Tradutor brasileiro de Bolaño defende que narrativa do autor é anti-heroica

Tradutor brasileiro de Bolaño defende que narrativa do autor é anti-heroica

Publicado no site Livraria da Folha em 2010

“Não sei qual deles é melhor: “Os Detetives Selvagens” ou “2666” “, questiona-se Eduardo Brandão, 64, tradutor brasileiro do autor chileno Roberto Bolaño (1953-2003).

O primeiro livro foi o mais difícil para traduzir. Já o segundo, tomou mais tempo, ou melhor, mais de um ano para finalizar o volume.

Lançado um ano após a morte do autor, “2666” é composto por cinco romances, interligados por duas tramas — a busca por um autor recluso e uma série de assassinatos na fronteira México-EUA. Explicado por que a obra conviveu mais de um ano com Brandão.

Em entrevista à Livraria da Folha, ele descreveu como trabalha na tradução de uma obra, comentou sobre o processo narrativo de Bolaño, “que é mais anti-herói do que qualquer outra coisa”, entre outros aspectos. Com cerca de 140 obras traduzidas para a Companhia das Letras, o carioca começou a se dedicar à tradução de obras literárias e de ciências humanas, a partir da década de 1970.

Chegou a trabalhar como repórter do “Correio da Manhã” entre 1966 e 1968. Hoje, tem apreço especialmente pelas literaturas espanhola e hispano-americana contemporâneas.

Livraria da Folha: Bolaño faz com que o leitor sinta-se, em alguns momentos, agoniado com o desaparecimento dos personagens e surpreso com o retorno deles. No “2666”, vários personagens mal se cruzam nas histórias. Enquanto traduzia, você se sentiu perdido ou surpreso com o retorno de algum deles?

Eduardo Brandão: Não, porque eu já tinha traduzido outros romances dele como “Os Detetives Selvagens” (2006) e ele usa esse mesmo recurso. De certa maneira, ele [Bolaño] reproduz muitas vezes o que acontece na vida da gente. Você cruza com uma pessoa, conversa, conhece, de repente você nunca mais a vê, e talvez ela apareça lá na frente novamente em outras circunstâncias. Desse ponto de vista, o procedimento narrativo do personagem que vai, some e nunca mais volta a aparecer, é bem calcado na nossa realidade.

Livraria da Folha: O “2666” assemelha-se a uma matriuska –a cada “abrir” de histórias, outras aparentemente menores saltam à vista. Qual história do livro mais lhe impressionou?

Brandão: O que mais me chocou foram as histórias dos crimes no México, onde ele [Bolaño] faz uma espécie de “romance-reportagem”. Achava que era invenção, depois descobri que aquilo é pura verdade e continua existindo. Saiu outro dia no jornal.

Livraria da Folha: Você levou quanto tempo para traduzir o “2666”?

Brandão: Levei ao todo mais de um ano, mas houve algumas interrupções para fazer outras coisas não tão grandes. Não lembro exatamente quando comecei. Entreguei no começo do ano.

Livraria da Folha: A próxima tradução que você fará do Bolaño será a do “O Terceiro Reich”? Quando será lançado pela Companhia?

Brandão: Já traduzi. Vai ser lançado no ano que vem, mas não tenho certeza da programação.

Livraria da Folha: Como é seu ritmo de trabalho durante uma tradução? Você dedica quantas horas por dia? Tem uma disciplina, digamos assim?

Brandão: Sim, começo por volta das 10h e acabo lá pelas 23h30. De trabalho, deve dar umas 8h, contando as interrupções.

Livraria da Folha: Você também traduziu “Amuleto” (2008) , “Noturno do Chile” (2004), “A Pista de Gelo” (2007) e “Putas Assassinas” (2008), todos do Bolaño. Em qual deles, sentiu mais dificuldade em manter o estilo do chileno no português?

Brandão: O mais difícil de todos foi “Os Detetives Selvagens”.

Livraria da Folha: Por que?

Brandão: Porque são várias narrativas, há mais de cem narradores. Isso é mais complicado, porque ele consegue dar a cada um deles uma fala própria. Você tem que tentar reproduzir o jeito daquelas pessoas falarem. O mais complicado deles foi o Amadeu, um velho que queria bancar um jovem. Ele usa umas gírias jovens, mas bem defasadas. O jeito de falar dele, empolado, informal, criou um estilo.

Livraria da Folha: Você traduziu 140 obras para a Companhia das Letras. De literatura infantojuvenil à livros de história e filosofia. Qual tradução foi a mais complicada de ser realizada e por que?

