1966, a Copa divisora de águas: Pelé caçado, Rattín expulso

A Copa do Mundo de 1966, na Inglaterra, foi um divisor de águas na história das Copas. Foi a primeira a ser disputada na casa dos ingleses e estes queriam aproveitar a oportunidade para ganhar o título pela primeira vez. Foi uma das Copas mais violentas já disputadas.

Até 66 não podia ser feita substituição de jogadores durante os jogos. Se alguém se machucasse não podia ser substituído. A seleção tinha que jogar com menos jogadores. Alguns exemplos foram se acumulando. Logo na primeira Copa, o goleiro André Thepot, da França, foi substituído pelo zagueiro Chantrel quando se contundiu durante o jogo. Em 58, num lance casual com Vavá, o zagueiro Jonquet, da França, quebrou a perna. Em 62, Pelé se contundiu sozinho no jogo contra a Tchecoslováquia e não pode ser substituído.

Em 66, Pelé foi caçado no jogo contra Portugal e passou a fazer número em campo, tudo às vistas do juiz inglês. Foi um jogo absolutamente inacreditável nos dias de hoje. Portugal tinha um bom time, tinha Eusébio, mas abusou demais na violência.

Outro fato decisivo foi a expulsão do capitão argentino Rattin no jogo contra a Inglaterra. O juiz era da Alemanha, não falava inglês, nem Rattin. O Rudolf Kreitlein expulsou o argentino por indisciplina e pela expressão do rosto de Rattín, embora o alemão não entendesse espanhol. Os argentinos reclamaram, alegando nenhum motivo da expulsão de Rattín, que solicitou um intérprete. O jogo parou por dez minutos, antes que Rattín saísse. Ele se recusou a sair de campo e acabou sendo escoltado por vários policiais. Não satisfeito, pegou uma bandeira do Reino Unido e amassou. Por isto, a FIFA obrigou os árbitros a utilizarem cartões amarelos e vermelhos.

Estes dois fatos contribuíram para as medidas tomadas para a Copa de 70, no México. Já poderiam ser feitas duas substituições durante o jogo e hoje já evoluiu para três e até quatro se tiver prorrogação. E foram instituídos os cartões amarelos e vermelhos para facilitar a comunicação entre árbitros e jogadores.

Dona Flor e seus Dois Maridos, a opinião da censura portuguesa

Dona Flor e seus Dois Maridos, a opinião da censura portuguesa

PIDE era a sigla para Polícia Internacional e de Defesa do Estado. Entre 1945 e 1969, a instituição foi a responsável pela repressão a todas as formas de oposição ao regime político salazarista. Como o nosso DOPS, a PIDE utilizava a tortura para obter informações e volta e meia assassinava alguém, às vezes inadvertidamente, outras realizando emboscadas para matar mesmo. Ela também cuidava de quem entrava e saía de Portugal. Abaixo, uma curiosidade: o veredito sobre Dona Flor e seus Dois Maridos, de Jorge Amado, aprovado para publicação em Portugal.

Passou por ser gordinho e caro…

São Joze do Tibiquary

Por Rodrigo Agra Balbueno
agosto/2018

No Rio Grande do Sul

Esse pedaço de Brasil que se convencionou chamar de Rio Grande do Sul passou por maus bocados até que seus limites se consolidassem como hoje se conhece. Em meados do Século XVIII, daria para descrever a situação como uma “zona”, em português atual. Mas sequer era o português que se falava em uma porção surpreendentemente grande de seu território.

Entre 1763 e 1776 os espanhóis, sob o comando do Governador de Buenos Aires D. Pedro de Cevallos, tomaram um belo naco do atual território gaúcho. A confusão começou a partir dos desdobramentos do Tratado de Madri (1750), em que Portugal e Espanha definiram os limites de suas colônias na América em termos mais ou menos geográficos, usando rios, serras e outros acidentes naturais como marco e seguindo o princípio do direito privado romano do utis possidetis, ita possedeatis (quem possui de fato deve possuir de direito). Neste momento, o Tratado de Tordesilhas, raro acordo em que se compartilhava algo que a rigor nem se conhecia, já virara letra morta diante da notável empreitada colonial das duas nações ibéricas.

O novo acordo previa que cada signatário manteria os territórios que então possuíssem. Só que o documento também indicava algumas exceções que incluiriam “mútuas concessões que nesse pacto se iam fazer e que em seu lugar se diriam”. Como pelo jeito nenhum lado havia ficado exatamente satisfeito com o teor do pacto, em 1761 o tratado foi revogado, mas a essa altura dos fatos não havia jeito de resolver a questão de forma pacífica.

O Tratado de Madrid determinava a troca da Colônia de Sacramento, enclave português na boca do Rio da Prata, pelo território das Missões, ainda sob domínio dos jesuítas espanhóis. A ideia parecia correta, mas portugueses e espanhóis esqueceram de combinar com os Guarani, que pelo tratado deveriam mudar de mala e cuia para a margem direita do rio Uruguai. Os Guarani não concordaram e sob o comando de Sepé Tiaraju travou-se o que a história chamou de “Guerra Guaranítica”. Desse episódio ficou a divisa “Esta terra tem dono”, hashtag avant la lettre de inegável apelo de marketing mas algo descolada da realidade, haja vista o desfecho trágico da campanha para os índios.

Embora Portugal e Espanha hajam atuado como uma força de ocupação conjunta para a expulsão dos Guarani, a união assentada em bases muito frágeis pouco durou e em 1763 os espanhóis tomaram a Colônia de Sacramento e ocuparam a vila de Rio Grande, obrigando os portugueses a se refugiarem em Viamão. Nessas circunstâncias, o domínio português se limitava à península de Mostardas ao sul e a um pedaço do vale do rio Jacuí a oeste, até a altura de Rio Pardo, posto avançado de fronteira dominado pela Fortaleza de Jesus Maria José.

Os portugueses tinham plena convicção de que o controle territorial só estaria assegurado se houvesse a ocupação efetiva das terras e desde 1747 estabeleceram-se programas de novas vilas e a migração subsidiada de casais, o que conduz essa história ao ponto que interessa neste momento e que trata da chegada de açorianos ao porto de São José do Tibiquary. Sete casais em 1760 e outros 14 casais em 1764, embora haja algumas dúvidas quanto a esses números.

Quando os açorianos chegaram, por ali já estavam dois bandeirantes paulistas desgarrados, mas o ato inaugural da povoação é de 1764, com a consagração da capela, no mesmo ano em que o Coronel José Custódio de Sá e Faria foi nomeado governador da Capitania do Rio Grande. Se hoje parece um emprego dos mais desgastantes, imagine-se naquela época.

Na metrópole o quadro tampouco era animador. Lisboa havia sido praticamente varrida do mapa pelo terremoto de 1755 e em 1760 o ouro de aluvião das Minas Gerais já havia se esgotado, cortando o fluxo de recursos que permitiu o enriquecimento de uns poucos portugueses e, diz a lenda, ajudou os ingleses a formarem uma reserva que fundou as bases do capitalismo contemporâneo e financiou a revolução industrial.

Largadas no fim do mundo português na América, a pouco mais de 50 km de seu limite efetivo, na cidade de Rio Pardo, longe e demais das preocupações mais comezinhas da corte, a chegada das famílias açorianas não deve ter sido exatamente tranquila, mesmo diante da perspectiva de habitar uma das primeiras – senão a primeira, cidade projetada do vastíssimo território lusitano da margem ocidental do Atlântico.

