A construção e a queda do Muro de Berlim

A construção e a queda do Muro de Berlim

No dia 9 de Novembro de 1989, o Muro de Berlim começava a ser derrubado. Ele existia desde 1961 e tem longa história. Após a Segunda Guerra Mundial, o que restou da Alemanha foi dividido em quatro zonas de ocupação, cada uma controlada por uma das quatro potências aliadas: Estados Unidos, Reino Unido, França e União Soviética.

A divisão da Alemanha no pós-guerra | Imagem: Wikipedia

A capital, Berlim, ficava no interior da zona soviética e foi igualmente dividida em quatro setores.

A divisão da capital, Berlim | Imagem: Wikipedia

Nos dois anos subsequentes, ocorreram desentendimentos entre os soviéticos e as outras potências de ocupação, incluindo a recusa dos primeiros a participarem dos planos de reconstrução de uma Alemanha autossuficiente. Enquanto isso, Joseph Stalin foi construindo um cinturão protetor da União Soviética através de países satélites em sua fronteira ocidental. O Bloco do Leste — também chamado de Pacto de Varsóvia e no Ocidente de Cortina de Ferro — incluía Polônia, Hungria, Tchecoslováquia, Romênia, Bulgária e Albânia (até meados dos anos 60). Fora do Leste Europeu, Mongólia, Cuba, Vietnã e Coreia do Norte, eram algumas vezes considerados como parte do bloco.

Em 1945, Stalin imaginava — e revelou aos líderes alemães sob seu controle — que enfraqueceria lentamente a posição britânica em sua zona de ocupação, que os Estados Unidos iriam retirar sua ocupação dentro de um ano ou dois e que, em seguida, nada ficaria no caminho de uma Alemanha unificada sob controle soviético.

Nada disso ocorreu e, em 1948, Stalin instituiu o Bloqueio de Berlim, impedindo que alimentos, materiais e suprimentos pudessem chegar a Berlim Ocidental. Os Estados Unidos, Reino Unido, França, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e vários outros países começaram uma imensa “ponte aérea para Berlim”, fornecendo alimentos e outros suprimentos à parte da cidade controlada pelo Ocidente. Em maio de 1949, Stalin acabou com o bloqueio, permitindo a retomada dos embarques por terra do Ocidente para Berlim.

Animação: Mao, Stalin e Ulbricht — líder da RDA –, na festa de 70 anos do segundo.

A República Democrática Alemã (Alemanha Oriental ou RDA), a parte da ex-Alemanha controlada pelos soviéticos,  foi instituída em 7 de outubro de 1949. Sua autonomia era realmente limitada. O Ministério de Negócios Estrangeiros Soviético concedeu autoridade administrativa a Alemanha Oriental, mas os soviéticos participavam de forma clara e inequívoca das estruturas de administração, assim como da polícia militar e secreta. A Alemanha Oriental era muito diferente da Ocidental (República Federal da Alemanha), que se originou nas áreas controladas por norte-americanos, britânicos e franceses e que se desenvolveu como um país capitalista.

O crescimento econômico da Alemanha Ocidental a partir de 1950 fez com que o padrão de vida no país melhorasse continuamente e muitos alemães orientais sonhassem com uma mudança de ares. Aproveitando-se da zona de fronteira entre as duas Alemanhas, o número de cidadãos da RDA que se deslocaram para a Alemanha Ocidental totalizou 197.000 em 1950, 165.000 em 1951, 182.000 em 1952 e 331.000 em 1953. Uma das razões para o aumento acentuado em 1953 foi o receio que a sovietização se intensificasse. E, dentro de Berlim, as pessoas continuavam “fugindo” para o lado ocidental.

Não se falava ainda na construção de um muro que dividisse a cidade, mas no começo de 1961 intensificaram-se os boatos sobre uma grande obra em Berlim Oriental. Dois meses antes da construção, uma jornalista da Alemanha Ocidental fez uma pergunta sobre um muro a Walter Ulbricht, líder da RDA na época: “Eu não sei nada sobre quaisquer planos, sei que os trabalhadores da capital estão ocupados principalmente com a construção de apartamentos e que suas capacidades estão sendo inteiramente utilizadas. Ninguém tem a intenção de construir um muro”.

