todos os efeitos como o menino de ouro do nazismo.

Industriais ricos

Depois da guerra, foi suspenso de apresentações públicas enquanto suas conexões com o nazismo eram investigadas, mas um executivo da gravadora EMI, Walter Legge, o levou a Londres para conduzir a orquestra Philharmonia, composta por soldados britânicos recentemente desmobilizados.

O relacionamento explosivo entre maestro e orquestra duraria uma década, deixaria Karajan bem treinado nas artimanhas políticas e estimularia sua propensão ao conflito.

Depois da morte de Furtwängler, em 1954, ele se tornou maestro perpétuo em Berlim e usou a destruída capital do Reich como ponto de partida para sua expansão imperial. O festival de sua Salzburgo natal foi transformado em um evento quadrimestral, freqüentado por industriais ricos vestindo smokings, aspirantes a senhores do universo.

Conservadorismo

Nenhum músico da história procurou o poder que Karajan obteve com sua pompa, um poder que se estendeu, por emulação ou submissão, a muitas salas de concertos e festivais do planeta. Reacionário por natureza, ele sempre se manteve fiel ao romantismo convencional, excluindo a música atonal e os estilos de execução posteriores.

Christoph von Dohnányi chegou a acusá-lo de destruir a arte da regência na Alemanha, ao impor à disciplina, de modo tão vigoroso, seu gosto estreito.

Nikolaus Harnoncourt, violoncelista na orquestra de Karajan em Viena, foi excluído de Berlim e Salzburgo depois que começou a reger grupos que utilizavam instrumentos de época, de uma maneira que contrariava a ortodoxia proposta e imposta por Karajan.

A cada vez que gravava um ciclo de Beethoven -e o fez por cinco vezes-, reduzia a chance de interpretações alternativas. Sua hegemonia era autocrática e não admitia oposição.

Quando os músicos de Berlim se recusaram a admitir a clarinetista Sabine Meyer na orquestra, porque não queriam tocar com uma mulher, ele se transferiu para a orquestra rival, a Filarmônica de Viena.

Insatisfeito com a DG, ele estava conspirando para se transferir à Sony na época em que morreu. Karajan só era leal a si mesmo. Seu amor à música estava confinado à maneira como ele a executava.

Imenso charme

O poder dele, ao contrário do que acontecia no caso de Brejnev, no entanto, se baseava em um imenso charme. Muitos regentes que foram vilipendiados por Karajan durante anos, como Daniel Barenboim, se sentiram tentados a esquecer as mágoas em anos posteriores, quando o soberbo maestro os abordou de forma lisonjeira.

Na única ocasião em que me convidou para uma conversa, em 1985, decidi recusar a entrevista, preferindo observá-lo à distância, como a maioria dos músicos fazia. Ele era capaz de gentilezas pessoais tocantes em benefício de seus músicos, mas também de crueldades injustificadas, como a de cortar completamente o contato com um velho amigo sem que houvesse motivo aparente.

O passado nazista de Karajan não é incidental, ainda que ele não estivesse envolvido na promoção de holocaustos. Não há suspeita de que tenha cometido crimes raciais, e sua carreira no Reich encontrou percalços depois de 1942, quando se casou com uma rica herdeira que tinha ancestrais judeus.

O que ele adotou do nazismo foi um conjunto de valores que passou a aplicar à inocente e ineficiente indústria da música de maneira impiedosa e incansável. Se há uma lição que ele aprendeu com os nazistas é a da superioridade da música alemã e o imperativo do domínio mundial. Ele demonstrou que música era, acima de tudo, uma questão de poder.

Muita gente se deixou impressionar, e essa admiração continua. Alguns, como eu, viam sua atitude como desfavorável à música. Para mim sempre foi difícil ouvir Karajan no rádio com isenção.

A “celebração” de seu centenário é uma tentativa final da indústria fonográfica de extrair lucros de um leão morto. Algumas das celebrações são bancadas por subsídios ocultos oferecidos pelo riquíssimo e muito bem organizado espólio do maestro.

Mas é um tanto surpreendente descobrir que a Philharmonia, que nunca o aceitou integralmente, tenha decidido executar um tributo a Karajan.