O Governador Sá e Faria, como sugere seu nome, faria tudo o que estivesse a seu alcance para garantir o sucesso da empreitada colonial e em carta de 10 de janeiro de 1768 ao Vice-rei, Conde de Azambuja, não só informa que o núcleo urbano já estava formado como assevera que “(…) no passo do Rio Tebiquary, fiz um grande forte de terra batida, capaz de vinte peças de artilharia.”

Os espanhóis nunca transpuseram a “tranqueira invicta” de Rio Pardo e do forte de terra batida não restou vestígio, nem mesmo na memória da grande maioria dos taquarienses. Algumas fontes chegam a duvidar de sua existência e, considerando o quadro geral, é bem possível que ninguém da corte se desse ao trabalho de confirmar a afirmação do Sr. Governador, que talvez sabedor da importância de demonstrar eficiência para a manutenção de seu posto possa ter exagerado um pouco na autopromoção em sua comunicação com o Vice-rei.

No Rio de Janeiro

Essa história agora se volta para o que foi o centro do poder colonial, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Mais exatamente para o Palácio Duque de Caxias, que abriga o Comando Militar do Leste e que foi sede do Ministério da Guerra até a transferência da capital para Brasília. O edifício está na Av. Presidente Vargas, ao lado da Estação Central do Brasil. Quando de sua construção, era o maior prédio público do país e, malgrado a ironia arquitetônica, parece saído diretamente do classicismo soviético.

No vetusto QG está o “Arquivo Histórico do Exército – AHE” e após transporem-se os procedimentos regulares de identificação para o acesso a qualquer dependência militar, aguarda-se em uma sala de espera que revela que os efeitos da crise fiscal não poupou em absoluto a caserna. Cadeiras rotas, uma roleta para identificação com cartão magnético mas que tem ao lado uma soldado relativamente entediada que diz a cada um que se aproxima “é só passar direto”, lembrando sempre que é necessário manter o crachá à vista. No caso dos consulentes do arquivo histórico, é necessário aguardar que um militar desça e os acompanhe até o terceiro andar, onde está a sala de consulta. No turno da tarde, o horário para consulta é o que se pode chamar de enxuto, indo das 13h às 14:45h. Descontando-se a espera de uns vinte minutos pelo militar acompanhante, nesta tarde chuvosa de agosto restaria pouco mais de uma hora para o que se pretende fazer.

Ali, na primeira visita ao acervo, é necessário aguardar o oficial responsável, um simpático e amabilíssimo capitão em trajes civis, que pede que seja novamente identificado o material que se pretende consultar e se preencha uma ficha, embora uma versão já tenha sido enviada anteriormente, quando se fez o primeiro contato necessário ao procedimento de consulta.

Uma dúvida quanto ao teor do que está sendo buscado faz com que o capitão conduza o ansioso pesquisador até uma outra sala e, confirmado o conteúdo, o código de catalogação é anotado em uma ficha que é repassada a outro militar, responsável por buscar o material na mapoteca, que está em outro local do gigantesco complexo. No presente caso era assim: 5 RS 07.03.1480 e 5 RS 07.04.1593.

Mais uma espera, os minutos escoando inapelavelmente, até que duas pastas de cartolina grossa são depositadas sobre a mesa em que se daria a consulta. As pastas são do tamanho exato de seu conteúdo e minuciosamente vedadas com fita adesiva marrom, com a exceção da abertura por onde se retira o material que se pretende analisar.

É uma sensação inusitada. As mãos suam dentro das luvas de vinil e as têmporas vibram um tom acima do normal. De dentro de duas saem a “Planta da Villa de S. Joze que novamente se erige na margem oriental do rio Tabiquary (sic)” e o “Projecto para o Forte do Paso do Rio Tibiquary”. O papel amarelado, algumas marcas, letras manuscritas, o desgaste implacável do tempo, os traços precisos e refinados ali, ao seu inteiro dispor, em um quartel no Rio de Janeiro. Por onde passaram em um quarto de milênio? Quantos taquarienses um dia tiveram essas duas folha de papel em suas mãos? O que se sabe exatamente de tudo isso?

O exército não dispõe de estrutura para a digitalização e a remoção das obras das dependências do AHE nem se cogita. Resta a possibilidade de fotografar e manusear o fantástico material, virar do avesso, tentar entender cada minúcia antes que a sensação única que esse contato permite se perca nos desvãos da memória, nos minutos que restam até o encerramento do horário de consulta.

A Planta da Villa tem 39,5 x 27,5 cm e está emoldurada como um quadro, em um paspatur azul de papel grosso, sem que se veja seu verso. O subtítulo já desperta uma curiosidade que se prevê insaciável. Como assim, “que novamente se erige”? A cidade alta e planejada se contrapunha à ocupação espontânea que teve início junto à foz do arroio Tinguité?

A planta mostra um pedaço da cidade que qualquer um que a conheça identifica à primeira vista. A igreja, a praça e o traçado ortogonal das ruas do entorno, embora se perceba que os povoadores não tomaram a planta ao pé da letra. Há uma estreita “rua para serventia dos quintais” nos fundos da primeira linha de casas perpendiculares à praça que provavelmente foi incorporada aos terrenos ali implantados. Estão também indicadas as “cazas para o vigário” e as “cazas para câmara quando a houver”, uma de cada lado da igreja. Uma cidade nascendo antes mesmo de ter o poder legislativo constituído, antes ainda da Revolução Francesa e da popularização da ideia de separação dos poderes.

Há também a indicação da posição de “Praça para Pelourinho” que se um dia houve foi absorvida pela malha urbana. A cidade colonial evolui engolindo seu passado, mesmo que muitas vezes ele a assombre de uma forma ou de outra.

Na porção inferior da planta encontra-se ainda um “prospecto de hua ilha de cazas para quatro moradores com MN.”, que indica um conjunto de quatro unidades habitacionais que configurariam a frente das quadras desenhadas acima. O padrão janela-porta-janela, o telhado em quatro águas e a cumeeira paralela à rua trazem para os confins da América um pouco de geografia urbana dos açores, revelando a preocupação de quem as projetou de oferecer a seus futuros moradores um espaço algo familiar, ainda que do outro lado do mundo.

Já o “Projecto para o Forte do Paso do Rio Tibiquary”, um retângulo de 43 x 28 cm de uma beleza delicada e repleta de detalhes que revelam claramente a preocupação estética do autor, além dos objetivos defensivos que levaram à sua confecção. Há uma rigidez militar na simetria do polígono forte, apesar das marcadas diferenças entre sua parte frontal e a retaguarda.

É visível o cuidado extremado do autor no acabamento, no sombreamento que sugere a declividade dos talude, no marrom mais claro do fosso, na precisão milimétrica do desenho das baterias e na ornamentação da barranca do rio, onde se veem tufos de vegetação herbácea, o que sugere tratar-se de um sítio já plenamente conquistado, onde a vegetação ciliar já fora previamente removida.

O corte apresentado na direita do projeto permite que se tenha uma ideia da robustez pretendida para a fortificação, embora uma estrutura de terra batida junto à linha d’água pareça algo temerário. Ou quem sabe nesse tempo as cabeceiras virgens do rio enorme atenuassem as grandes cheias que causariam transtornos tantos anos depois?