Falando desta forma, Walter Ulbricht foi o primeiro político a referir-se ao muro. Os serviços secretos faziam seu trabalho e sabia-se  que Ulbricht tinha pedido a Nikita Khrushchev, durante numa conferência dos Estados do Pacto de Varsóvia, permissão para bloquear as fronteiras a Berlim Ocidental, incluindo a interrupção de todas as linhas de transporte público.

Construção do Muro de Berlim em 1961

A construção do muro

No dia 12 de agosto, o Conselho de Ministros da Alemanha Oriental decidiu usar as forças armadas para fechar as fronteiras e instalar gradeamentos. Durante a operação, na madrugada de 13 de agosto de 1961, os militares bloquearam as conexões de trânsito a Berlim Ocidental . Eram apoiados por forças soviéticas. Todas as conexões foram fechadas.

No mesmo dia do início da construção do muro, o chanceler da Alemanha Ocidental, Konrad Adenauer, dirigiu-se à população pelo rádio, pedindo calma e anunciando uma resposta à altura daquilo que chamou de agressão. Adenauer tinha visitado Berlim havia apenas duas semanas. O prefeito de Berlim, Willy Brandt, protestou energicamente contra a construção do muro e a divisão da cidade, mas sem sucesso. No dia 16 de Agosto de 1961 houve uma grande manifestação com 300 mil participantes em frente do Schöneberger Rathaus, em Berlim Ocidental, para protestar contra o muro. Nada foi conseguido.

A reação dos aliados ocidentais foi débil. Só 72 horas depois chegou um protesto oficial a Moscou. Em razão disso, circulavam rumores que a União Soviética havia garantido que a ação não afetaria Berlim ocidental.

A solução não é muito bonita, mas mil vezes melhor do que uma guerra, disse John Kennedy, presidente dos Estados Unidos.

Os alemães orientais param o fluxo de refugiados e desculpam-se com uma cortina de ferro ainda mais densa. Isto não é ilegal, concordou Harold Macmillan, primeiro-ministro britânico.

Contudo, Kennedy mandou forças armadas suplementares e o vice-presidente dos Estados Unidos, Lyndon Johnson, acompanhou as tropas, protestando contra o chefe de Estado da RDA, Walter Ulbricht. Ele reagiu. Os ânimos ficaram exaltados a ponto de o comandante soviético na RDA pedir moderação a Ulbricht. Eram tempos de Guerra Fria.

O Muro pronto

Havia oito passagens de fronteira entre Berlim Oriental e Ocidental e, para passar, era necessário permissão. Morreu muita gente nos 28 anos da existência do Muro. Não existem números exatos porque a RDA não prestava informações sobre incidentes fronteiriços. A ordem era matar quem forçasse passagem. O repertório de mortes é digno de uma tragicomédia. Havia as “mortes convencionais” a tiros durante a corrida. Mas também houve pessoas baleadas após saírem das janelas de seus apartamentos, localizados ao lado do muro, pendurados em cordas. Houve também quedas em balões de gás de fabricação caseira. Por incrível que pareça, esses incidentes eram utilizados pela RDA em sua propaganda para justificar a construção do Muro de Berlim.

De qualquer forma, entre 1961 e 1989, 75.000 conseguiram sair da Alemanha Oriental. A deserção era um crime punido com até 2 anos de prisão. Os membros das forças armadas eram mais severamente punidos, com pelo menos 5 anos de prisão.

Gorbachev: abertura muito além do planejado

O fim do Bloco Socialista

Submetida desde os anos 60 a um longo período de estagnação política e econômica que se explica, em grande medida, pela necessidade de desviar recursos da produção (de implementos, alimentos, etc.) para a indústria bélica, com a finalidade de fazer frente aos EUA, a União Soviética conheceria um rápido processo de transformação a partir da posse de Gorbachev como novo secretário-geral do Partido Comunista, em 1985.

Relativamente jovem em comparação com seus antecessores, Gorbachev tinha 54 anos de idade quando chegou ao poder. Ele lançaria um amplo programa de reformas, visando à renovação política e econômica do país e do bloco comunista. Uma vertiginosa sucessão de acontecimentos, contudo, levaria as mudanças para muito além do que pretendia o próprio Gorbachev.