Um aspecto do debate sobre Karajan, proposto por Dominic Lawson, é se “deveríamos aderir à celebração da vida de um ex-nazista” -e de um homem que jamais renegou suas afiliações passadas. Lawson ampliou a questão para discutir se um mau homem pode fazer boa arte e como devemos nos relacionar com a arte proveniente de fontes maculadas.

Essa questão, relevante quanto a Wagner, importa pouco no caso de Karajan, que jamais criou arte original. Determinar se Herbert von Karajan era um bom ou mau homem é irrelevante. Foi um brilhante organizador, capaz de moldar uma orquestra para executar seu som pessoal, uma capacidade que ele explorou ao extremo.
Karajan infligiu seu ego ao mundo da música clássica de forma que esmagou a independência e a criatividade e prejudicou a imagem da música diante das futuras gerações. Não é o mau homem que deveríamos deplorar, mas o legado reacionário e de exclusão que está sendo “celebrado”.

Para os amantes da música, não há muito a comemorar.

Quando a festa do centenário acabar, a cortina descerá para sempre sobre uma vida reprovável, carente de ideias novas e que não afirmou nenhum valor humano digno. Karajan está morto, e a música passa muito melhor sem ele.

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O maestro superego

O maestro superego

Publicado na Folha em 13 de abril de 2008
Tradução de Paulo Migliacci

Mais aclamado regente do século XX, Herbert von Karajan, que estaria fazendo 100 anos, esterilizou a imagem da música erudita para as futuras gerações, diz crítico inglês.

NORMAN LEBRECHT

Quando acordo ao som da música de Herbert von Karajan [1908-89] no rádio, esfrego os olhos para ter certeza de que Mao Tse-tung não continua no poder e a União Soviética deixou mesmo de ser uma potência mundial.

Houve um momento, definido pela forte presença de ditaduras, no qual Karajan parecia ser o fundo musical inevitável. Nos anos 70 e 80, ele era onipresente, uma presença cultural imponente cercada por admiradores nos mais altos postos. Afinal, era tudo que um político decaído aspirava ser: ultra-elegante e onipotente.

O centenário de seu nascimento, no último dia 5, está sendo celebrado por um dilúvio de produtos de uma indústria musical que ele conduziu à prosperidade e depois lançou à quase ruína.

Se o mercado de música clássica convencional se estreitou imensamente nos cinco últimos anos, isso é conseqüência inevitável dos excessos da era Karajan. Se a própria música clássica é vista por muitos (injustamente) como elitista, antiquada e retrospectiva, deve-se agradecer a Herbert von Karajan por tê-la transformado em uma forma de entretenimento seguro, empresarial, apresentado em festivais cujos preços são proibitivos ao espectador comum.

Trata-se de afirmações que mal requerem prova, mas continuam a existir nostálgicos que defendem a “grandeza” de Karajan em certas seções da imprensa.

O termo não significa nada em termos críticos, e até mesmo alguém um dia ousado como Simon Rattle se sente obrigado, à frente da Filarmônica de Berlim, que por tanto tempo foi dirigida por Karajan, a homenagear o velho tirano no ano de seu centenário. Quem sabe reviveremos também o culto a Brejnev [1906-82, presidente da União Soviética].

Karajan, como diretor musical e negociante escuso, dominou o cenário em Berlim e Salzburgo dos anos 1950 em diante, pagando cachês extravagantes a seus amigos e usando os ensaios de sua orquestra, cujos salários eram pagos pelo Estado, como sessões de gravação de discos comerciais.

Karajan enriqueceu de forma desmedida e levou muitos de seus músicos à prosperidade com ele, deixando uma fortuna avaliada em US$ 500 milhões [R$ 844 milhões], estruturada de maneira a evitar impostos, e uma pilha de 900 discos.

Ele manipulou a indústria fonográfica, dividindo para conquistar, sempre trabalhando com dois dos grandes selos e cortejando um terceiro. Em dado momento, ele respondia por um terço da receita da Deutsche Grammophon (DG), a maior gravadora mundial de música clássica.