A tinta usada para colorir o rio deve haver afetado o papel de uma forma distinta do resto do documento, e ali o papel está muito fragilizado, com algumas rupturas e a perda de fragmentos. Todo o documento apresenta marcas de desgaste, com alguns vincos acentuados que dão uma ideia das voltas que pode ter dado até repousar na gaveta de uma mapoteca no centro do Rio de Janeiro.

No extremo superior do projeto, no talude à direita da ponte se vê um elemento curioso, que não se repete em nenhum outro ponto da área fortificada. Ali, serpenteiam duas linhas paralelas que parecem indicar a presença de um curso d’água, um arroio ou uma sanga que quem sabe alimentaria o fosso ou mesmo poderia abastecer de água a guarnição ali instalada, em caso de cerco.

Não há uma rosa-dos-ventos ou um sistema de coordenadas para indicar a posição da estrutura no terreno, mas uma olhada rápida no Google Earth permite que se suponha que o projeto esteja orientado como um mapa, com o norte para cima. O rio Taquari, cujo traçado se orienta no sentido norte-sul de Muçum até encontrar o Jacuí Triunfo, do arroio Tinguité ao passo e na escadaria do porto está orientado de oeste para leste, com a margem esquerda exatamente na mesma posição em que se apresenta no desenho, em um claro indício quanto à localização exata do forte. Se um dia efetivamente existiu, é uma outra conversa.

Contrariando as palavras do Governador Sá e Faria na carta ao Vice-Rei, ao invés de vinte baterias a estrutura do forte indica o posicionamento de dezoito e sua disposição não deixa dúvida quanto à preocupação defensiva. Desses dezoito espaços previstos para a colocação dos canhões, doze estão voltadas para o rio, na parte inferior do projeto. Outros quatro se dirigem aos flancos da estrutura e somente dois guarnecem a retaguarda voltada para a cidade alta e onde se localiza a ponte de acesso ao forte, sobre o fosso, esse, por sua vez, com profundidade suficiente para dificultar qualquer tentativa de escalada.

Além da diferença no número de canhões do desenho do forte e da carta do Governador, outros detalhes reforçam a aura de suspeição que paira sobre sua existência. Nas convenções da época, em vermelho estariam representadas as estruturas já existentes e o amarelo indicaria algo em planejamento ou projetado. Na porção central do desenho, à esquerda, se vê um pequeno retângulo em vermelho, com um detalhe em preto que a primeira vista se parece a uma cruz, mas que também pode ser interpretado como um canhão. Uma única peça em posição mais elevada, quiçá precursora de uma estrutura que pode nunca ter sido efetivamente erigida.

Até onde se sabe, o projeto do forte seria de autoria do próprio Governador, formado em engenharia e arquitetura na Academia Militar das Fortificações de Portugal, em 1745. Sá e Faria foi enviado ao Brasil como membro da Comissão Demarcadora que iria estabelecer os limites das possessões de Portugal e Espanha na América e sua nomeação como Governador, em 1764, está diretamente relacionada à necessidade de reforçar as defesas do território gaúcho por conta da invasão castelhana, posto que deixou em 1769 para regressar ao Rio de Janeiro onde, entre outras tarefas, idealizou o projeto da Fortaleza da Ilha das Cobras.

Apesar da autoria atribuída à Sá e Faria, no canto inferior direito do projeto se lê “pelo Sargento Mor Manoel Vieira Leão”, segundo consta responsável pela construção do forte. Seria dele também a “Planta da Villa”, embora essa informação não conste de seu desenho. O destino desses dois militares cuja presença no território sul-rio-grandense deixou tantas marcas ficou, no entanto, muito distante das glórias que lhes pareciam reservadas diante da importância dos serviços prestados.

Em 1776 os dois estavam no Rio de Janeiro, o Governador Sá e Faria promovido a Brigadeiro e Manoel Leão com o posto de Major, quando foram enviados para Santa Catarina, para organizar as defesas da ilha para conter a iminente tentativa de invasão pelos espanhóis, novamente sob o comando do já notório D. Pedro de Cevallos, agora Vice-rei do Rio da Prata e que desde 1763 andava assombrando as posições portuguesas no sul do Brasil.

Quando os espanhóis tomaram a ilha de Santa Catarina em 1777, coube ao Brigadeiro Sá e Faria negociar os termos da rendição da guarnição portuguesa. Surpreendentemente, de lá partiu com Cevallos para Buenos Aires de onde nunca mais voltou, tendo sido figura de destaque no urbanismo da região, com projetos tanto na capital do Vice-reino como em Montevidéu, Colônia e Maldonado. Viveu o resto de seus dias na Argentina e está enterrado no Convento de Santo Domingo, em Buenos Aires, com o nome castelhano de José Custodio de Sáa y Faria.

Já seu subordinado Manoel Leão teve pior sorte e foi levado preso ao Rio de Janeiro, acusado, juntamente com outros oficiais, de leniência na defesa da ilha de Santa Catarina. Em 1780 teria sido transferido para Lisboa para o cumprimento da sentença até 1786, quando a Rainha D. Maria I o perdoa de todas as acusações e ordena que seja reformado no posto de Major.

Um detalhe curioso é observado na margem inferior, no verso do projeto. Em letra perfeitamente legível está a seguinte indicação “Fortaleza de Taramandahí – Tibiquarí”, no que parece ser um equívoco fixado para sempre do responsável pela catalogação do projeto em algum momento de sua larga trajetória por arquivos militares. A cor da tinta é distinta da que foi usada no lado frontal e a grafia da palavra que corrige o erro é distinta do título que se lê no título do documento (Tibiquarí x Tibiquary).

Não há qualquer indicação de data em nenhum dos dois documentos é muito provável que tenham sido confeccionados em período muito próximo, o que corroboraria o notável esforço empreendido pela coroa portuguesa para a implantação do núcleo urbano perdido nos confins de seu território ultramarino e para sua proteção.

Em qualquer lugar

Três minutos antes do horário marcado, o capitão entra na sala dos pesquisadores e em tom bonachão vai dizendo “bom, todos os mapas já foram vistos e fotografados…” e deixa efetivamente as reticências no ar, enquanto o militar encarregado do transporte de volta para a mapoteca gentilmente ajuda a recolocar o material em seus envelopes e logo desaparece com eles debaixo do braço.

A “Planta da Villa’ e o “Projecto para o Forte” voltarão a repousar em uma sala gelada, a espera de alguém um dia volte a manuseá-los, ou quem sabe até que haja condições para sua digitalização e que a possibilidade de ao menos vê-los no esplendor de seus detalhes esteja ao alcance de qualquer um que se disponha a procurá-los.

A Carta de Pero Vaz de Caminha, a partir da qual se dá a construção da ideia de Brasil, mesmo antes de haver qualquer certeza sobre a real extensão do achamento relatado, está depositada no Arquivo Nacional Torre do Tombo, em Lisboa, e com meia dúzia de cliques é possível ver cada uma de suas página na tela de um computador.

Os documentos sob a guarda do exército brasileiro num quartel no centro do Rio de Janeiro são admiráveis. Neles ainda se percebe o admirável de Portugal, dois séculos e meio depois daquela carta inaugural, para garantir a soberania sobre um pedaço de terra no fim do fundo da América do Sul, identificando Taquari como um local chave para suas pretensões, a tal ponto de prever uma ocupação planejada de sua parte alta e a construção de um forte capaz de deter o invasor espanhol na hipótese, naquele momento bastante plausível, de ele transpor a posição defensiva de Rio Pardo.