Seu programa de liberalização apenas tornou mais visíveis problemas que há muito vinham se acumulando: a ineficiência da economia, engessada por um planejamento excessivamente centralizado; o peso dos crescentes gastos militares; a inflexibilidade de uma burocracia estatal de proporções monstruosas, que procurava controlar e regulamentar cada atividade produtiva. Para Gorbachev, só haveria futuro para o socialismo se tal estrutura fosse inteiramente reformulada.

Foi nesse contexto que ele lançou, em fevereiro de 1986, o programa conhecido como Glasnost (“transparência”), visando a combater a corrupção e a ineficiência administrativa dentro do Estado soviético, como parte de um projeto maior de abertura política. E, pouco depois, veio um segundo programa — a Perestroika (“reestruturação”) — visando aumentar a produtividade da economia do país. Além disso, Gorbachev passaria a reduzir gradualmente a ajuda econômica aos países do Leste Europeu e a retirar de lá várias das tropas soviéticas.

Gorbachev e Reagan: sorrisos pra todo lado

A política externa soviética também passou por transformações significativas. Procurando estabelecer um novo padrão de entendimento com os países capitalistas, Gorbachev reuniu-se com o presidente dos EUA, Ronald Reagan, em cinco ocasiões diferentes. Nunca dois dirigentes dos Estados Unidos e da União Soviética haviam mantido tantos contatos diretos. Já no primeiro desses encontros, em novembro de 1985, ambos anunciariam a disposição de reduzir seus arsenais nucleares pela metade, em acordo a ser formalizado futuramente. Reagan, que seguia vendo a União Soviética como “o império do mal”, recuou do compromisso, mas as propostas de desarmamento de Gorbachev lhe valeram uma popularidade que nenhum outro líder soviético havia antes obtido no mundo ocidental. Em sua visita aos Estados Unidos, em dezembro de 1987, ele foi entusiasticamente recebido pelo público norte-americano. Sua esposa, Raíssa Gorbachova, também era personalidade internacional.

Na ocasião, foi assinado um tratado inédito de eliminação de mísseis Cruise e Pershing II norte-americanos, em troca da eliminação de SS-20 soviéticos: tratava-se do primeiro acordo de desativação de toda uma classe de armas nucleares. Um ano depois, em pronunciamento realizado na ONU, Gorbachev anunciaria a decisão de reduzir os contingentes militares soviéticos em 20% — o equivalente a quinhentos mil homens — até o final de 1991.

As reformas de Gorbachev previam também a realização de eleições livres para o Congresso, em março de 1989. Era a primeira vez que os soviéticos iriam às urnas escolher seus representantes. Mas todo esse esforço, que visava a dar novos rumos ao socialismo, passou a enfrentar problemas inesperados: dentro da onda liberalizante, grupos nacionalistas, étnicos e religiosos, sufocados por décadas, voltaram a se mobilizar, reclamando a independência de regiões como a Letônia, a Lituânia e a Estônia. Também nos países do Leste Europeu ressurgiram movimentos a favor da autonomia nacional.

A unidade da União Soviética e do bloco comunista sempre fora garantida por um rígido esquema de centralização política: nas ocasiões em que movimentos colocaram em xeque tal esquema — como na Hungria, em 1956, ou na Tchecoslováquia, em 1968 — os soldados do Exército Vermelho e do Pacto de Varsóvia haviam sido convocados. Agora, porém, isso não parecia mais possível. Um a um, os países do Leste Europeu foram ganhando cada vez mais autonomia em relação à União Soviética, desmontando a ordem construída por Stalin ao final da Segunda Guerra Mundial.

O Berliner Mauer (Muro de Berlim) passava por aqui

A queda do Muro

Depois de 28 anos de existência, o Muro de Berlim começou a ser derrubado na noite de 9 de Novembro de 1989. Antes da sua queda, houve grandes manifestações. Pedia-se liberdade para ir e vir. Além disto, já estava acontecendo um enorme fluxo de refugiados ao Ocidente nos países satélites.

O impulso decisivo para a queda do muro foi um mal-entendido. Um boato de que o Conselho de Ministros da Alemanha Oriental tinha abolido totalmente as restrições de viagens ao Oeste fizeram milhares de pessoas marcharem aos postos fronteiriços, pedindo sua imediata abertura. Nem as unidades militares, nem as unidades de controle de passaportes haviam sido instruídas.