Beleza artificial

Quase tudo o que regia soava muito liso, mais ou menos como camisetas de algodão que passaram por um banho de amaciante de roupa.

Não importa que estivesse executando Bach ou Bruckner, “Rigoletto” [de Verdi] ou uma rapsódia, a música acompanhava uma linha inconsútil de beleza artificial que devia menos à inventividade do compositor do que à intenção do regente de manufaturar um produto reconhecível.

Criado em Salzburgo depois da Primeira Guerra Mundial -uma cidadezinha que se tornou a segunda maior do Estado austríaco encolhido pela derrota-, Karajan aprendeu os perigos de viver em posição de fraqueza. Quando Hitler subiu ao poder, em 1933, ele aderiu ao Partido Nazista não só uma como duas vezes, e foi recompensando com um posto oficial em Aachen -o mais jovem diretor musical do Reich.

Não demorou para que começasse a ser elogiado pelos jornais controlados por Goebbels como “Das Wunder Karajan” (o milagre Karajan), em contraste com Wilhelm Furtwängler, maestro que não merecia a confiança política do regime. Karajan aprendeu com Goebbels como dividir para governar, entre outras artes obscuras da política.

Exibiu seus talentos sombrios na Paris e na Amsterdã ocupadas, servindo para todos os efeitos como o menino de ouro do nazismo.

Industriais ricos

Depois da guerra, foi suspenso de apresentações públicas enquanto suas conexões com o nazismo eram investigadas, mas um executivo da gravadora EMI, Walter Legge, o levou a Londres para conduzir a orquestra Philharmonia, composta por soldados britânicos recentemente desmobilizados.

O relacionamento explosivo entre maestro e orquestra duraria uma década, deixaria Karajan bem treinado nas artimanhas políticas e estimularia sua propensão ao conflito.

Depois da morte de Furtwängler, em 1954, ele se tornou maestro perpétuo em Berlim e usou a destruída capital do Reich como ponto de partida para sua expansão imperial. O festival de sua Salzburgo natal foi transformado em um evento quadrimestral, freqüentado por industriais ricos vestindo smokings, aspirantes a senhores do universo.

Conservadorismo

Nenhum músico da história procurou o poder que Karajan obteve com sua pompa, um poder que se estendeu, por emulação ou submissão, a muitas salas de concertos e festivais do planeta. Reacionário por natureza, ele sempre se manteve fiel ao romantismo convencional, excluindo a música atonal e os estilos de execução posteriores.

Christoph von Dohnányi chegou a acusá-lo de destruir a arte da regência na Alemanha, ao impor à disciplina, de modo tão vigoroso, seu gosto estreito.

Nikolaus Harnoncourt, violoncelista na orquestra de Karajan em Viena, foi excluído de Berlim e Salzburgo depois que começou a reger grupos que utilizavam instrumentos de época, de uma maneira que contrariava a ortodoxia proposta e imposta por Karajan.

A cada vez que gravava um ciclo de Beethoven -e o fez por cinco vezes-, reduzia a chance de interpretações alternativas. Sua hegemonia era autocrática e não admitia oposição.

Quando os músicos de Berlim se recusaram a admitir a clarinetista Sabine Meyer na orquestra, porque não queriam tocar com uma mulher, ele se transferiu para a orquestra rival, a Filarmônica de Viena.

Insatisfeito com a DG, ele estava conspirando para se transferir à Sony na época em que morreu. Karajan só era leal a si mesmo. Seu amor à música estava confinado à maneira como ele a executava.

Imenso charme

O poder dele, ao contrário do que acontecia no caso de Brejnev, no entanto, se baseava em um imenso charme. Muitos regentes que foram vilipendiados por Karajan durante anos, como Daniel Barenboim, se sentiram tentados a esquecer as mágoas em anos posteriores, quando o soberbo maestro os abordou de forma lisonjeira.

Na única ocasião em que me convidou para uma conversa, em 1985, decidi recusar a entrevista, preferindo observá-lo à distância, como a maioria dos músicos fazia. Ele era capaz de gentilezas pessoais tocantes em benefício de seus músicos, mas também de crueldades injustificadas, como a de cortar completamente o contato com um velho amigo sem que houvesse motivo aparente.

