Charles Dickens, depois de escrever a perturbadora cena de Oliver Twist onde Bill Sikes assassina Nancy (spoiler!), estava preocupado que ela fosse tão chocante e assustadora que pudesse assustar muito seus leitores, até provocando-lhes um enfarto ou algo assim.
Impulsionado por esse medo, Dickens fez uma leitura particular com amigos antes da leitura planejada para o público a fim de ver se os ouvintes poderiam lidar com a cena do crime adequadamente. Seu raciocínio é descrito em uma carta a seu amigo Thomas Beard:
Meu caro Beard.
Vou fazer uma coisa estranha no sábado. Não consigo decidir se leio o assassinato de Oliver Twist ou não. Portanto, como terei um punhado de amigos pessoais no St James’s Hall, vou tentar ver como isso os afeta e, assim, decidir. Você pode vir? Às 8h30? Não vai demorar mais de uma hora. Sempre afetuosamente, Charles Dickens.
Dickens não apenas realizou esse experimento em seus amigos, mas também fez um médico registrar seus pulsos antes e depois de ler diferentes passagens — a cena do crime e histórias mais inócuas — para ver se eles estavam em perigo. Leia a nota do médico:
Terça-feira, 8 de março de 1870: Pulso antes de ler ‘Boots at the Holly Tree’: 94. Depois de ler: 112. Depois de ler ‘Nancy & Sykes’ (o assassinato): 120.
Felizmente, Dickens e seus amigos não morreram, mas talvez ele estivesse no caminho certo: vários leitores descreveram o efeito da passagem em Dickens como “surpreendente, quase alarmante”.
Ambos os documentos podem ser vistos na nova exposição do Museu Charles Dickens, More! Oliver Twist, Dickens e Stories of the City, no centro de Londres, que estreia hoje. Se você não puder ir, pode simplesmente dar uma olhada na cena do crime — apenas certifique-se se há médicos à disposição.
Popular e piegas, social e relevante, a obra de Charles Dickens (1812-1870) cumpre longa agonia no Brasil. É difícil estabelecer o que aconteceu primeiro: se as más traduções ou os poucos leitores. Porém, se pensarmos que as más traduções também perseguiram outros autores que têm sido sistematicamente retraduzidos — com a admissão de que a maioria das traduções de décadas passadas eram mesmo de baixa qualidade — e reeditados, talvez cheguemos à conclusão de que há algo em Dickens que não bate conosco. Contrariamente a nosso silêncio, o mundo comemorou na última terça-feira (7) o bicentenário de nascimento do autor. Até o Google alterou seu logotipo por 24 horas (imagem abaixo) a fim de homenagear o grande escritor.
Consideremos três grandes livros de Dickens: Os Pickwick Papers (1836), David Copperfield (1849-1850) e Grandes Esperanças (1860–1861). A última edição brasileira dos Pickwick Papers foi de 2004 pela Editora Globo e a tradução era ainda a da velha Livraria do Globo dos anos 50. David Copperfield não foi publicado neste século, apenas em versão recontada e o mesmo vale para o esplêndido Grandes Esperanças. Mas nossa intenção não é a de revelar aos sebos que Dickens, que ora completa 200 anos de nascimento, é uma raridade. Nossa intenção é a de demonstrar que Dickens foi um escritor importantíssimo e por quê.
A historiadora Nikelen Witter considera Dickens um colega de trabalho: “Minha percepção de Dickens envolve muito o que o romance dele representou em sua época e quem ele foi como escritor. Minha leitura juvenil do autor, confesso, foi totalmente reestruturada pelo meu estudo da história do século XIX. Talvez meu gosto por ele seja menos em razão de seu texto do que pelas ferramentas que ele disponibiliza para entender o século XIX. Dickens está entre os autores que recomendo a meus alunos de História Contemporânea e minha intenção não é a de causar diabetes em ninguém. A descrição de Dickens das gangues infantis é bastante precisa, bem como da reprodução das estruturas de poder dos adultos nas crianças abandonadas. A lacrimosa saga de Copperfield abre espaço para uma série de questionamentos históricos sobre legitimidade, pátrio poder e escolaridade, além, é claro, da irresponsabilidade do agir das classes mais altas. Há em Dickens uma defesa da igualdade”.