Era um boato, mas os guardas da fronteira não sabiam o que fazer. A fronteira abriu-se no posto da Rua Bornholmer, às 23h. Mais alemães viram a abertura da fronteira pela televisão e marcharam para lá. Como muitas pessoas já dormiam quando a fronteira se abriu, na manhã do dia 10 de novembro havia grandes multidões querendo passar.

Os cidadãos da RDA foram recebidos com grande euforia em Berlim Ocidental. Muitas boates perto do Muro serviram cerveja gratuita. Pessoas que nunca tinham se visto antes abraçavam-se. Cidadãos de Berlim Ocidental pularam o Muro e foram para o Portão de Brandenburgo, até então inacessível aos ocidentais.

No dia da queda do Muro, em atitude inteiramente inesperada, o violoncelista soviético e estrela internacional Mstislav Rostropovich, saiu sozinho de seu hotel em Berlim com uma cadeira e seu instrumento. Não avisou ninguém de sua intenção de tocar trechos de uma Suíte para Violoncelo Solo de Johann Sebastian Bach bem na frente do Muro. Tornou-se um dos principais símbolos daquele dia.

Rostropovich no Muro de Berlim

No mesmo dia, começou a demolição do Muro.

(*) Com compilações de várias fontes. O trecho sobre a decadência do Bloco Soviético foi adaptada a partir de texto do blog História, do professor Sérgio Cabeça.

Revolução dos Cravos: a primavera após uma noite de 48 anos

Revolução dos Cravos: a primavera após uma noite de 48 anos

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Durou décadas a ditadura em Portugal. A rigor, foram 48 anos entre os anos de 1926 e 1974. Só Antônio de Oliveira Salazar governou por 36 anos, entre 1932 e 1968, e a Constituição de 1933, que implantou o Estado Novo nos moldes do fascismo italiano com seu Partido Único, permaneceu até 1974, por 41 anos.

Capa do jornal república de 25 de abril de 1974 (Clique para ampliar)

Acabou em 25 de abril de 1974 numa revolução quase sem tiros. Morreram apenas quatro pessoas pela ação da DGS (ex-PIDE). A adesão aos militares que protagonizaram o golpe na ditadura foi tão grande que as cinco mortes mais pareceram um desatino final. O nome de “Revolução dos Cravos” foi devido a um ato simbólico tomado por uma simples florista. Ela iniciou uma distribuição de cravos vermelhos a populares e estes os ofereceram aos soldados, que os colocaram nos canos das espingardas.

Tudo fora bem planejado. A ação começou em 24 de abril de forma muito musical. Um grupo militar instalou secretamente um posto no quartel da Pontinha, em Lisboa. Às 22h55 foi transmitida por uma estação de rádio a canção E depois do adeus, de Paulo de Carvalho. Este era o sinal para todos tomarem seus postos. Aos 20 minutos do dia 25, outra emissora apresentou Grândola, Vila Morena, de José Alfonso. Ao contrário da primeira canção, a qual era bastante popular, Grândola estava proibida, pois, segundo o governo, fazia clara alusão ao comunismo.

Passados 38 anos, todos reclamam em Portugal. Tendo no centro do cenário a atual crise econômica, a esquerda considera que o espírito da revolução se perdeu, assim como várias das conquistas dos primeiros anos, enquanto a direita chora as estatizações do período pós-revolucionário, afirmando que esta postura prejudicou o crescimento da economia. O ex-presidente Mário Soares afirma  que tudo o que ocorreu nos últimos 38 anos pode ser discutido e reavaliado, mas que a comparação entre o passado e o que há hoje é comparar “um passado de miséria, de guerra e de ditadura” com um país onde há “respeito pela dignidade do trabalho, pelos sindicatos e pela democracia pluralista”.

Deus, Pátria e Família (Clique para ampliar)

A ditadura iniciou em 1926 com o decreto que nomeou interinamente o general Carmona para a presidência da República. Após a dissolução do parlamento, os militares ocuparam todas as principais posições do governo. A ditadura teve o condão de unir todos os partidos que antes disputavam entre si. Eles enviaram uma declaração conjunta às embaixadas dos EUA, Inglaterra e França, informando que não reconheciam o governo. Em resposta, a repressão policial foi acentuada e todos os que assinaram a declaração foram presos em Cabo Verde, sem julgamento.