O passado nazista de Karajan não é incidental, ainda que ele não estivesse envolvido na promoção de holocaustos. Não há suspeita de que tenha cometido crimes raciais, e sua carreira no Reich encontrou percalços depois de 1942, quando se casou com uma rica herdeira que tinha ancestrais judeus.

O que ele adotou do nazismo foi um conjunto de valores que passou a aplicar à inocente e ineficiente indústria da música de maneira impiedosa e incansável. Se há uma lição que ele aprendeu com os nazistas é a da superioridade da música alemã e o imperativo do domínio mundial. Ele demonstrou que música era, acima de tudo, uma questão de poder.

Muita gente se deixou impressionar, e essa admiração continua. Alguns, como eu, viam sua atitude como desfavorável à música. Para mim sempre foi difícil ouvir Karajan no rádio com isenção.

A “celebração” de seu centenário é uma tentativa final da indústria fonográfica de extrair lucros de um leão morto. Algumas das celebrações são bancadas por subsídios ocultos oferecidos pelo riquíssimo e muito bem organizado espólio do maestro.

Mas é um tanto surpreendente descobrir que a Philharmonia, que nunca o aceitou integralmente, tenha decidido executar um tributo a Karajan.

Um aspecto do debate sobre Karajan, proposto por Dominic Lawson, é se “deveríamos aderir à celebração da vida de um ex-nazista” -e de um homem que jamais renegou suas afiliações passadas. Lawson ampliou a questão para discutir se um mau homem pode fazer boa arte e como devemos nos relacionar com a arte proveniente de fontes maculadas.
Essa questão, relevante quanto a Wagner, importa pouco no caso de Karajan, que jamais criou arte original. Determinar se Herbert von Karajan era um bom ou mau homem é irrelevante. Foi um brilhante organizador, capaz de moldar uma orquestra para executar seu som pessoal, uma capacidade que ele explorou ao extremo.

Karajan infligiu seu ego ao mundo da música clássica de forma que esmagou a independência e a criatividade e prejudicou a imagem da música diante das futuras gerações. Não é o mau homem que deveríamos deplorar, mas o legado reacionário e de exclusão que está sendo “celebrado”.

Para os amantes da música, não há muito a comemorar.
Quando a festa do centenário acabar, a cortina descerá para sempre sobre uma vida reprovável, carente de idéias novas e que não afirmou nenhum valor humano digno. Karajan está morto, e a música passa muito melhor sem ele.

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Alguma coisa sobre Mozart

wolfgang-amadeus-mozartWolfgang Amadeus Mozart nasceu em 27 de janeiro de 1756 em Salzburgo que, na época, tinha por volta de 10.000 habitantes. Salzburgo localiza-se numa das rotas em que se entrecruzavam os trajetos germânicos e italianos. Por isso, recebia influências dos dois lados e isto significa muito em termos de Mozart, um compositor que se estabeleceu e uniu as duas maiores tradições musicais europeias. O menino Wolfgang nasceu em uma família unida e amorosa. Seu pai, Leopold, era compositor. Tratava-se de uma criança emotiva e terna; queria aprender tudo, mostrando predileção pela matemática e pela música. Seu maior passatempo era o de inventar e contar histórias para si mesmo. Ao seis anos, ao começar sua educação musical em família, logo demonstrou que podia executar e compor pequenas peças ao cravo da mesma forma com que inventava histórias. O mundo perdeu um contador de histórias e ganhou um músico imenso a também nos contar histórias. A família não deu muita atenção ao compositor, mas resolveu que o pequeno virtuose poderia gerar dinheiro, tornando-se uma glória tanto familiar quanto para a corte do príncipe-arcebispo de Salzburgo. Sempre vigiado pelo pai e tendo um porto seguro em sua cidade natal, o menino-prodígio viajará loucamente (ver as viagens que fez aos 10 anos, em 1766, por exemplo) dando concertos por toda a Europa.