Brandão: Os infantojuvenis me distraem mais. Foi “Os Detetives Selvagens” mesmo, inclusive pelo uso dos “mexicanismos”.

Livraria da Folha: Você recorreu a dicionários?

Brandão: Eu tive uma sorte danada com esse livro, porque acabei encontrando uma pessoa que me ajudou. Mandei um e-mail para essa moça. Ela conheceu o Bolaño lá no México e era da região onde passava boa parte das histórias do livro. Aquelas gírias “barra-pesada” que tinha ali [livro] só com ela mesmo.

Livraria da Folha: Cada parte do romance pode ser lida de forma independente. Você concorda com Bolaño ao defender que a obra fosse publicada em cinco volumes?

Brandão: Um volume foi a decisão mais sensata, inclusive foi a da viúva. Ele fez aquilo com uma preocupação não literária, vamos dizer assim, preocupado com os filhos e com a mulher. Apesar de ter histórias meio soltas, nenhuma é solta ali. Elas têm um ponto de contato.

Livraria da Folha: Na trama de “2666”, Archimboldi morreu em 2003. Em parte, ele mimetiza o que foi o século 20 e o que seria o 21. Na sua opinião, qual dos dois séculos ou nenhum deles o livro representa?

Brandão: Acho que ele está mais com o pé no 21, principalmente por toda essa questão do narcotráfico. Claro que isso já existia no século 20, de certa forma ele [Bolaño] anteviu.

Livraria da Folha: Bolaño gosta de adotar em seus romances heróis fracassados pela própria realidade na qual sobrevivem ou simplesmente anular a existência deles. Você acredita que a narrativa de Bolaño faz as vezes de herói de seus personagens e até do próprio escritor?

Brandão: Herói não, propriamente, é mais anti-herói do que qualquer outra coisa. A narrativa dele surge de uma maneira tão espontânea. Existe ali uma catarse.

Livraria da Folha: As histórias não se fecham, são deixadas no ar. Se pudesse escolher uma delas para finalizar, qual seria e por que?

Brandão: Eu não concluiria, adorei o livro assim.

Livraria da Folha: Você conhecia o Bolaño antes de traduzi-lo?

Brandão: Confesso que nunca tinha ouvido falar. O primeiro que traduzi foi “Noturno do Chile”, que achei meio estranho. Depois peguei “Os Detetives Selvagens”, adorei e virei bolañista. Quando traduzi “Os Detetives Selvagens”, não existia ainda a “bolañomania”. Agora está começando a sair um monte de coisa [refere-se às cartas e manuscritos que serão publicados], embora ele fosse reservado sobre sua vida.

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Devemos um fígado a Roberto Bolaño

Na foto, a homenagem de Nicanor Parra a Roberto Bolaño | Imagem do blog jorgeletralia.com

Publicado em 12 de maio no Sul21

Em 2003, um escritor chileno chamado Roberto Bolaño morreu aos 50 anos, em Barcelona. O surpreendente é que os vários jornais latino-americanos escreviam obituários lamentando o desaparecimento de um dos cinco principais autores contemporâneos da América Latina. Os outros eram García Márquez, Vargas Llosa, Jorge Luis Borges e Julio Cortázar. Roberto Bolaño? Quem é ou era?

Alguns o veem como um membro do citado quinteto, outros como um autor nada transcendente. Porém, ignorando quaisquer avaliações, acentua-se o culto mundial a Roberto Bolaño, iniciado na América espanhola.  À princípio ícone chileno, mexicano e espanhol, o chileno tem multiplicado seus leitores de forma permanente e os que o leem parecem tomados pelo vírus de tal forma que passam logo ao estado de fãs e seguidores. No Brasil, a Companhia das Letras tem sido competente ao lançar lentamente a integralidade de sua obra, que também está invadindo a Europa e os Estados Unidos. A edição norte-americana de Noturno do Chile traz a frase de uma crítica de Susan Sontag, afirmando que o livro era o que havia de melhor e de mais precioso. Hoje, busca-se mais contos, romances e poemas do autor cujas cinzas foram jogadas por sua mulher e filhas no Mediterrâneo em 2003.

Uma imagem de Roberto Bolaño em uma rua de Buenos Aires

Sua morte prematura — enquanto esperava, em Barcelona, um fígado para transplante — foi o último ato da formação de um mito para o qual Bolaño contribuiu de forma direta. Morreu em 14 de julho de 2003 no hospital Valle de Hebrón. Passou 10 dias em coma por complicações hepáticas enquanto esperava em vão. Deixou textos para publicação póstuma e outros inconclusos. Estava preocupado com o futuro de sua mulher e das filhas. Entre os papéis deixados havia os cinco grandes textos que deveriam – e formaram — o painel 2666, romance que gira em torno de um escritor desaparecido (Benno von Archimboldi) e onde há um enorme acúmulo de cenas que descrevem o horror dos feminicídios em Ciudad Juárez, onde as mulheres parecem ser caça.

