Pequeno manual prático de coisas inúteis, de Theo G. Alves

Li vários livros lançados por blogueiros e ex-blogueiros. Alguns são muito fracos e, é claro, há os médios e os bons. Os melhores que li foram os de Branco Leone e Theo Alves. O último é morador da pequena Currais Novos, no Rio Grande do Norte. O primeiro livro que li de sua autoria foi A Casa Miúda. Formado por narrativas curtas, na verdade pequenos poemas em prosa — a referência  ao título de Baudelaire é proposital –, são condensadas e de tal modo significativas que fariam a alegria de Pound.

Não pensem que vou me despedir sem que vocês leiam o Theo. Vou publicar amostras de suas pequenas narrativas. Pedi permissão a ele para digitar três ou quatro de seus contos com a finalidade de que meus sete fiéis leitores tomassem contato. (Não pedi permissao para os poemas…!). Escolhi-os quase ao acaso, pois na verdade marquei quase todas as histórias para reler. Poderia ter copiado o belo e triste Pássaros mortos ou Destes caminhos; talvez A história de Cido Marinheiro, ou quem sabe maravilhoso A primeira vez que vi Eva, mas elegi os que estão abaixo.

E agora Theo lança um livro de poemas: Pequeno manual prático de coisas inúteis. OK, nada mais inútil do que a ficção e a poesia. OK, nada mais humano do que a gloriosa necessidade de ficção, de ilusão e de novos e desconhecidos (ou reconhecidos) mundos. É inútil por ser destituída de valor prático tangível, porém… Entre o irônico, o surpreendente e o desencantado, Theo Alves realiza…

Porém quem sabe eu paro de encher o saco de vocês e mostro um pouco do Theo? Os contos e poemas são curtos, fáceis de digitar. Ah, só mais uma coisa. Eu pus contos e poemas alternados porque creio que estes aí dialogam mais ou menos claramente.

Meu silêncio é Gregor Samsa

Não posso pensar no silêncio em que me encontro sem que recorde a imagem amedrontada e perdida, confusa de Gregor Samsa a dormir gente e acordar-se besouro na palavra virtuosa de Kafka.

É para mim dificílimo crer que algum de nós não tenha, em um dia sequer, ainda em uma hora absurda, se encontrado diante do espelho a rodar de costas ao chão, sem que a couraça duríssima nos permitisse virarmo-nos e pormo-nos em pé.

Pois este silêncio que me toma é o olhar de Gregor Samsa. Ponho-me diante do espelho e estou estranho a tudo: a esta aparência que carrego invariavelmente desde que nasci, a este quarto insólito por onde me entregam os pratos de comida que nem mesmo como, a esta voz surda e horrenda que se fez em minha garganta.

Sou estes dias de silêncio. Meu silêncio é Gregor Samsa.

A necessidade de encontrar um caminho que não sei onde começa, o movimento em falso, a distância que tantas vezes me golpeia no ventre, a distância de mim e dos meus: isto é meu silêncio, estas madrugadas inteiras a não lançar sobre os papéis uma palavra fértil sequer. A voz séssil, ainda que momentaneamente, ainda que dêem a esse calar absurdo o nome delicado e inteligente de “hiato”.

Não é hiato. Não é fenda. Nem abismo. É silêncio. Assustador e asqueroso como Gregor Samsa e, como ele, ainda vivo e amedrontado, essencialmente humano.

De A Casa Miúda

Um besouro

quando samsa
acordou-se besouro
a carapaça colada ao chão
era seu inferno

um bom deus
teria dado também
um escudo à consciência
do homem feito bicho

quando samsa
acordasse besouro
não pensaria no medo
ou noutras coisas inúteis

Do Pequeno manual prático de coisas inúteis

Da fé

Quando começamos a nos organizar em hordas e a percorrer as terras no início dos tempos, logo depois de aprendermos a magia do fogo, quando não nos tratávamos mesmo por nome algum, testemunhamos então a primeira morte de um de nossos homens.

Ao vê-lo imóvel, deitado sobre seu braço, ao fim dos dois dias em que descansávamos e comíamos sob arvores esparsas, retomamos a trilha deixando o primeiro de nosso mortos na mesma posição em que ele não se acordara.

Caminhamos por algumas horas até que um de nós, talvez o mais jovem, retornou ao acampamento abandonado empunhando um pequeno lume sob a luz pegajosa do dia e o deixou ao lado de nosso primeiro morto.

Apenas hoje, tantos anos depois daquele dia fatídico, é que volto a recordar seu gesto e compreendo que o fogo posto ao lado do corpo abandonado era uma esperança de que Deus — o Deus em que nenhum de nós havia pensado ainda — pudesse enxergá-lo, mesmo sob o peso daquelas noites sem lua.

De A Casa Miúda

A Memória

a memória —
perfumaria da alma —
e suas pequenas inutilidades
pesam constantemente
sobre as vigas frágeis
do corpo

a maldição da memória
reinventa o tempo —
que já não carece ser
inventado —
e torna amargo
qualquer sabor pueril

apenas o tempo —
nem outra coisa —
é menos útil que
uma lembrança precisa

Do Pequeno manual prático de coisas inúteis

Dos reencontros e de Cabíria

Pensei que aquelas noites com Cabíria se haviam perdido no tempo e noutros puteiros baratos.

Mas a surpresa de reencontrá-las, de rever antigos movimentos, de reencontrar toda a gente e a escuridão dos becos de Currais Novo, sempre inacreditavelmente lindos às três da manhã, foi de um amargor doloroso ainda que delicadamente belo.

Troppo belli, delicatto.

Quando se decide ir embora, voltar é o pior castigo. E, quando voltei para casa, trazendo um par ou dois de fracassos bem sólidos na mochila, senti ainda uma alegria hesitante de rever as ruas antigas, o tempo antigo, a vida que deixei alinhavada nas esquinas e em alguns bares minúsculos, ainda que merecedores de grandes honras.

Reencontro minha cidade e meu tempo. A cidade a que chamo costumeiramente Macondo é hoje a minha Cabíria, a minha puta que amava o amor, como em Fellini.

De A Casa Miúda

Instruções para reconstruir um homem

juntar os
cacos de um homem
não refaz
um homem inteiro

há sempre
um caco de homem perdido
excerto de
um homem inteiro

mas os
cacos amealhados
refazem mais que
um homem inteiro:

um homem refeito
e um caco a mais de esperança

Do Pequeno manual prático de coisas inúteis