Todas as revoltas foram sufocadas enquanto os militares se viam às voltas com uma crise econômica. Havia duas correntes: uma representada pelo ministro das finanças, o general Sinel de Cordes, que desejava recorrer a um empréstimo externo e outra, de um professor de finanças da Universidade de Coimbra, Antônio de Oliveira Salazar, que pensava não ser necessário o empréstimo externo para resolver a difícil situação financeira do país. O empréstimo não foi feito em razão de que as condições exigidas eram inaceitáveis – quase as mesmas que a “troika” exigiu e levou atualmente. O resultado final do episódio foi o pedido de demissão de Sinel de Cordes e o convite a Salazar para a pasta das finanças.

O ditador solitário

Salazar impôs austeridade e rigoroso controle de contas. Obteve o equilíbrio das contas de Portugal em 1929. Na imprensa, controlada pela censura, Salazar era chamado de “o salvador da pátria”. O prestígio ganho junto ao setor monárquico e católico, além da propaganda, consolidavam pouco a pouco a posição de Salazar, abrindo espeço para sua ascensão. Ele se tornou o esteio dos militares, que o consultavam para tudo, principalmente para as reformas ministeriais. Enquanto a oposição era dizimada, Salazar recusava o retorno ao parlamentarismo e à democracia da Primeira República, criando a União Nacional em 1930, preparando a instalação de um regime de partido único.

Em 1932, foi discutida uma nova Constituição que seria aprovada no ano seguinte. Nela, é criado o Estado Novo, uma ditadura que dizia defender “Deus, a Pátria e a Autoridade”, principalmente a terceira, que depois foi alterada para Família. A ditadura portuguesa foi muitíssimo pessoal e revelava claramente o caráter de seu chefe. Salazar era uma estranha espécie de misantropo que governava um país ao mesmo tempo que amava a solidão e posava de inacessível. Suas palavras são surpreendentes, mesmo para um ditador. “Há várias maneiras de governar e, a minha, exige isolamento… O isolamento muito me ajudou a desempenhar minha tarefa e permitiu-me, no passado como hoje, concentrar-me, ser senhor do meu tempo e dos meus sentimentos, evitar que fosse influenciado ou atingido”. Muito católico, Salazar nunca casou e vivia entre padres. O cardeal de Lisboa, D. Manuel Gonçalves, disse dele: “é um celibatário austero que não bebe, não fuma, não conhece mulheres”, mas, a fim de afastar qualquer inclinação homossexual, ressaltou: “mas ele aprecia a companhia das mulheres e a sua beleza sem, no entanto, deixar de levar uma vida de frade”.

Salazar e Franco: colaboração e frieza

Tal como fazia na vida privada, Salazar criou uma curiosa política e um bordão não menos. Praticava uma política de isolacionismo internacional sob o lema Orgulhosamente sós. Atuava de forma tortuosa. Apoiou Franco na Guerra Civil de 1936, mas manteve com este uma relação fria e desconfiada. Durante a Segunda Guerra Mundial, agarrou-se à neutralidade como se disto dependesse sua vida. Talvez tivesse razão. Próximo ideologicamente do fascismo italiano, Portugal não hostilizou o eixo Roma-Berlim-Tóquio, apesar de ter tornado ilegais os movimentos fascistas, prendendo seus líderes. Comprou armas, mesmo durante a Guerra, tanto na Alemanha quanto da Inglaterra, evitando o confronto e a adesão. Acendendo uma vela para cada um dos lados, Salazar aceitava dar vistos a judeus em trânsito vindos da Alemanha e da França. Também concedeu aos Aliados uma base nos Açores.

O ditador foi homenageado por Fernando Pessoa.

Antonio de Oliveira Salazar

Antonio de Oliveira Salazar.

Três nomes em sequencia regular…
Antonio é Antonio.
Oliveira é uma árvore.
Salazar é só apelido.
Até aí está bem.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.

Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A água dissolve
O sal,
E sob o céu
Fica só azar, é natural.

Oh, c’os diabos!
Parece que já choveu…

Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho…

Bebe a verdade
E a liberdade,
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.

Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné,
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé,
Mas ninguém sabe porquê.

Mas, enfim, é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé:
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café.

Após a Segunda Guerra Mundial, manteve a política do Orgulhosamente sós, mas nem tanto assim, pois Salazar desejava permanecer orgulhosamente só, porém, com suas colônias. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional e a ONU passaram a defender políticas de autodeterminação dos povos em regiões colonizadas. Salazar ignorou o fato, levando o país a sofrer consequências negativas tanto do ponto de vista econômico como culturais.