Não sem razão, Witter refere-se ao diabetes e à defesa da igualdade. Dickens era mesmo açucarado. Oliver Twist e David Copperfield são verdadeiras torrentes de lágrimas. A morte de personagens como a pequena Nell em The Old Curiosity Shop (O Armazém de Antiguidades) é algo de deixar sóbria qualquer novela mexicana. Witter discorda do termo “piegas” e justifica: “Os livros do Dickens e das irmãs Brönte que tematizavam as agruras dos órfãos e abandonados na Inglaterra chegaram a provocar o que foi chamado de Movimento pela Infância (que começa por volta dos anos 1840), o qual lutou contra o trabalho infantil e exigiu melhorias nos orfanatos. A burguesia e a classe média leitora sensibilizaram-se com textos que demonstravam o sofrimento envolto num realismo poético — à falta de palavra melhor e para não usar o termo piegas, que, creio, teve seu conceito inventado por esta época. O fato é que o texto de Dickens são de denúncia das mazelas provocadas pelo capitalismo, em especial quando atingia os mais fracos: os pobres e as crianças abandonadas. Não é à toa que o próprio Marx foi seu admirador”.
Era uma abordagem nada indignada, mas muito ressentida e dolorida da pobreza e da infância. Afinal, aquilo tinha sido a infância de Dickens. Educado pela mãe, que lhe ensinou inglês e latim, ele dizia que não fora muito mimado e que passara muito tempo lendo as novelas picarescas e romances de Henry Fielding, Daniel Defoe, Jonathan Swift e de seus contemporâneos, assim como de Cervantes e “As Mil e uma Noites”. Durante um curto período, pôde frequentar uma escola particular. Contudo, a situação piorou quando tinha dez anos. Seu pai foi preso por dívidas após esgotar os parcos recursos da família no afã de manter uma posição social digna. Nesta época, a família mudou-se para o bairro popular de Camden Town em Londres, onde ocupavam quartos baratos. A biblioteca familiar que tinha feito as delícias do jovem Dickens foi vendida, os talheres empenhados e, com doze anos, Dickens já tinha a idade considerada necessária para trabalhar colando rótulos em frascos de graxa. Ou seja, quando Dickens falava e chorava os pobres da Revolução Industrial, não estava apenas representando ou fazendo tese.
A defesa da igualdade era implícita. Quando Bernard Shaw comparou Marx e Dickens e quando lemos sobre o profundo apreço de Hobsbawm pelo autor, damos-nos conta do Dickens político. Só que a tribuna de Dickens era outra. Para entender sua importância, é fundamental saber que o texto de Dickens era multiuso. Ele não se tornou o mais popular autor do século XIX casualmente: tinha extremo conhecimento de seu público e dava especial atenção às formas de divulgação de seus trabalhos. A primeira forma adotada por Dickens era testar seus textos lendo-os em voz alta. Isto era fundamental por dois motivos: primeiro pelas constantes leituras públicas que o autor fazia e que lhe deram celebridade, e também porque sabia que seria lido em reuniões familiares, hábito comum na época. (Depois, reforça a historiadora Nikelen Witter, “estes leitores debateriam o que foi lido e, especialmente, ouvido. E — desejo expresso de Dickens — olhariam sob outra forma os mendigos que se acumulavam nas estradas e arrabaldes das grandes cidades inglesas”). Em segundo lugar, as publicações vinham em folhetins, então o final de cada capítulo necessitava de uma alta temperatura emocional e de suficiente expectativa para justificar a compra do próximo. Seria totalmente inválida a caricatura de que os livros de Dickens seriam um Criança Esperança misturado com novela das oito?