Bolaño era chileno, mas se reconhecia como “autor latino-americano”. É compreensível: teve vida breve, nasceu em 1953, viveu largas temporadas no México e na Espanha — o golpe de Pinochet, por exemplo, aconteceu quando morava com sua família no México — e sua morte ocorreu em Barcelona. Enrique Villa-Matas diz que a morte de Bolaño fechou uma vida destinada a tornar-se uma lenda. Talvez ele esteja correto e mesmo se o fim do autor fosse menos trágico, ele seria comentado. Afinal, Bolaño tinha talento, coragem, idealismo e alguma loucura, características raras na era do politicamente correto.

O primeiro livro de Bolaño no Brasil foi o "revanchista" Noturno do Chile

Uma vida cosmopolita e despojada

Roberto Bolaño nasceu em Santiago do Chile em 1953. Com 13 anos, mudou-se com sua família para a Cidade do México. Ali, praticamente morava dentro da Biblioteca Pública. Permanecia tanto tempo lendo que não conseguiu terminar o ensino médio nem muito menos entrar para a universidade. Curiosamente, hoje existe a cátedra Roberto Bolaño na Universidade Diego Portales de Santiago… Em 1973, Salvador Allende foi assassinado e Roberto retornou ao Chile de carona, com a intenção de unir-se à resistência contra a ditadura que se instalava. Foi preso. Salvou-se graças a um amigo, um militar que fora seu colega de colégio. Foi libertado. Anos depois, diria que não falava sobre política pois “os que detém o poder, ainda que por pouco tempo, desaprendem tudo sobre literatura”. Porém, a literatura ocupa-se do político e Bolaño viria a escrever o brilhante, vingativo e inteiramente político Noturno do Chile.

Em seu regresso ao México, juntamente com o poeta Mario Santiago Papasquiaro –- a inspiração para a criação do personagem de Ulises Lima, o amigo de Arturo Belano do romance Os Detetives Selvagens — fundou o movimento poético infra-realista, que se opôs dissonante e ferozmente aos principais pilares da literatura mexicana, representada especialmente por Octavio Paz.

“Poderíamos dizer que o infra-realismo o moldou como escritor e romancista, mas também o México teve importância nesta transformação. Ela amava o México noturno, o México das ruas e dos cafés, a fala cotidiana com seu humor desencantado. Não é casual que seus dois maiores romances – Os Detetives Selvagens e 2666, sejam centrados no México”, escreveu o escritor Juan Villoro.

Anos depois emigrou para a Espanha, onde já vivia sua mãe. Colheu uvas em alguns verões, trabalhou como vigilante noturno em Castelldefels, foi balconista de armazém, lavador de pratos, faxineiro de hotel, estivador, lixeiro e recepcionista até tornar-se escritor em tempo integral.

E então, após sua morte, os livros de Bolaño começaram a vender cada vez mais. Não houve uma campanha. A propaganda veio através dos leitores que indicavam o escritor um para o outro. Autor morto há menos de dez anos, ele pode ser encontrado facilmente na internet. Há muitos blogs dedicados ou inspirados por ele. Curiosamente, Os Detetives Selvagens e Estrela Distante são seus livros mais citados e as conversas são de fãs, girando menos sobre as qualidades literárias de Bolaño e mais a respeito de suas  obsessões, sobre as histórias inconclusas de busca por personagens, amores e cidades perdidos.

O colecionador de inimigos: Paulo Coelho e Nélida Piñon foram atingidos

Os inimigos

Antes de comentar suas características como escritor, fiquemos mais alguns momentos em suas peculiaridades. Bolaño se comprazia como poucos em fustigar seus inimigos literários. Ele os depreciava de frente, não obedecendo aos habituais salamaleques. Sobre Isabel Allende disparou: “Digo calmamente que Allende é má escritora. Aliás, para qualificá-la como tal, uso de certa indulgência, pois nem isso ela é”. Isabel respondeu: “Dei uma olhada em dois de seus livros e eles me entediaram profundamente”. Até aí, tudo normal. A novidade é que, quando Bolaño morreu, Allende seguiu firme: “Não o lamento. É uma pessoa que nunca disse nada de bom a respeito de alguém. O fato de estar morto não o faz melhor. Era um senhor bem desagradável”. Isabel Allende foi bastante exagerada ao escrever que seu conterrâneo nunca dissera nada de bom sobre alguém. Bolaño cobriu muita gente com os maiores elogios. Porém…