Charge de 1957, publicada em jornal clandestino

Internamente, a violência da democracia de fachada de Salazar não ficava nada a dever a suas congêneres latino-americanas. O Estado Novo tinha sua polícia política, a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), a qual era antes chamada de PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) e depois de DGS (Direção-Geral de Segurança). Em comum, a perseguição e morte aos opositores do regime. O regime autoritário, mas sem violência é uma fantasia que muitos católicos portugueses gostam de manter, pois a Igreja Católica sempre era citada por ele. Até hoje, alguns saudosos de Salazar misturam fascismo e catolicismo.

Em março de 1961, ocorreu uma chacina de colonos civis no norte de Angola. A resposta de Salazar foi uma Guerra Colonial chamada  Para Angola rapidamente e em força. Depois, novas guerras em Guiné e Moçambique, sempre com o propósito de permanecer orgulhosamente só, mas com as províncias ultramarinas sob sua bandeira. As Guerras Coloniais tiveram como consequências milhares de vítimas e forte impacto econômico sobre o país, tendo sido uma das causas da queda do regime.

Salazar foi afastado do governo em 27 de Setembro de 1968, após uma grave queda em casa, o que lhe causou uma trombose cerebral. Seu fim foi digno de opereta: naquele 1968, o então Presidente da República, Américo Tomás, chamou Marcello Caetano para substitui-lo. O curioso é que, até morrer, em 1970, Salazar continuou a receber “visitas oficiais” como se fosse ainda o presidente do país, nunca manifestando sequer a suspeita de que já o não era, no que não foi contrariado.

Negociações para a rendição da PIDE/DGS, no dia 26 de Abril de 1974. Fotografia de Joaquim Lobo.

O longo inferno foi finalizado pelo 25 de Abril, tal como o conhecem os portugueses. O Movimento das Forças Armadas (MFA) foi composto por oficiais intermediários da hierarquia militar, na sua maioria, eram capitães que tinham participado na Guerra Colonial e que foram apoiados por oficiais e estudantes universitários. Este movimento nasceu por volta de 1973, baseado inicialmente em reivindicações corporativistas das forças armadas envolvidas nas guerras coloniais, acabando por se estender a protestos contra a ditadura. Sem grande apoio e com a adesão em massa da população à Revolução dos Cravos, a resistência do regime foi praticamente inexistente, registrando-se apenas cinco mortos em Lisboa pelas balas da famigerada DGS.

Após o 25 de abril, foi criada a Junta de Salvação Nacional, responsável pela nomeação do presidente da República. Assim, em 15 de Maio de 1974, o general António de Spínola foi nomeado presidente.

Estabilizada a conjuntura política, prosseguiram os trabalhos da Assembleia Constituinte para a nova constituição democrática, que entrou em vigor no dia 25 de Abril de 1976, o mesmo dia das primeiras eleições legislativas da nova República.

Tanto Mar, de Chico Buarque

Sei que está em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor no teu jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, que é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim

Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto de jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
Canta primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim

Grândola, Vila Morena:

25 imagens fundamentais de nosso tempo (uma antologia pessoal)

25 imagens fundamentais de nosso tempo (uma antologia pessoal)

Muito pessoal. A ideia e algumas fotos — e discordâncias — vieram do site mundo.com. Retirei algumas imagens sugeridas pelo site, coloquei outras, e ampliei a seleção de 20 para 25 fotos. Acho que ficou aceitável.

.oOo.

1. Os soviéticos hasteando a bandeira no Reichtag. A foto foi tirada com uma Leica pelo fotógrafo Yevgeni Khaldei, da Agência Tass.

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2. O avião 14 Bis levantando voo. No começo do século 20, Alberto Santos Dumont concluiu a construção de seu avião 14 Bis e com ele alçou voo, fazendo deste o primeiro objeto mais pesado que o ar a voar sem a ajuda de impulsos externos.

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3. Erguendo a bandeira em Iwo Jima. A intenção norte-americana ao invadir a ilha era obter uma localização estratégica para o reabastecimento das tropas norte-americanas no avanço até o Japão. Após a vitória, os EUA ficaram com o local para si, claro.