Só que com qualidade muitíssimo superior. Dickens era engraçadíssimo e seu Pickwick Papers é tão intensamente cômico que demonstra não apenas a genialidade de Dickens como também o fato de ter aprendido as lições de Fielding e Swift. Mesmo seus livros mais dramáticos contêm fartas doses de humor e, dentre os personagens secundários de seus romances, há tipos inesquecíveis. Personagens como Uriah Heep, Miss Havisham, a esposa do Sr. Micawber, Sam Weller e dezenas de outros povoam sua páginas em cenas absolutamente hilariantes. Quase sempre atuam com a mesma seriedade que um membro do Monty Python atuaria. Aliás, há algo de Dickens nos filmes do Monty Python, principalmente em O Sentido da Vida. A curiosa adjetivação das cenas cômicas é matéria de estudo e os tais personagens “secundários” são tão importantes que, quando Pickwick Papers foi lançado, a recepção do público não foi calorosa no início — Dickens era um estreante de 24 anos — , mas quando apareceu a personagem de Sam Weller, o criado de Pickwick que acompanha as aventuras de seu amo, as vendas do folhetim subiram de 400 exemplares para 40 000! Sam Weller é simplesmente impagável!
Então, por que Dickens é tão famoso no mundo inteiro, mas não no Brasil, onde mal tem seus livros editados e traduzidos? Será pelos enredos inverossímeis, cheios de coincidências e reviravoltas? Bem, mas não é isso o que se vê em nossas novelas? Será que Dickens não esconderia demais sua crítica social? Será complicado concluir que o ingrediente base de Oliver Twist e Nicholas Nickleby é a denúncia da condição infantil e da situação de muitos estabelecimentos de ensino? Seria igualmente complexo notar que A Casa Soturna é um romance contra a corrupção e a ineficiência do sistema jurídico inglês, tal como A pequena Dorrit? Será este último lido apenas como a típica história do pobre que enriquece e não como uma violenta sátira ao judiciário da época? Ficam as perguntas. O fato é que Dickens, aos 200 anos de nascimento, é celebrado em grande parte do mundo enquanto agoniza no Brasil.
A obra de Charles Dickens está agonizando. Não a vejo mais por aí e não posso afirmar que esteja estar preocupado com o fato. Mas acho que dois de seus livros são muito bons: o livro de estreia Pickwick Papers e um dos últimos de sua enorme obra, Grandes Esperanças. Mas ele é mais conhecido pelo xaroposo Oliver Twist e pelo bom David Copperfield.
Seus livros demonstram a longa decadência de uma verve cômica para dar lugar à pieguice. Se os Pickwick Papers podiam rivalizar com Swift e Fielding, Dickens foi pouco a pouco aderindo às lágrimas até ficar um tio chato que chora por cada tristeza social e pessoal vitorianas. A exceção é o esplêndido e simbólico Great Expectations.
Hoje me acordei com um nome na cabeça: Samuel Weller. Li os Pickwick na casa da praia de meus pais, lá em 1972-3, tinha 15 ou 16 anos. A lembrança que tenho desta personagem é a melhor possível. Ignoro se era mesmo tão engraçado. Dando uma pesquisada rápida na Wikipedia, dou de cara com esta frase: A recepção do público a Pickwick não foi calorosa desde o início. Só quando aparece a personagem de Sam Weller, o criado de Pickwick e que acompanha as aventuras do seu amo ao jeito de um Sancho Pança ao lado de Dom Quixote, é que as vendas sobem de 400 exemplares para 40 000!
Lembro que há uma cena de caçada no livro na qual, durante a leitura, eu dava gragalhadas que me impediam de ler o livro. Tenho a impressão de que isto nunca voltou a acontecer, mesmo que eu tenha a maior admiração pelo escritos cômicos de muita gente, desde Sterne, Swift e Fielding até John Kennedy Toole, LF Verissimo e Cláudia Tajes.
Menos mal que tenho (ou tive) outros companheiros de leitura que também admiram o incrível mordomo do chefe do Clube Pickwick. Quando colocamos Sam Weller no Google Images, damos de cara com um monte de canecos de cerveja, bibelôs e pratos representando o personagem. Não sei que valor terá em antiquários.