“Skármeta é um personagem televisivo. Sou incapaz de ler qualquer um de seus livros. Sua prosa me vira o estômago”, torpedeou Bolaño. Ele teve causou maiores problemas a Diamela Eltit. Ela publicara a novela Vaca Sagrada e o convidou para um jantar em sua casa. Só que, depois, ele publicou uma impiedosa crítica ao livro de sua anfitriã e aproveitou para fazer referências ao jantar e à péssima gastronomia oferecida, dando detalhes. “Este é um tema sobre que prefiro não tocar. O que se passou foi algo absurdo e hipertrofiado. Bolaño morreu e eu prefiro não dizer nada a respeito”.

Bolaño também desferiu tiros que alcançaram o Brasil, atingindo Nélida Piñon e Paulo Coelho…

Hace poco, Nélida Piñon, celebrada novelista brasileña y serial killer de lectores, dijo que Paulo Coelho, una especie de Barbusse e Anatole France en versión telenovela de brujos cariocas, debía ingresar en la Academia brasileña, puesto que había llevado el idioma brasileño a todos los rincones del mundo. Como si el “idioma brasileño” fuera una ciencia infusa, capaz de soportar (sobreviver a) cualquier traducción, o como si los sufridos lectores del metro de Tokio supieran portugués. Además, ¿qué es eso de “idioma brasileño”? Idea tan desmesurada como si habláramos del idioma canadiense o australiano o boliviano.

Na fila dos transplantes sem que um doador aparecesse (ou desaparecesse)

A lenda

Javier Cercas, autor de Soldados de Salamina, romance onde Bolaño é personagem, sustenta que há dois tipos de lendas em torno de Bolaño. Umas que foram construída pelos leitores e fãs e outras criadas pelo próprio autor, voluntária e involuntariamente. Diz Cercas que ambas não se ajustam à realidade, mas os fatos de sua biografia servem a uma construção mítica em torno do autor: “Ele morreu jovem; morreu no melhor momento de sua carreira; morreu porque permaneceu na fila dos transplantes sem que um doador aparecesse (ou desaparecesse); morreu e foi recebido de braços abertos pela tendência que os meios literários possuem de falar bem dos mortos (com fartas cotas de hipocrisia — exceto Allende, claro). A história da literatura está cheia de exemplos de canonização após uma morte prematura. Mas o que é assombroso é que o mesmo homem que escreveu A Pista de Gelo, escreveria 3 anos depois Estrela Distante e seis anos depois Os Detetives Selvagens. É estupefaciente que, entre 1996 e 2003, ano de sua morte, ele tenha evoluído e escrito tanto”.

Muitos críticos perguntam como a obra de Bolaño sobreviverá a isto. Logo após sua morte, a única pergunta que cabia era se ele era genial ou apenas extraordinário. E citam sua última entrevista. A Playboy mexicana perguntou: “O que você diz daqueles que pensam que Os Detetives Selvagens é o melhor romance mexicano de todos os tempos?”. Ele respondeu: “Dizem isto de pena. Me vêem decaído e doente, desmaiando em praça pública e não lhes ocorre nada melhor do que uma mentira piedosa, que é o mais indicado nesses casos. Não é pecado fazer isso”. Tudo parece confluir para torná-lo uma lenda.

Os vídeos de Bolaño e de quem o conheceu no YouTube mostram uma pessoa cercada de amigos. Todos têm histórias para contar, inclusive o próprio Bolaño que chega a dar detalhes de como roubava livros na juventude em um programa de TV. Jorge Herralde, editor da obra de Bolaño, também foi um grande amigo. E hoje é quem garante a subsistência de sua mulher e filhos, cuidando para que os direitos autorais cheguem a eles. Cumpre o que prometeu ao escritor antes de sua morte. Na abertura de 2666, há a seguinte nota:

Nota dos herdeiros do autor

Diante da possibilidade da uma morte próxima, Roberto deixou instruções para que seu romance 2666 fosse publicado em cinco livros correspondentes às cinco partes do romance, especificando a ordem e a periodicidade das publicações (uma por ano) e até mesmo o preço para negociar com o editor. Com esta decisão, enviada dias antes de sua morte pelo próprio Roberto a Jorge Herralde, pensava deixar resolvido o futuro econômico de seus filhos.