Taquari tem o direito a ter acesso, ainda que virtual, a esses documentos fundadores de sua história e que, guardados numa gaveta anônima, são simplesmente desconhecidos da grande maioria de seus cidadãos.

A vila de Monsanto, em Portugal

A vila de Monsanto, em Portugal

Em Portugal, a pequena vila de Monsanto é chamada de “a mais portuguesa de Portugal”. Não entendo. Monsanto certamente não é representativa de todo o país. A final, a maioria das casas portuguesas não estão construídas entre pedras gigantes.

Monsanto localiza-se numa montanha com vista para quilômetros de campo. A aldeia quase não mudou nos últimos séculos e goza da fama de ser um museu a céu aberto. É claro que está tombada como patrimônio da humanidade, o que mantém seu charme.

Suas ruas minúsculas serpenteiam pedras. Suas calçadas são estreitas e íngremes. Várias casas têm paredes que acabam em imensas pedras lá fora cobertas de musgo. Algumas destas receberam com portas, dando entrada à aposentos esculpidos diretamente na rocha.

É uma cidade montanhosa muito pouco ortodoxa. Fica quase na fronteira com a Espanha, na mesma latitude de Coimbra, aproximadamente.

Fontes: aqui e aqui.
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https://www.almadeviajante.com/monsanto-aldeia-historica-portugal/ https://www.omeuescritorioelafora.pt/ficar-na-aldeia-historica-monsanto-casa-do-miradouro/

Como se roubam livros em Portugal

Como se roubam livros em Portugal

Uma vez, publiquei um rumoroso post chamado Ensinando a roubar livros. Tive que retirar do ar este que talvez seja meu post mais comentado até hoje, após receber uma comunicação extra-judicial da Livraria Saraiva. Tenho o texto e garanto-lhes que o melhor são os comentários. São antológicos, maravilhosos, cheios de experiência. O post me granjeou uma fama tão planetária que fui entrevistado pela Folha de São Paulo… Para minha alegria, poucos livreiros parecem ter lido meus sábios ensinamentos e ainda posso entrar e sair de seus estabelecimentos com o título de bom cliente honesto.

Pois dia desses, meu amigo Fernando Guimarães veio tentar me seduzir me provocar para mais um post. É que jornais portugueses estavam novamente tocando neste assunto tão caro à humanidade pós-Gutenberg. Procurem não ler o texto que segue com o pobre olhar do moralismo, mas sim com o horizonte largo da profunda sede de cultura.

~o~

Criminosos improváveis: Como se roubam livros em Portugal

Há de tudo: até padres e coxos atacam nas livrarias portuguesas

A Renault Express não chegou. Foi preciso uma Ford Transit — com uma bagageira que consegue transportar quatro pessoas deitadas — para Antero Braga, ex-administrador da Bertrand, recuperar os livros que o professor disfarçado de cliente fiel lhe roubara durante vinte anos. Um mês depois de a livraria do Chiado ter instalado o sistema de alarmes, este disparou à passagem do insuspeito professor da Escola de Belas Artes, com conta corrente na loja. Mal sabia Antero Braga que acabaria por ganhar o dia: quando a caminhonete estacionou à porta, carregada com mais de mil livros roubados, percebeu que tinha recuperado o dinheiro investido nos alarmes.

Um milhar de livros roubados nem sequer chega a ser recorde. Nos anos 70, o mais famoso ladrão entre os livreiros do Chiado, conseguiu construir uma biblioteca ainda maior: 30 mil volumes. Só precisou de se disfarçar de padre e de uma batina com um forro falso.

As carreiras dos livreiros estão recheadas de flagrantes improváveis: um disfarçado de padre, um padre a sério, um disfarçado de coxo, munido de muletas.

Antero Braga, atual proprietário da livraria Lello, adianta que por ano são roubados “uma centena de livros” na livraria portuense. José Pinho, da Ler Devagar, aponta para 20 livros roubados por mês. A Bertrand do Chiado só num fim-de-semana viu desaparecer 18 exemplares do mesmo livro. A Almedina suspeita que a taxa de furtos seja semelhante à dos EUA — onde os roubos representam “1,7% do volume de vendas”. Jaime Bulhosa (Pó dos Livros) explica a quebra aos leigos dos números: “Por cada livro roubado, tem de se vender três livros iguais só para cobrir o prejuízo.”

Há os ladrões profissionais — que roubam para vender –, e os amadores — que roubam um livrinho por ano — e até os VIP. “É muito comum apanhar figuras públicas. E o mais vergonhoso ainda é o que roubam. Já vi de tudo, até as anedotas do Herman”, conta Jaime Bulhosa.

O volume dos livros nem intimida os ladrões. Pelo contrário: os calhamaços até são os preferidos: 2666, o mais roubado na Bertrand em 2009, tem mais de mil páginas. Na mesma loja, já roubaram o dicionário Houaiss — três volumes que pesam 11 quilos. A Bíblia — pecado dos pecados — é um dos mais roubados de sempre. José Pinho (Ler Devagar) perseguiu “um ladrão pela baixa de Lisboa durante uma hora”, até dar com os cinco volumes das obras completas de Jorge Luís Borges no caixote do lixo.

Os bestsellers lideram a lista de roubos. Os livros mais caros também são apetecíveis e os livreiros optam por tê-los debaixo de olho — atrás ou à frente do balcão. Mas há quem roube os títulos mais improváveis. Jaime Bulhosa diverte-se a contar no blogue da Pó dos Livros a sua investigação não finalizada sobre um misterioso ladrão culto. “Desconfiamos que seja a mesma pessoa, porque só rouba poesia e música erudita.”

Por Sheila Bastos, no Lagoinha.com


Revolução dos Cravos: a primavera após uma noite de 48 anos

Revolução dos Cravos: a primavera após uma noite de 48 anos

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Durou décadas a ditadura em Portugal. A rigor, foram 48 anos entre os anos de 1926 e 1974. Só Antônio de Oliveira Salazar governou por 36 anos, entre 1932 e 1968, e a Constituição de 1933, que implantou o Estado Novo nos moldes do fascismo italiano com seu Partido Único, permaneceu até 1974, por 41 anos.

Capa do jornal república de 25 de abril de 1974 (Clique para ampliar)

Acabou em 25 de abril de 1974 numa revolução quase sem tiros. Morreram apenas quatro pessoas pela ação da DGS (ex-PIDE). A adesão aos militares que protagonizaram o golpe na ditadura foi tão grande que as cinco mortes mais pareceram um desatino final. O nome de “Revolução dos Cravos” foi devido a um ato simbólico tomado por uma simples florista. Ela iniciou uma distribuição de cravos vermelhos a populares e estes os ofereceram aos soldados, que os colocaram nos canos das espingardas.

Tudo fora bem planejado. A ação começou em 24 de abril de forma muito musical. Um grupo militar instalou secretamente um posto no quartel da Pontinha, em Lisboa. Às 22h55 foi transmitida por uma estação de rádio a canção E depois do adeus, de Paulo de Carvalho. Este era o sinal para todos tomarem seus postos. Aos 20 minutos do dia 25, outra emissora apresentou Grândola, Vila Morena, de José Alfonso. Ao contrário da primeira canção, a qual era bastante popular, Grândola estava proibida, pois, segundo o governo, fazia clara alusão ao comunismo.