Para que os menos musicais pudessem reconhecer o virtuosismo do garoto, faziam-no realizar bobagens de cão amestrado, tal como tocar por cima de um pano que cobria o teclado ou com os olhos vendados. Era afagado, bem pago e sentava-se no colo de príncipes e arquiduquesas. Porém, isto foi antes dos dois grandes encontros. O primeiro encontro que mudaria Mozart foi com Johann Christian Bach, filho de Johann Sebastian e criador do estilo que foi inteiramente adotado e hiperdesenvolvido por Mozart. Mozart ouviu-o tocar em Londres e a impressão ficou-lhe para sempre. Mesmo. Se algum desavisado ouve casualmente alguma obra de Johann Christian, diz na hora: “É Mozart”. Ouvindo com mais atenção, sentirá tratar-se de um Mozart fraquinho, sem aquela imaginação pululante. Como Johann Christian fora o “Bach de Milão” antes de ser “o de Londres”, trouxe modelos italianos ao compositor. A face germânica de Mozart parace ter vindo de seu amado Haydn, a quem dedicou vários quartetos de cordas e a quem admirava desmedidamente. Tal admiração era recíproca e tão famosa e bem humorada que há bom anedotário a respeito.

O que as pessoas normalmente não sabem é que Mozart não foi um compositor tão precoce. Foi um virtuose precoce, mas perderia, em termos de precocidade para, por exemplo, Mendelssohn. Não há, na obra de Mozart pré-1781, algo como o bom Concerto para Violino em ré menor de Mendelssohn, composto aos 14 anos de idade. Poucas obras-primas mozartianas foram compostas antes disso. Suas primeiras obras de mestre foram o Divertimento K. 287, o Concerto para Flauta e Harpa K. 299, a Sinfonia Concertante para Violino e Viola K. 364, a Gran Partita, para conjunto de sopros K. 361, a Missa da Coroação K. 317 e a estranhíssima e espetacular Posthorn-Serenade, K. 320; e estas foram todas compostas todas depois de Mozart completar 20 anos. Vejam como a precocidade tem pouco a ver com as alturas que podem ser alcançadas na maturidade: afinal, poucos ousariam ir além nesta comparação entre as obras completas do genial Mozart e do muito competente Mendelssohn…

Em 1781, aos 25 anos, Mozart explodiu. Nestes 10 anos e meio – Wolfgang morreu aos 35 anos – escreveu quase tudo o que ouvimos hoje e, puxa vida, não é pouca coisa. São dezenas de óperas, concertos, sinfonias e música de câmara de melhor qualidade. É algo inacreditável e é realmente complicado apontar uma ou outra deixando tantas obras de lado.

Há um fato que me deixa contrariado na abordagem que as pessoas fazem a ele: muitos falam de Mozart como de um compositor sempre gentil e delicado, representando-o como um lago tranquilo e eternamente ensolarado onde os patinhos nadam alegres, sem sequer desejar bicar e comer os peixes que passam despreocupados por baixo de suas barrigas sempre cheias e felizes. Também estes peixes não desejam nada, apenas aspiram a uma vida feliz entre seus amigos patinhos e os peixes menores, tão lindinhos, que estão ali para o deleite de todos e assim por diante… O mesmo valeria para sua carreira, onde ele seria uma eterna criança, sempre ingênua e injustiçada, sofrendo nas mãos de poderosos e de colegas invejosos. Não é nada disso. Talvez seja necessária alguma vivência para identificar, mas há em Mozart todo um mundo de expressões sem as quais seria impossível a sua música adequar-se tão bem aos sentimentos pungentes exigidos por um Don Giovanni ou por La Clemenza di Tito e à comicidade das óperas bufas O Rapto do Serralho, As Bodas de Fígaro, A Flauta Mágica e Così fan tutte. E há toda uma música de concerto e obras de câmara autenticamente agressivas e desesperadas. É ocioso pensar que quem alcança expressar todos os matizes dos sentimentos humanos seja um palhaço bobinho e talentoso. Mozart tinha experiência de tudo o que produzia. Não era infantil, não era uma porcelana ou um santo intocável, era alguém deste mundo.

