Luiz corta seu cabelo no mesmo lugar há décadas. Hoje, porém, entrou no primeiro barbeiro que encontrou e que lhe pareceu agradável: um antigo e tradicional local no centro de Porto Alegre com o incrível nome de Salão Elegante.
Mal tinha adentrado o enorme recinto — um verdadeiro salão — extremamente simples e um senhor parou a sua frente, com a mão estendida:
— Sou Renato — cumprimentou — e estou inteiramente a seu dispor.
Após apertar-lhe a mão, Renato fez uma série de salamaleques servis que Luiz achou risíveis. O barbeiro tinha por volta de 65 anos e cara de vovô bondoso. Luiz notou que a função com ele seria lenta, lentíssima, e que não adiantaria nada dizer “Estou com pressa, meu amigo”. Era uma questão de estilo. Começou a observar e a admirar seus antiquados gestos rituais. Ficou fascinado com a forma com que o Sr. Renato pegava as tesouras e testava-as no ar antes de qualquer corte. Lembrou-se de uma cena do filme de Luchino Visconti, Morte em Veneza: aquela em que Dirk Bogarde (no papel de Aschenbach) faz a barba pensando apaixonadamente no menino Tadzio. Luiz tinha relaxado na cadeira e entrara no clima do filme, tanto que o Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler — trilha sonora do filme — começava a ser executado em sua memória, acrescido de um interessante sono pós-prandial. Foi quando o Sr. Renato atalhou:
— O Sr. não vai deixar de ler a última Playboy, né?
Abriu os olhos e deu de cara com a grande bunda de uma mulher.
Já vira aquele latifúndio dotado de duas belas coxilhas saracoteando na TV e em fotos. Certamente fotoxopadas. Um heterossexual mais truculento diria que um anjo macho soara o alarme a fim de tirar-lhe às pressas — e de forma competente — daquele devaneio homossexual entre Aschenbach e Tadzio. Luiz até pensou em dizer ao Sr. Renato que verdadeiramente não estava com vontade de ver o traseiro de nenhuma mulher naquele momento, mas sabia, desde que se conhecia por gente, da existência de um código masculino que o obrigava a uma vulgaridade e taradice sem tréguas, sob pena de ser apontado como “aquele gay que teve nojo da mulher da capa da Playboy”. As mulheres apreciam homens sensíveis, mas colegas de sexo não podem ficar desapontados. Luiz não cometeria deslizes, não poderia voltar-se para o respeitável Sr. Renato e dizer-lhe:
— Meu amigo, estava fantasiando com um filme de Visconti que descreve a paixão de um compositor no final de sua vida por um menino belíssimo. Amo este filme e, de olhos fechados, já estava ouvindo sua trilha sonora quando o Sr. me veio com a bunda dessa gostosa. Guarde a revista!
Ou será que poderia usar esta alternativa?
— Ihhh, cansei de comer esta mulher.
Ou:
— Minha esposa está vindo aí. Deixa pra lá.
O fato é que, obedientemente, pegou a revista e começou a folheá-la, enquanto a 5ª seguia tocando mesmo fora de seu habitat.
— Tem uns artigos ótimos aí. Bons para um dia de chuva.
Arrã, então Luiz já sabia a que se dedicava o respeitável Sr. Renato em dias de chuva…
— Mas o Sr. oferece esta revista por causa dos artigos? -– perguntou Luiz.
— É claro, há as mulheres também; veja a capa, é uma bonita moça, quem não gosta? — respondeu o respeitável Renato –, mas o principal são os artigos. Eu só leio os artigos.
Claro. Luiz olhou para o chão e viu uma pilha de mais ou menos duzentas Playboys. Quantos artigos não haveria ali? Eram dignos de serem catalogados por assunto. Como o Sr. Renato faria suas consultas?
Ironicamente, um artigo lhe interessou verdadeiramente e Luiz seguiu lendo a Playboy até o fim. Ficou na dúvida entre devolvê-la ou não acompanhada de uma observação hardcore quando, rápido como um raio, ouviu o barbeiro trovejar:
– E esta aqui é a do mês passado!
Enquanto folheava a segunda revista, sorria ironicamente à imagem de Aschenbach morrendo serenamente no Lido, com o olhar posto em Tadzio. E dormiu.
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