Passados 38 anos, todos reclamam em Portugal. Tendo no centro do cenário a atual crise econômica, a esquerda considera que o espírito da revolução se perdeu, assim como várias das conquistas dos primeiros anos, enquanto a direita chora as estatizações do período pós-revolucionário, afirmando que esta postura prejudicou o crescimento da economia. O ex-presidente Mário Soares afirma  que tudo o que ocorreu nos últimos 38 anos pode ser discutido e reavaliado, mas que a comparação entre o passado e o que há hoje é comparar “um passado de miséria, de guerra e de ditadura” com um país onde há “respeito pela dignidade do trabalho, pelos sindicatos e pela democracia pluralista”.

Deus, Pátria e Família (Clique para ampliar)

A ditadura iniciou em 1926 com o decreto que nomeou interinamente o general Carmona para a presidência da República. Após a dissolução do parlamento, os militares ocuparam todas as principais posições do governo. A ditadura teve o condão de unir todos os partidos que antes disputavam entre si. Eles enviaram uma declaração conjunta às embaixadas dos EUA, Inglaterra e França, informando que não reconheciam o governo. Em resposta, a repressão policial foi acentuada e todos os que assinaram a declaração foram presos em Cabo Verde, sem julgamento.

Todas as revoltas foram sufocadas enquanto os militares se viam às voltas com uma crise econômica. Havia duas correntes: uma representada pelo ministro das finanças, o general Sinel de Cordes, que desejava recorrer a um empréstimo externo e outra, de um professor de finanças da Universidade de Coimbra, Antônio de Oliveira Salazar, que pensava não ser necessário o empréstimo externo para resolver a difícil situação financeira do país. O empréstimo não foi feito em razão de que as condições exigidas eram inaceitáveis – quase as mesmas que a “troika” exigiu e levou atualmente. O resultado final do episódio foi o pedido de demissão de Sinel de Cordes e o convite a Salazar para a pasta das finanças.

O ditador solitário

Salazar impôs austeridade e rigoroso controle de contas. Obteve o equilíbrio das contas de Portugal em 1929. Na imprensa, controlada pela censura, Salazar era chamado de “o salvador da pátria”. O prestígio ganho junto ao setor monárquico e católico, além da propaganda, consolidavam pouco a pouco a posição de Salazar, abrindo espeço para sua ascensão. Ele se tornou o esteio dos militares, que o consultavam para tudo, principalmente para as reformas ministeriais. Enquanto a oposição era dizimada, Salazar recusava o retorno ao parlamentarismo e à democracia da Primeira República, criando a União Nacional em 1930, preparando a instalação de um regime de partido único.

Em 1932, foi discutida uma nova Constituição que seria aprovada no ano seguinte. Nela, é criado o Estado Novo, uma ditadura que dizia defender “Deus, a Pátria e a Autoridade”, principalmente a terceira, que depois foi alterada para Família. A ditadura portuguesa foi muitíssimo pessoal e revelava claramente o caráter de seu chefe. Salazar era uma estranha espécie de misantropo que governava um país ao mesmo tempo que amava a solidão e posava de inacessível. Suas palavras são surpreendentes, mesmo para um ditador. “Há várias maneiras de governar e, a minha, exige isolamento… O isolamento muito me ajudou a desempenhar minha tarefa e permitiu-me, no passado como hoje, concentrar-me, ser senhor do meu tempo e dos meus sentimentos, evitar que fosse influenciado ou atingido”. Muito católico, Salazar nunca casou e vivia entre padres. O cardeal de Lisboa, D. Manuel Gonçalves, disse dele: “é um celibatário austero que não bebe, não fuma, não conhece mulheres”, mas, a fim de afastar qualquer inclinação homossexual, ressaltou: “mas ele aprecia a companhia das mulheres e a sua beleza sem, no entanto, deixar de levar uma vida de frade”.

Salazar e Franco: colaboração e frieza

Tal como fazia na vida privada, Salazar criou uma curiosa política e um bordão não menos. Praticava uma política de isolacionismo internacional sob o lema Orgulhosamente sós. Atuava de forma tortuosa. Apoiou Franco na Guerra Civil de 1936, mas manteve com este uma relação fria e desconfiada. Durante a Segunda Guerra Mundial, agarrou-se à neutralidade como se disto dependesse sua vida. Talvez tivesse razão. Próximo ideologicamente do fascismo italiano, Portugal não hostilizou o eixo Roma-Berlim-Tóquio, apesar de ter tornado ilegais os movimentos fascistas, prendendo seus líderes. Comprou armas, mesmo durante a Guerra, tanto na Alemanha quanto da Inglaterra, evitando o confronto e a adesão. Acendendo uma vela para cada um dos lados, Salazar aceitava dar vistos a judeus em trânsito vindos da Alemanha e da França. Também concedeu aos Aliados uma base nos Açores.

O ditador foi homenageado por Fernando Pessoa.

Antonio de Oliveira Salazar

Antonio de Oliveira Salazar.

Três nomes em sequencia regular…
Antonio é Antonio.
Oliveira é uma árvore.
Salazar é só apelido.
Até aí está bem.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.

Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A água dissolve
O sal,
E sob o céu
Fica só azar, é natural.

Oh, c’os diabos!
Parece que já choveu…

Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho…

Bebe a verdade
E a liberdade,
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.

Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné,
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé,
Mas ninguém sabe porquê.

Mas, enfim, é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé:
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café.

Após a Segunda Guerra Mundial, manteve a política do Orgulhosamente sós, mas nem tanto assim, pois Salazar desejava permanecer orgulhosamente só, porém, com suas colônias. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional e a ONU passaram a defender políticas de autodeterminação dos povos em regiões colonizadas. Salazar ignorou o fato, levando o país a sofrer consequências negativas tanto do ponto de vista econômico como culturais.

Charge de 1957, publicada em jornal clandestino

Internamente, a violência da democracia de fachada de Salazar não ficava nada a dever a suas congêneres latino-americanas. O Estado Novo tinha sua polícia política, a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), a qual era antes chamada de PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) e depois de DGS (Direção-Geral de Segurança). Em comum, a perseguição e morte aos opositores do regime. O regime autoritário, mas sem violência é uma fantasia que muitos católicos portugueses gostam de manter, pois a Igreja Católica sempre era citada por ele. Até hoje, alguns saudosos de Salazar misturam fascismo e catolicismo.

Em março de 1961, ocorreu uma chacina de colonos civis no norte de Angola. A resposta de Salazar foi uma Guerra Colonial chamada  Para Angola rapidamente e em força. Depois, novas guerras em Guiné e Moçambique, sempre com o propósito de permanecer orgulhosamente só, mas com as províncias ultramarinas sob sua bandeira. As Guerras Coloniais tiveram como consequências milhares de vítimas e forte impacto econômico sobre o país, tendo sido uma das causas da queda do regime.

Salazar foi afastado do governo em 27 de Setembro de 1968, após uma grave queda em casa, o que lhe causou uma trombose cerebral. Seu fim foi digno de opereta: naquele 1968, o então Presidente da República, Américo Tomás, chamou Marcello Caetano para substitui-lo. O curioso é que, até morrer, em 1970, Salazar continuou a receber “visitas oficiais” como se fosse ainda o presidente do país, nunca manifestando sequer a suspeita de que já o não era, no que não foi contrariado.