Após sua morte e depois da leitura e estudo da obra e do material de trabalho deixado por Roberto, Ignacio Echevarría (o amigo que indicou como seu conselheiro literário) surgiu com outra consideração de ordem menos prática: o respeito ao valor literário da obra, que faz com que, em conjunto com Jorge Herralde, alteremos a decisão de Roberto e que 2666 seja publicado primeiro em um só volume, como o autor teria feito se não tivesse sido cumprida a pior das possibilidades que oferecia seu processo de doença.

Um escritor que criava histórias dentro de histórias

Os livros

“Um oásis de horror em meio a um deserto de tédio” (Charles Baudelaire), esta é a epígrafe de 2666. Porém, o tal “oásis de horror” é fácil de ler (segundo alguns críticos, é fácil por ser superficial). Porém, o que aparece com clareza é que Bolaño é um tremendo narrador. Sua prosa é fluida e bem humorada até quando descreve o bizarro, a desgraça e o patético. Só que esta opção pela clareza parece ser um artifício para nos colocar problemas abismais e demonstrar uma realidade dividida e ramificada. As histórias de Bolaño são hipnotizantes e muitíssimas vezes inconclusas. Vão nascendo umas dentro das outras de tal forma que acabamos por esquecer o que está sendo contato; é um detalhe hipertrofiado de uma outra narrativa. Seu tradutor no Brasil, Eduardo Brandão, afirma: “De certa maneira, ele reproduz muitas vezes o que acontece na vida da gente. Você cruza com uma pessoa, conversa, conhece, de repente você nunca mais a vê, e talvez ela apareça lá na frente novamente em outras circunstâncias. Desse ponto de vista, o procedimento narrativo do personagem que vai, some e nunca mais volta a aparecer, é bem calcado na nossa realidade”.

Os Detetives Selvagens, por exemplo, tem 3 partes. A primeira, de mais ou menos cem páginas, uma longa segunda parte de 500 páginas e uma terceira, um epílogo curto. A longa segunda parte é formada por textos escritos na primeira pessoa do singular. São mais de 50 narradores que se alternam para contar a história dos personagens e outros fatos que aparentemente não têm nada a ver com a narrativa principal. São narradores extremamente envolventes, apesar de quase sempre finalizarem suas histórias de forma abrupta, como quem suprime as últimas páginas. Quando um novo narrador toma a palavra, normalmente sobre outro assunto envolvente, já sabemos que Bolaño nos deixará em meio à narrativa. É claro que nos acostumamos e acabamos por achar divertido o autor que nos tira o pão da boca. Só que o efeito geral é devastador. Quando você se afasta do livro, acaba descobrindo que as narrativas complementares estão se afastando do plot, ao invés de formar um todo tranquilizador. O romance é minuciosamente descontrolado por um homem de visão nada indulgente para com toda aquela turba. O resultado de toda a alegria de viver demonstrada é o desencanto e é mais, é o horror do vazio. Tal procedimento é repetido em 2666.

Alguns críticos dizem que o mundo de Bolaño não é falsamente simples, é autenticamente simples

Tudo é parcial e tem múltiplas significações no mundo falsamente simples de Roberto Bolaño. Para referenciar o vazio, Bolaño recorre à hipérbole, ou seja, a intensificar a vida de forma inconcebível, de forma a negá-la. Explicando melhor, Bolaño escreve infinitamente suas belas histórias sem origem nem fim, preenchendo infinitamente todos os espaços ficcionais com sua prosa agradável e de inícios e finais abruptos, conseguindo, com isso, negar seu preenchimento, mostrando o inconsolável vazio de seus inteligentes e simpáticos personagens. De que outra forma apreenderíamos o vazio senão valendo-se da hipérbole? Mais: Bolaño utiliza-se brilhantemente de repetições, só que elas são normalmente imprecisas, diferentes, perturbadoras.

Uma das histórias: quando a Universidade Autônoma do México foi invadida pelo exército em setembro de 1968, Auxilio Lacouture decidiu permanecer escondida no banheiro, onde já estava, resguardando o último reduto de autonomia universitária. Ela lê um volume de poesias, às vezes observa e ouve os militares que cuidam para que ninguém entre na Universidade. Permanece ali por vários dias em plena resistência e com “uma certeza meio vaga” de que ia morrer. Não morreu, tornando-se uma heroína aos olhos de alguns amigos, enquanto outros duvidavam da história. A narrativa é linda, mais do que envolvente, está em Os Detetives Selvagens, tem final abrupto e talvez ninguém saiba porque ela está ali.

Não obstante a desilusão e tristeza que se desprende de seus livros, Bolaño torna-se cada vez mais popular. Talvez isto deva-se a uma forma de vanguardismo que se preocupa em não ser um serial killer de leitores e porque ele era humano o suficiente para agradecer o recebimento prêmio Rómulo Gallejos dizendo que escrever era…

Correr por el borde del precipicio: a un lado al abismo sin fondo y al otro lado las caras que uno quiere, y los libros, y los amigos, y la comida.