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4. Dia da Vitória em Times Square. O final da Segunda Guerra. O fotógrafo Alfred Eisenstaedt tirou a famosa fotografia de um marinheiro norte-americano beijando uma jovem enfermeira na Times Square em Nova York. A mulher foi identificada mais tarde, na década de 1970, como Edith Shain, porém a identidade do marinheiro continua desconhecida.

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5. Che Guevara, é claro. O famoso retrato de Che Guevara, intitulado Guerrilheiro Heroico, foi tirado em 5 de março de 1960 em Havana, Cuba. Guevara comparecia à inauguração de um memorial.

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6. A capa de Abbey Road. Os Beatles se juntaram nos estúdios da Abbey Road, em Londres, na quente manhã de 8 de agosto de 1969 para tirar a foto da capa do disco que estavam gravando.

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7. O protesto do Monge. Em 11 de junho de 1963, Thich Quang Duc, um monge budista vietnamita, ateou fogo ao próprio corpo e queimou até a morte em uma rua movimentada no centro de Ho Chi Minh.

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8. O desastre do Hindenburg. O desastre do Hindenburg ocorreu em 6 de maio de 1937, quando o gigantesco dirigível alemão pegou fogo e foi destruído durante uma tentativa de pouso na base naval de Lakehurst, em Nova Jersey, nos Estados Unidos.

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9. Na Praça da Paz Celestial. Este misterioso homem tornou-se famoso em todo o mundo após o fotografo Jeff Widener registrá-lo em pé, frente a uma coluna de tanques chineses durante os protestos na Praça da Paz Celestial em Pequim, no dia 5 de junho de 1989.

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10. A imagem do corpo do jornalista Vladimir Herzog enforcado em cela do II Exército é uma das mais emblemáticas do período ditatorial.

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11. Menina afegã. Sharbat Gula tinha 12 anos quando foi fotografada pelo jornalista Steve McCurry durante uma reportagem para a revista National Geographic, publicada em junho de 1985. Quando foi fotografada, a menina afegã vivia como refugiada no Paquistão durante a ocupação soviética no Afeganistão.

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12. O monstro do Lago Ness. Foto de 1934. As histórias sobre o monstro do Lago Ness têm sido contadas desde aproximadamente 565 d.C. Os defensores de sua existência acreditam que a criatura venha de uma linhagem de Plesiossauros… Tudo negado pela comunidade científica, obviamente.

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13. Guerra Fria. Explosão da bomba atômica nas Ilhas Marshall. Era um teste nuclear comum em meados do século XX. A foto é de 25 de julho de 1946, quando da primeira detonação de uma bomba atômica embaixo d’água. Foi liberada uma nuvem de vapor com quilômetros de altura, coroada por jatos de água.

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14. Nascer da Terra. Na noite de Natal de 1968, nenhum dos astronautas a bordo da Apollo 8 estava preparado para o momento em que veriam seu planeta surgir atrás no horizonte lunar. O Nascer da Terra é o nome dado à imagem da NASA tirada pelo astronauta William Anders durante a primeira viagem tripulada a orbitar a Lua.

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15. Einstein mostrando a língua. É uma das imagens mais conhecidas de Einstein. O cientista aprovou a foto e pediu nove cópias dela. Após autografar uma das imagens, ele a presenteou a um repórter. Em 19 de junho de 2009, a imagem assinada foi leiloada por mais de US$ 70 mil.

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16. Almoço no topo de um arranha-céu. 20 de setembro de 1932. Almoço no topo de um arranha-céu é uma famosa fotografia em preto e branco tirada durante a construção de um edifício na cidade de Nova York.

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17. Maio de 1968, Paris. Em 13 de Maio de 1968, em Paris, o fotógrafo Jean-Pierre Rey imortalizou uma jovem de 23 anos. A foto foi publicada pela revista Life. A protagonista da dessa célebre imagem foi posteriormente identificada como sendo a jovem aristocrata e modelo inglesa, Caroline de Bendern, que vivia em Paris depois de ser expulsa de vários colégios na Inglaterra. Ela estava sobre os ombros de um amigo, porque seus pés estavam doloridos. O avô viu a foto e ficou escandalizado. Por conseqüência desta fotografia, Caroline perdeu a mesada milionária e acabou sendo deserdada pelo avô. Caroline passou o resto de sua vida processando Jean-Pierre Rey pelos direitos da fotografia.