Negociações para a rendição da PIDE/DGS, no dia 26 de Abril de 1974. Fotografia de Joaquim Lobo.

O longo inferno foi finalizado pelo 25 de Abril, tal como o conhecem os portugueses. O Movimento das Forças Armadas (MFA) foi composto por oficiais intermediários da hierarquia militar, na sua maioria, eram capitães que tinham participado na Guerra Colonial e que foram apoiados por oficiais e estudantes universitários. Este movimento nasceu por volta de 1973, baseado inicialmente em reivindicações corporativistas das forças armadas envolvidas nas guerras coloniais, acabando por se estender a protestos contra a ditadura. Sem grande apoio e com a adesão em massa da população à Revolução dos Cravos, a resistência do regime foi praticamente inexistente, registrando-se apenas cinco mortos em Lisboa pelas balas da famigerada DGS.

Após o 25 de abril, foi criada a Junta de Salvação Nacional, responsável pela nomeação do presidente da República. Assim, em 15 de Maio de 1974, o general António de Spínola foi nomeado presidente.

Estabilizada a conjuntura política, prosseguiram os trabalhos da Assembleia Constituinte para a nova constituição democrática, que entrou em vigor no dia 25 de Abril de 1976, o mesmo dia das primeiras eleições legislativas da nova República.

Tanto Mar, de Chico Buarque

Sei que está em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor no teu jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, que é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim

Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto de jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
Canta primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim

Grândola, Vila Morena:

Cristiano Ronaldo nega troca de camisas com jogador de Israel: “Não troco com assassinos”

Ao final da partida entre Portugal e Israel pelas Eliminatórias da Copa do Mundo de 2014, em 25 de março — por quê será que a imprensa daqui não deu a devida importância ao fato? –, o jogador português Cristiano Ronaldo recusou-se a trocar sua camisa com a de um jogador de Israel. Questionado sobre a recusa, afirmou: “Não troco minha camisa com assassinos”. O jogo terminou empatado em três gols. Ronaldo poderia estar irritado com o empate em 3 x 3, mas há uma bela atitude pregressa do português: em novembro de 2012, entidades de educação palestinas e vítimas de bombardeios israelenses  receberam os recursos da venda da Chuteira de Ouro do atleta português. A chuteira, prêmio recebido em 2011 ao ser eleito o melhor jogador da temporada, é estimada em 1,4 milhão de euros.

Cristiano Ronaldo deixa gramado sem trocar camisa com israelense

Bem, após o apito final, o camisa sete foi procurado por um dos israelenses para a troca de camisa. A resposta de Cristiano foi clara: “Há uma bandeira de Israel bordada aí, não quero levar isso”. A declaração mais dura, mencionando a palavra “assassinos” foi registrada no vestiário após o jogo, quando jornalistas perguntaram ao jogador o motivo de ter recusado a troca de camisas.

A foto apresentada pelo Nouvelles d’aujourd’hui mostra outro jogador português carregando uma camisa da seleção de Israel, sem flagrar a polêmica.

O vídeo abaixo não flagra o momento da negativa, mas mostra uma conversa de Ronaldo com um jogador adversário e sua saída sem efetuar a troca, fato estranho para um ídolo como ele.

Com informações do Futepoca (dica de minha filha Bárbara Ribeiro).

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): III – Baía dos Tigres, de Pedro Rosa Mendes

Oh, mas quem é Pedro Rosa Mendes para estar numa lista de melhores livros? Bem, em primeiro lugar, o autor é um esplêndido escritor e jornalista português; em segundo lugar, minha lista não guarda ordem de precedência. Agora que já tomei esta medida profilática de me defender de meus sete leitores amantes dos grandes clássicos, vou tratar de explicar porque este livro é IMPRESSIONANTE.

Este livro é sobre coisas simples: a tranquilidade do medo e a vitalidade da morte. (…) A razão para tal projeto era a mais nobre de todas, ou seja, nenhuma em especial. As duas frases grifadas fazem parte da nota introdutória do livro. A que projeto refere-se Rosa Mendes? Em junho de 1997 ele chegou a Luanda, em Angola, às margens do Atlântico, com a ideia de atravessar a África até chegar a Quelimane, em Moçambique. No caminho, as sangrentíssimas guerras tribais e entre os países da região, minas por todo lado, além da pobreza absoluta, tanto material quanto moral. E fome. Para temperar um pouco mais a coisa, o autor descobre duas coisas em Luanda, uma boa e uma ruim. A boa: sua mulher lhe avisa que está grávida em Portugal, mas que ele terá o tempo necessário para a reportagem, pois seu rebento nascerá apenas dali a seis ou sete meses; a ruim: o prognóstico que recebe de todos com quem fala de seu plano: você não sobreviverá.

A voz do autor é serena e elegante. Não é uma história contada em ritmo frenético, o andamento é o do humanista que deseja ouvir e compreender todos os envolvidos. Estive na palestra de Rosa Mendes na Flip de 2005. Ele estava com Jon Lee Anderson — o americano falava sobre a Guerra do Iraque e o português sobre a Guerra de Angola — e Anderson fez uma pergunta curiosa ao português: Baía dos Tigres recebeu muitos prêmios destinados a livros de ficção, por quê? A resposta foi típica da pessoa modesta que pareceu ser Rosa Mendes. Ele deu muitas voltas até dizer que era em função da linguagem do livro. E, diante da insistência de Anderson, ele acabou deixando escapar: ora, é que acharam que era bem escrito e não devia misturar-se a textos jornalísticos. Anderson respondeu com a gargalhada de quem já sabia antecipadamente a resposta.

Para dar ideia do que é este livro — que reencontrei na semana passada numa estante da Siciliano –, vou resumir algumas das histórias. Como a do encontro com um técnico francês que estava no país para testar o efeito das minas. Umas explodiam assim, outras assado. Umas eram cedidas a um grupo e, puxa, matavam mesmo; então recebi outras e repassei ao lado contrário. Essas eram melhores, as pessoas ficavam efetivamente mutiladas, deixavam os caras bem feridos, davam um trabalhão às equipes. Querem mais? Que tal a história das famílias de angolanos que operam suas vacas a fim de tirar-lhe alguns bifes, depois as costuram com alguns pontos e tratam de recuperá-la, pois não podem sobreviver sem elas? Por falar em mutilações, que tais as que são feitas na genitália feminina das africanas? Mas o melhor do livro é a narrativa dos interesses envolvidos. Portugal, Estados Unidos, Cuba, Brasil (Petrobrás e Odebrecht), mais os de grupos armados como UNITA, MPLA, FNLA, FRELIMO, RENAMO, etc. Sobre tudo isso, a total falta de observadores internacionais.

É. Onde não há dinheiro, as “forças de paz” não aparecem e os direitos humanos não interessam. Não ocorre nem a venda da  “democracia salvadora” e de eleições livres. Um grande livro.

De Luanda (imagem recente retirada de um site angolano) ...
... a Quelimane.

O Gênio Português?

A artista contemporânea portuguesa Joana Vasconcelos terminou a nova escultura para o  hall da Assembleia da República intitulada: O GÉNIO PORTUGUÊS. Retirado daqui.

Alguém me explica, por favor?

P.S. — Alguém explicou nos comentários: não é da Joana Vasconcelos e é um disparate total ser atribuído à artista. Alguém anda a fazer pesquisa muito preguiçosa e desleixada.