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Os ípsilons de Bolaño

Anteontem, estava lendo 2666 (terceira parte: La parte de Fate), de Roberto Bolaño. Na página 332 o personagem Fate chega a seu quarto de hotel para dormir. Liga a TV. A princípio, Fate fica deitado e vê um desses programas de humilhação de gente gorda, tão comuns na TV inglesa. Marido e mulher batem boca, um deles arranjou uma amante. A(o) amante intervém. Fate dorme.

O notável é que Bolaño segue impavidamente descrevendo o que passa na TV. É inusitado e é maravilhoso para a narrativa. Não tenho grandes pretensões de entender o que Bolaño quis exatamente exprimir, se é que quis. Fico com a opinião de Isak Dinensen (Karen Blixen), que defendia não ser fundamental entender tudo aquilo que os escritos poéticos — pois é poesia o que faz Bolaño com sua TV — podem ou devem significar. Depois, cansado da TV, Bolaño passa a acompanhar um sonho de Fate que, de forma enviesada, tem a ver com a narrativa. É como se a narrativa estivesse subindo, evoluindo, e repentinamente se abrisse num Y. E o Y logo é abandonado, pois Bolãno já está envolvido com outra história. Nós também.

Este insistente uso da fratura, a capacidade que Bolaño tem de sempre nos interessar por outra e mais outra narrativa é a maior característica de 2666 e Os Detetives Selvagens. É uma voz que parece saída de um sonho, sedutora e ao mesmo tempo desinteressada.

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Estrela Distante, de Roberto Bolãno

Por Charlles Campos

O que poderia haver de errado, nesse começo de século pouco promissor para a literatura — no qual Norman Mailer lamentou que tudo pelo qual sua geração de intelectuais lutara tenha fracassado, e onde as mesmas formas eternamente combatidas de dominação tenham obtido uma vitória incontestável sobre qualquer resistência contrária — , com o fato de Roberto Bolaño ter sido escolhido como objeto de acirrada adoração pela mídia cultural mundial? Nessa época desencantada dos ilimitados milagres da eletrônica, onde Philip Roth vaticinou que a próxima geração a surgir trará incutida no gene o fim do interesse pela leitura, não é espantoso que o romance de mil páginas “2666” já tenha vendido mais de 23.000 exemplares em Portugal? E que “Detetives Selvagens” tenha movimentado o competidíssimo mercado editorial norte-americano; e que os outros livros de Bolaño já sejam por lá tidos como potenciais clássicos de um escritor genial? E o que poderia ser mais esperançoso do que vermos Bolaño ocupando o centro de vários debates culturais pelo mundo, seus livros aparecendo mesmo em locais exórdinos como na mala de viagem do apresentador da Globo Zéca Camargo ( que levou “A Pista de Gelo” para o acompanhar nas filmagens pela Tailândia, demonstrando os critérios práticos da simplificação de sua escolha)?

Mas essa iconização, por outro lado, é o reflexo de outros aspectos não tão festivos do atual momento cultural por que passa a América Latina. À exceção de Bolaño, de qual outro escritor latinoamericano se ouve falar com a mesma persistência? O cenário mostra-se desconcertantemente desértico, ainda mais em comparação à profusão de nomes de valor que existiam há cinquenta ou quarenta anos. A acreditarmos na tendência — o emprego de tal palavra talvez seja o mais maneirista dos eufemismos — do definhamento da escrita, essa espera pelo desaparecimento dos últimos grandes escritores sem que se veja o natural surgimento de uma geração que os substitua, é uma realidade não só das Américas, mas universal. Não que os escritores apareçam obedecendo a u ma determinada sistemática providencial, ou são produzidos em série para, no momento devido, virem com a resolução para os conflitos da pobre humanidade desgovernada. Mas o que ocorre é que o prognóstico lançado por Mailer, Roth, Vargas Llosa e uma dezena de outros escritores, sobre o futuro inglório que eles não verão , parece se encaixar com perfeição nos estágios velozes da técnica que já nos pegam pela frente, onde a escrita se torna irrelevante e descartada, e, com isso, o pensamento crítico, as nuances lingüísticas, a contestação às doutrinas dominantes, o reconhecimento de uma dimensão mental independente, a lentidão necessária para inteirar-se da constituição espiritual morta por fora pela extenuante falta de tempo da escravidão dedicada às empresas, ao Estado e ao modus operandi de consumidores infinitos.