cool-mozart

Mas por que Mozart morreu na miséria? Ora, porque tornou-se um artista absolutamente fiel a si mesmo, dando as costas ao gosto vigente na Viena de seu tempo. A partir de 1784, vieram uma sucessão de obras-primas que fez o conservador público vienense torcer seus nobres narizes. Os Concertos para piano em fá, em ré menor K. 466 e em dó maior K. 467, o em mi bemol K. 482, em lá maior K. 488, e em dó menor K. 491, o em dó maior K. 503, a Sinfonia Praga K. 543, os dois Quartetos com piano K. 478 e 493, os dois Quintetos para Cordas K. 515 e 516, o trio Kegelstatt K. 498 e a Missa em dó menor K. 427, assinalaram em dois anos a plena maturidade do Mozart-compositor que teve como resposta a hostilidade de seu público. José II, por ocasião da representação de O Rapto do Serralho (Die Entführung aus dem Serail) observou: “Notas demais, meu caro Mozart”; e obteve a resposta que nunca sairia da boca de um cortesão, mas sim de um artista absolutamente seguro de sua obra: “Nenhuma só a mais, Majestade”.

O público passou a ignorá-lo e apenas retornou ao final de 1791, dois meses antes de sua morte, quando da estréia do espetacular sucesso de A Fláuta Mágica (Die Zauberflöte). Notem que esta ópera estreou em um pequeno teatro de bairro popular em Viena com o nome de Mozart bem pequeno, para não chamar a atenção – aquele mesmo Mozart que já fora o homem mais famoso de Viena teve seu nome mostrado em letras pequenas, sob o nome garrafal do libretista Schikaneder. O sucesso foi avassalador, mas tardio. Restou-lhe tempo apenas para terminar o belíssimo Concerto para Clarinete, K. 622 e de, ironicamente, tentar terminar um Réquiem K. 626, que não escrevia para si mesmo — conforme as lendas românticas gostam de mentir –, mas por encomenda um certo Conde Franz von Walsegg, cujo contrato nada tem de misterioso e que pode ser examinado em Salzburgo. Porém, sabemos que o destino infeliz deste gênio é um convite aos que gostam de romancear tudo. Eu também gosto, mas só quando o assunto é ficção…

Espero com este post ter feito uma pequena incursão amorosa e boêmia na vida e obra de Mozart. Além da memória, utilizei-me de alguns livros e CDs, principalmente da fenomenal História da Música Ocidental de Jean & Brigitte Massin.

Observação final: Este modesto post é dedicado ao maior mozartiano que conheci. É dedicado a meu pai, morto em 1993. Ele fez com que a trilha sonora de minha infância fossem os concertos para piano de Mozart, suas serenatas para sopros e a Posthorn. Conheço tudinho, nota por nota. Ele nunca parava de falar em Mozart, Beethoven e Chopin — Mozart em primeiríssimo lugar, sempre –, assim como hoje posso passar horas falando Bach, Bartók, Beethoven e Brahms. (Não me provoquem!).

(Quando mostraram o Quarteto das Dissonâncias para Haydn, ele disse que era um equívoco, que aquilo não podia ser. Então, lhe disseram: “Mas é de Mozart”. E o velho respondeu: “Bem, neste caso, trata-se de um erro de minha parte. Eu é que não entendi.”).

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Sexismo e racismo em Viena, nenhuma novidade

Sexismo e racismo em Viena, nenhuma novidade

Alguns músicos da Sinfônica de Viena comemoraram quando, há 15 meses, Jasmine Nakyung Choi foi nomeada para a primeira flauta. Eles viram nisso um sinal de tolerância em uma sociedade muitas vezes discriminatória.

Mas não deu nada certo. No último sábado, seus colegas votaram contra sua permanência. Motivos musicais? Não, aparentemente nada deste gênero.

Jasmine Nakyung Choi
Jasmine Nakyung Choi

O informadíssimo Norman Lebrecht ouviu fortes rumores de sexismo e racismo. Nada que surpreenda, na verdade. O que surpreende é que Jasmine tocou muito bem, sendo elogiada durante toda a temporada, mesmo num péssimo ambiente.

Mesmo assim, a direção da orquestra convidou-a para permanecer mais um ano, mas ela decidiu afastar-se do grupo hostil e voltar ao mercado de trabalho.

É triste ver Viena reforçar tais estereótipos históricos.

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