Capa da Playboy portuguesa em homenagem a Saramago gera confusão

A Playboy Entertainment anunciou, nesta quinta-feira, que vai rescindir o contrato com a versão de Portugal por causa da edição que homenageia o livro “Evangelho segundo Jesus Cristo”, de José Saramago.

“Não vimos nem aprovamos a capa e as fotografias do número de Julho da ‘Playboy’ Portugal. Trata-se de uma violação chocante das nossas normas e não teria sido permitida a publicação, se tivéssemos conhecimento antecipado”, declarou Theresa Hennessy, vice-presidente da Playboy, ao site Gawker.

A duração da versão portuguesa da revista foi curta. O primeiro número saiu em março de 2009, com a cantora Mônica Sofia na capa.

Retirado daqui.

Petição «Cidadãos pela Laicidade»

Senhor Presidente da República Portuguesa,

Nós, cidadãs e cidadãos da República Portuguesa, motivados pelos valores da liberdade, da igualdade, da justiça e da laicidade, manifestamos, através da presente carta, o nosso veemente protesto contra as condições – oficialmente anunciadas – de que se revestirá a viagem a Portugal de Joseph Ratzinger, Papa da Igreja Católica.

Embora reconhecendo que o Estado português mantém relações diplomáticas com o Vaticano e que a religião católica é a mais expressiva entre a população nacional, não podemos deixar de sublinhar que ao receber Joseph Ratzinger com honras de chefe de Estado ao mesmo tempo que como dirigente religioso, o Presidente da República Portuguesa fomenta a confusão entre a legítima existência de uma comunidade religiosa organizada, e o discutível reconhecimento oficial a essa confissão religiosa de prerrogativas estatais, confusão que é por princípio contrária à laicidade.

Importa ter presente que o Vaticano é um regime teocrático arcaico que visa a defesa, propaganda e extensão dos privilégios temporais de uma religião, e que não reúne, de resto, os requisitos habituais de população própria e território para ser reconhecido como um Estado, e que a Santa Sé, governo da Igreja Católica e do «Estado» do Vaticano, não ratificou a Declaração Universal dos Direitos do Homem – não podendo portanto ser um membro de pleno direito da ONU – e não aceita nem a jurisdição do Tribunal Penal Internacional nem do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, antes utilizando o seu estatuto de Observador Permanente na ONU para alinhar, frequentemente, ao lado de ditaduras e regimes fundamentalistas.

Desejamos deixar claro que, se em Portugal há católicos dos quais uma fracção, mais ou menos importante, se regozijará com a visita de Joseph Ratzinger, há também católicos e não católicos para quem o carácter oficial da visita papal, o seu financiamento público e a tolerância de ponto concedida pelo Governo, são agressões perpetradas contra os princípios de laicidade do poder político que a própria Constituição da República Portuguesa institui.

Esta infracção da laicidade a que estão constitucionalmente vinculadas as autoridades republicanas torna-se ainda mais gritante e deletéria quando consideramos que se celebra este ano o Centenário da Implantação da República, de cujo legado faz parte o princípio de clara separação entre Estado e Igreja, contra o qual atentará qualquer confusão entre homenagens a um chefe de Estado e participação oficial dos titulares de órgãos de soberania em cerimoniais religiosos.

Declaramos também o nosso repúdio pelas posições veiculadas pelo Papa em matéria de liberdade de consciência, igualdade entre homens e mulheres, autodeterminação sexual de adultos, e outras matérias políticas.

Porque nos contamos entre esses cidadãos que entendem que a laicidade da política é condição fundamental das liberdades e direitos democráticos em cuja defesa e extensão estão apostados, aqui deixamos o nosso protesto e declaramos a Vossa Excelência o nosso propósito de o mantermos e alargarmos através de todos os meios de expressão e acção ao nosso alcance enquanto cidadãos activos da República Portuguesa.



Saramago relança livro com renda revertida para o Haiti

Gisele Bündchen doou US$ 1,5 milhão ao Haiti; Madonna, US$ 250 mil; este menino conseguiu quase U$ 300 mil; vários países, inclusive o Brasil, fizeram vultosas doações. Ontem, José Saramago, anunciou que a editora com a qual trabalha em Portugal e na Espanha, a Alfaguara, relançará A Jangada de Pedra em edição cuja renda irá 100% para o país caribenho. Em nota, Saramago explicou que a iniciativa é da sua fundação e só foi possível graças à “pronta generosidade das entidades envolvidas na edição do livro”. As entidades são a editora, distribuidoras e livrarias ibéricas. Uma bonita atitude, uma atitude esperada. Saramago completa: “Se chegássemos a 1 milhão de exemplares vendidos, seriam 15 milhões de euros de ajuda. Diante da calamidade que atingiu o Haiti, a soma não seria mais que uma gota d’água”. O livro terá relançamento no dia 28 de fevereiro a partir da campanha “Uma jangada de pedra a caminho do Haiti”.

Uma vez, durante uma entrevista a que estava presente, ouvi Saramago dizer que A Jangada de Pedra era uma decepção. A plateia protestou com razão. Ocorre que o  romance começa quando uma falha separa a Península Ibérica do resto da Europa e a transforma em uma enorme balsa de pedra à deriva no Atlântico. Saramago disse que um romance não pode começar por um fato tão extraordinário que jamais poderá ser superado depois. Bobagem, Saramago leva o livro brilhantemente até seu final. Não contarei o final. É muito significativo e, sim, meu caro Saramago, tão extraordinário quanto o início da Jangada. Acho o livro muitíssimo consistente e bom.

Achei a ideia maravilhosa e tentarei comprar um exemplar.

Estou esperando. Esperando o livro? Sim, também. Mas antes espero que Lasier Martins reclame do comunista Saramago, assim como criticou o meia-esquerda Lula por sua ajuda humanitária. Para quem não é do Rio Grande do Sul e não conhece a estupidez que nos impinge a “Globo daqui”, indico este post.

Maitê Proença em Portugal

Costumo ler alguns blogues portugueses. Há vários bons e eles têm uma sede de literatura que é incomum por aqui. Porém, nos últimos dias, muitos falam muito de Maitê Proença. Com boa dose de razão. Engraçado, lá ela é considerada atriz, apresentadora e escritora. Não lembro de ter visto um livro ou uma linha sua, mas, enfim, parece que escreve algo. E o programa Saia Justa é um sucesso por lá.

Bom, só que o Saia Justa andou mostrando uma viagem que Maitê fez à Portugal onde ela tira um sarro do país. Talvez a “escritora” e atriz não soubesse que eles se comportam como aquele aluno que será alvo de todas as piadas e apelidos da turma: ou seja, eles se irritam e discutem com o ofensor e entre si. Então todos estão indignados e pediram uma retratação à “autora”, um pedido claro de desculpas ao povo português, seja por escrito, oral ou em vídeo. Maitê gravou um vídeo de desagravo, porém antes, no programa, Maitê reclamara do técnico de informática que olhava para o mouse como se este fosse uma capivara, mostrara uma placa ao contrário — não está ao contrário, é daquele jeito mesmo — e cuspiu numa fonte, fato indiscutivelmente desrespeitoso e que fala mais mal de Maitê e do programa do que de Portugal. Para piorar, as outras três apresentadoras deram gargalhadas. Tudo irresponsabilidadezinhas, nada de muito grave, nada que não fosse esperado da capa da Playboy de um mês de 1987 e de outro de 1996, mas a reação foi imensa.