Se a efervescência intelectual é expressão produzida pela intolerância alcançada aos conflitos históricos, como vemos os poderosos escritores surgidos na Rússia czarista, nos memorialistas do extermínio da Segunda Guerra mundial, nos inconformados contrários ao bezerro de ouro do capitalismo norte-americano, nos refugiados hispano-americanos que acusam as ditaduras assassinas em seus países, não há momento mais legítimo para a imposição da voz do que o que vivemos hoje. Se a desgraça crônica explode no desenvolvimento de pessoas comuns em contestadores que escrevem grandes livros, o estágio atual de desgraças seria mais que justificável para a descavernização desses anônimos, a fim de instigarem aos demais míopes silenciados as possibilid ades de um mundo lá fora.

E é aqui que a carga relegada a Bolaño demonstra-se demasiado pesada. Bolaño, em decorrência da degradação de sua saúde e da conseqüente falta de tempo para amadurecer sua escrita, aceitou resignadamente o trabalho que tinha e, como o albatroz com as asas quebradas, desmoronou-se em desistência para o interior de sua imensa depressão. E ficou com toda a soberba constituição de pássaro majestoso, mas incapaz de disfarçar para si mesmo o pouco tempo que lhe restava, e o quanto isto lhe destruiu a capacidade de ver com abrangência. Não venham me dizer que a proximidade da morte cause essas coisas; quase pela mesma época, Edward Said compunha sua biografia e um volume de ensaios onde se negava a afastar uma revificação solar de todas as idéias humanistas de seus outros livros, ele que também via o fim irrevogável se aproximando.

Bolaño não estava apto a continuar a resistência contra os antigos poderes de dominação vigentes e mais poderosos do que nunca na América Latina: a política patriarcal, a mídia a serviço desses poderosos, a grande alienação e o expansivo silêncio. (Não se mostrou apto a incorporar o intelectual que fala a verdade ao poder, na definição ativista de Said.) Resistência que se fazia com uma militância romântica (hoje tão anacrônica em suas singelas tentativas, que de imediato é taxada de ingênua e demagoga) pelos escritores do assim chamado boom da literatura hispano-americana: Miguel Àngel Astúrias, Juan Rulfo, Mário Vargas Llosa, Rômulo Galegos, Júlio Cortázar, Manuel Scorza, o jovem García Márquez.

Com seu nome valorizado nos mais altos índices de graduação pela crítica estrangeira como representante da atual intelectualidade latino americana, o seu quietismo raivoso, a sua falta de fé, o seu queixume derrotado, alinha-se ao pesado silêncio que mais uma vez assola nosso continente. E Bolaño é tanto mais decepcionante por sua desistência por não se poder dizer que os escritores atuantes em outras regiões do planeta perfaçam a mesma entrega de pontos e pacificação resignada; é só ver Ismail Kadaré, Amós Óz, Ohran Pamuk, Mia Couto, entre outros. J. M. Coetzee, por exemplo, continua insurgindo com uma revisão desafiadora contra o instituído ponto comum e politicamente correto em que coube calar a questão da guetização do negro e da miséria ainda reinante sob a edulcorada versão oficial de uma África redimida e liberta pós Nelson Mandela (como no magnífico romance-palestra “Margareth Costello”).

A crítica que cabe a Bolaño é a mesma que em outra época e sob óticas diferentes, D. H. Lawrence fez a Joseph Conrad, não perdoando por este ser um escritor tão inexoravelmente triste. Com todo esse potencial para o fantástico, e cedendo na primeira investida às formas aterrorizantes da falta de perspectivas do mundo real, era o que estava dizendo Lawrence, lamentando que a música bombástica da prosa exuberante de Conrad o engolisse antes que o arrebatasse para fora da cadeira. O que pode alimentar a interpretação de que os trópicos seja um cinturão global cujos atributos coincidentes são o desespero, a apequenização e o silêncio.

Bolaño, com seu estilo que parece ser independente de qualquer influência, sua profusão de histórias, seu talento em revirar a trama inúmeras vezes, seu humor surpreendente, suas frases que aparecem aqui e ali no relevo do coloquialismo como sentenças borgeanas, o que vemos é seu receio em mitificar, em ir além. Suas narrativas são todas sobre exilados que, mesmo professando a mais difícil e anti-moderna das artes — a poesia — , ainda assim são imediatamente descartados como poetas medíocres, mais uns versejadores outsiders que vão se silenciando e rendendo ao suicídio, à doença ou aos aspectos comezinhos da vida cotidiana. Em determinado momento de “Estrela Distante”, o narrador declara que o Chile ainda não está pronto para a poesia.