Eles levaram a sério. Acusaram-na de lusofobia, o que deve ser verdade, mas que… pô, quem dá importância aos pensamentos de Maitê Proença? Eu me preocuparia mais com o que ela disse sobre Salazar. Vejam abaixo.

Um dos mais tranquilos foi o excelente escritor Franciso José Viegas, que escreveu o que segue em seu blog:

Jantei com Maitê Proença em Lisboa, possivelmente na mesma altura em que a atriz gravou o vídeo que agora está na internet. Nele, Maitê (sempre bem tratada pelos portugueses, que inclusivamente lhe compram os livros) dá por adquirido que os portugueses são inábeis, atrasadinhos, enfim – o costume. Durante esse jantar, Maitê mostrou-se encantada com Portugal, e creio que era mais do que simpatia. Mas no Brasil é outra coisa. Faz parte do gene brasileiro esse apetite saudável por Portugal, a velha metrópole de padeiros, açougueiros e gente desajustada. As jovens nações, entusiastas e adolescentes, acham gracinha a tudo. Comportam-se como crianças quando descobrem a careca dos avós. É natural e compreensível. Depois crescem. Ou pedem que lhes apreciemos as pantomineirices.

Como resultado, a atriz teve de improvisar um patético pedido de desculpas:

O fato em si é desimportante. O que acho importante e digno de nota é a penetração da Globo nos países de língua portuguesa. Como nossa emissora não costuma primar pelas boas escolhas nem pelo bom conteúdo, ainda vai arranjar muitos probleminhas internacionais por aí. E uma péssima imagem para o país. Se os mexicanos são os fazedores de novelas lacrimosas, provavelmente nos tornaremos os reis da má educação e da grosseria. O que fazer?

Introdução à leitura de "2666", de Roberto Bolaño

Sim, eu não suportei a angústia. Quando fui a Montevideo, ele estava bem na entrada da Puro Verso. Abri o livro de 1125 páginas, vi que era de leitura confortável, com pontos de parada a cada duas ou três páginas; pensei que um livro daquele tamanho poderia ser mais um problema ortopédico do que literário para o leitor, mas que se repetiria na tradução brasileira. Ademais, para que serve o espanhol que conheço se recuasse ante o original de um escritor que amo? Comprei 2666 e voltei, não sei por quê, direto para o hotel. Abri o livro na primeira página e li a epígrafe:

Um oásis de horror em meio a um deserto de tédio.

CHARLES BAUDELAIRE

Oásis de horror… E, na página seguinte, a importante Nota Explicativa que traduzo a seguir da original:

Nota de los herederos del autor

Ante la posibilidad de una muerte próxima, Roberto dejó instrucciones de que su novela 2666 se publicara dividida en cinco libros que se corresponden con las cinco partes de la novela, especificando el orden y periocidad de las publicaciones (una por año) e incluso el precio a negociar con el editor. Con esta decisión, comunicada días antes de su muerte por el propio Roberto a Jorge Herralde, creía dejar solventado el futuro económico de sus hijos.

Después de su muerte y tras la lectura y estudio de la obra y del material de trabajo dejado por Roberto que lleva a cabo Ignacio Echevarría (amigo al que indicó como persona referente para solicitar consejo sobre sus asuntos literarios), surge otra consideración de orden menos práctico: el respeto al valor literario de la obra que hace que de forma conjunta con Jorge Herralde cambiemos la decisión de Roberto y que 2666 se publique en un solo volumen, tal como él habría hecho de no haberse cumplido la peor de las posibilidades que el proceso de su enfermedad ofrecía.

ou

Nota dos herdeiros do autor

Diante da possibilidade da uma morte próxima, Roberto deixou instruções para que seu romance 2666 fosse publicado em cinco livros correspondentes às cinco partes do romance, especificando a ordem e a periodicidade das publicações (uma por ano) e até mesmo o preço para negociar com o editor. Com esta decisão, enviada dias antes de sua morte pelo próprio Roberto a Jorge Herralde, pensava deixar resolvido o futuro econômico de seus filhos.

Após sua morte e depois da leitura e estudo da obra e do material de trabalho deixado por Roberto, Ignacio Echevarría (o amigo que indicou como seu conselheiro literário) surgiu com outra consideração de ordem menos prática: o respeito ao valor literário da obra, que faz com que, em conjunto com Jorge Herralde, alteremos a decisão de Roberto e que 2666 seja publicado primeiro em um só volume, como o autor teria feito se não tivesse sido cumprida a pior das possibilidades que oferecia seu processo de doença.

(Trad. sem muita revisão feita por mim)

Então, lembrei de que estava em Montevideo e que seria interessante, além de econômico, voltar a comportar-me como um turista e não como um literato inveterado que fica lendo em seu hotel não obstante a viagem. Eu que deixasse a leitura para Porto Alegre. Retornei à 18 de julho e à Puro Verso, sabendo que o tesouro estava guardado no hotel e combinei o almoço com a Claudia no Panini`s da Travessa Bacacay, na Cidade Velha, bem perto da outra Puro Verso, a de seis andares. Neste ínterim, não fiz muita coisa que não fosse fuçar em alguns antiquários em busca do Spica perfeito.

Quando a Claudia chegou, comemos o maravilhoso almoço de sempre do Panini`s, lembro que falamos  no preço das roupas, no estado das meus blusões e, levados pelo Cabernet Sauvignon, em John Kennedy Toole. e sua mamãe. Na verdade, bebemos tanto que foi necessário um pit stop no hotel. onde ele, 2666, estava.

E agora estou lá pela página 140, faltando umas 900 para ler. Meu estado é: maravilhado. É curioso: em minha opinião, estou fazendo uma leitura fundamental para quem queira acompanhar a cena literária contemporânea, mas não há, no Brasil, meu ambiente, grande ressonância a Bolaño. Aliás, não há ressonância a nada que não seja perecível, efêmero. É nosso país. Para nossa sorte, há o Uruguai e a Argentina aqui perto. E há os blogues portugueses. Lá, faltam 9 dias, 14 horas, 39 minutos e vinte e seis segundos para 2666 ser lançado. Há um blog que acompanha o pré-lançamento e toda a reação ao livro. Ele faz uma contagem regressiva atá a data de lançamento, 26 de setembro de 2009. Há comentários por toda a blogosfera lusitana, parece haver autêntica expectativa, debate, existem tentativas talvez exageradas de arranjar-lhe um bom lugar na história da literatura, divulga-se opiniões de gente que leu (por mais amalucadas que sejam) e a cultura parece ser até assunto de conversa nas ruas. Isso em Portugal.

Para viver bem do Brasil, há que se acostumar com nossa estupidez. Quando a Cia. das Letras lançar o livro haverá matérias amadorísticas naqueles mesmos jornais, a Cultura dará desconto para quem fizer a compra antes do lançamento, vão chamá-lo de Livro do Ano, o bom Sérgio Rodrigues vai publicar uma crônica provocativa a seus leitores lançando a dúvida — Bolaño é superestimado ou não? — e será uma pequena confusão de leitores e não-leitores (a maioria) a iniciarem o enterro uma obra que, puxa, deveria ser ao menos debatida. E estamos, por incrível que pareça, na América Latina. E o livro lida com personagens e problemas muito, mas muito mesmo, latino-americanos. E com licença que vou ler mais um pouco.