Os intelectuais que erram pelas páginas de seus livros não estão motivados a transformarem céu e terra, a bradarem seu canto selvagem sobre os telhados do mundo — mesmo que sempre quebrando a cara no final — , como os personagens de Saul Bellow; também não visam o sublime, como os desesperados que se apartam da mesquinharia mundana para seus territórios artísticos pessoais, como o dos livros de Thomas Bernhard. Seus personagens não tem o firme estoicismo intelectual dos de Philip Roth; ou o prosaísmo quixotesco dos de García Márquez; ou o provincianismo que conlui o submundo bairrista da infância com a experiência do militarismo regimentar dos livros de Vargas Llosa. Os seres de Bolaño não se encaixam nem ao mais niilista dos existencialismos; vivem apenas uma pobre e levianamente documentada aventura de passantes. Não existem dois personagens mais anêmicos e inexpressivos que Arturo Belano e Ulisses Lima.

Eu não perdoo que Bolaño seja tão triste. Quem lê “Putas Assassinas”, sai com a certeza de uns três ou quatro contos realmente muito bons, mas com uma sombra na alma que leva dias para desaparecer. Poderão me dizer que mexer com um material tão emocionalmente radioativo como a literatura é tarefa para quem tenha estoicismo suficiente para suportar doses cavalares de desencanto. Mas eu saio revitalizado depois de ler Bernhard, Beckett e Céline (para citar três escritores do desencanto). Ler “Extinção”, “Origem” e “Viagem ao Fim da Noite”, é percorrer uma indignação festiva, uma repugnância que recorda sempre a força de contestação juvenil, a desconstrução de toda certeza e gratidão imposta pela farsa da sociedade equânime; é literatura adrenérgica e viril, que, dependendo da época, deve ser naturalmente reprimida pelo sistema que estiver vigorando.

Já o Chile, Pinochet, as andanças sem rumo pelo México e pela Europa — até as cenas espetaculares numa guerrilha africana que aparece em “Detetives Selvagens” — , são incapazes de romper o isolamento de Bolaño; essa violência mundana não consegue suscitar nele nada mais que o aproveitamento, sob a devida distância, de matéria para sua prosa documental. Um conto de três páginas de Cortazar, “Grafite”, faz mais pela indignação, a denúncia e reação, do que “Amuleto” e aquelas últimas páginas de “Detetives Selvagens”. “Estrela Distante” vai mostrar mais uma vez isso, com um número inédito de aberrações e corpos mutilados, de que Bolaño renunciara à política, à filosofia e à poesia, e o resultado é um livro competentemente limpo de qualquer transcendência em qualquer sentido. O único símbolo sutil perceptivo é deixado à deriva, como se Bolaño, com seu cigarrinho entre os dedos, mandasse às favas o trabalho que daria dar escopo ao inteligente esquema do personagem central ser uma serial killer. Como em Detetives, em que ele não consegue mitificar a procura por 600 páginas pela Cesária Tinajero, ele também não passa ao leitor aquela indagação após fechar o livro de “o que diabos ele quis dizer com aquilo?” O poeta fascista assassino Carlos Wieder representa o que? Bolaño não constrói vínculos inteligíveis em que se possa dizer: “Ah! É a desumanização que a rendição à ditadura causa!”, ou “Ah! Cesária Tinajero é o símbolo da liberdade perdida!” A prosa de Bolaño é indevidamente rarefeita numa época em que a literatura precisa de mais para prosseguir.

Mas vale lê-lo? Vale! Cada centavo empregado! Não sei se Bolaño é um grande escritor. Estou propenso a pensar o contrário, o que seria uma contribuição à mesma mitificação que favorece ao setor das compras antes do deleite da leitura. Um dos melhores livros que li foi escrito por um autor menor, “Pergunte ao Pó”, do John Fante, e pouca coisa há de mais singela que Arturo Bandini (que coincidência!) atirando seu livro publicado em direção às areias do deserto da Califórnia. Não estou dizendo que Bolaño seja medíocre. Mas contra a comercialização desarroada de sua imagem (que só imponho reação quanto às possibilidades críticas, e não contra o quanto se consiga vender de seus livros — é um aspecto de raríssimo otimismo ver Bolaño ocupar algumas listas de mais vendidos), eu creio que o Bolaño verdadeiro é aquele da foto e m que aparece sentado atrás de uma mesa atulhada de papéis, com o olhar perdido para dentro de si mesmo, frágil, solitário, equilibrado com seu cigarrinho eterno na fina linha de sua vida, com a cabeça cheia da música mais angustiante.

Grafite de Roberto Bolaño numa rua de Buenos Aires

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