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18. Fotografia icônica mostra as cabeças de Lampião (última de baixo), Maria Bonita (logo acima de Lampião) e outros cangaceiros do bando.

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19. No dia 29 de junho de 1973, durante os confrontos que culminaram com a deposição do presidente do Chile, Salvador Allende, o cinegrafista sueco-argentino Leonardo Henricksen, do canal 13 de Buenos Aires, deixou seu hotel, no Centro de Santiago, ao ouvir rajadas de metralhadoras. Era o Regimento de Blindados, que se sublevara e atacava o Palácio de Governo. Henricksen conseguiu se posicionar a apenas duas casas do palácio. Militares determinaram que a rua fosse desimpedida, mas ele não saiu do lugar. Um oficial apontou uma arma para o cinegrafista. E atirou. A imagem treme, mas ele continua filmando. Um soldado, então, deu um tiro de misericórdia, de fuzil. A câmera continua registrando a cena até que tudo fica branco na tela.

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20. O impacto. A fotografia foi considerada pela National Geographic uma das 25 mais importantes imagens dos ataques de 11 de setembro. Às 9 horas da manhã do dia 11 de setembro de 2001, o voo 175 da United Airlines colidiu contra a torre sul do World Trade Center.

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21. Execução em Saigon. Esta foto foi tirada por Eddie Adams durante a guerra do Vietnã. O major General Nguyen Ngoc Loan, à esquerda mata o vietcongue Nguyen Van Lem à direita.

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22. Dali atomicus. O fotógrafo Philippe Halsman informou que tentou obter a imagem 28 vezes até ficar satisfeito com o resultado. Antes das técnicas modernas e computadorizadas de manipulação de imagens, ele conseguiu tirar esta fotografia do artista surrealista Salvador Dali suspenso no ar.

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23. Menina de 9 anos fugindo após ataque em uma aldeia no Vietnã. Ela sobreviveu, apesar de suas roupas terem queimado sobre seu corpo.

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24. Um homem judeu, ajoelhado diante de um poço cheio de corpos, está prestes a ser morto por um soldado alemão. Esta fotografia foi encontrada no álbum de fotos de um soldado alemão, e na parte de trás estava escrito o título de “O Último Judeu de Vinnitsa”.

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25. Foto de Mike Bem, esta imagem mostra-nos a mão de um menino ugandense na mão de um médico da Cruz Vermelha.

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100 anos do genocídio armênio, o massacre que “inspirou” Hitler

100 anos do genocídio armênio, o massacre que “inspirou” Hitler

Publicado em 18 de abril de 2015 no Sul21

A data de 24 de abril de 1915, o Domingo Vermelho, foi estabelecida como a de início do genocídio armênio, por ter sido o dia em que dezenas de lideranças armênias foram presas e deportadas em Istambul. Apesar da negativa quase centenária do governo turco em reconhecer o massacre, o fato está firmemente estabelecido como verdadeiro. Há evidências de um plano organizado do Império Otomano para eliminar sistematicamente os armênios. O evento serviu de “inspiração” para Hitler e os nazistas porem em prática o Holocausto judeu durante a Segunda Guerra Mundial. Em defesa do holocausto e de seu esquecimento futuro, Hitler afirmou: “Quem lembra do extermínio dos armênios?”. Cerca de 1,5 milhão de armênios foram mortos e outro tanto foi deportado.

Até hoje a Turquia rejeita o termo genocídio organizado e nega que as mortes tenham sido intencionais. Por outro lado, a França reconhece dois genocídios por lei: o dos judeus, durante a Segunda Guerra Mundial, e o armênio. O texto prevê pena de prisão por um ano e multa de 45 mil euros para a negação pública de um genocídio reconhecido pela lei. Após a promulgação, em 2011, a Turquia suspendeu as visitas políticas e os acordos de cooperação militar com a França.

O Brasil não reconhece o genocídio armênio, ainda que a presidente Dilma Rousseff seja de origem búlgara. A Bulgária foi outro país que sofreu por séculos violências sob o domínio do Império Otomano. Na última segunda-feira (13), o papa Francisco defendeu a posição da Igreja de considerar genocídio os massacres de armênios há um século. A declaração irritou as autoridades turcas, que classificaram de insultuosas as palavras do pontífice e retiraram seu embaixador no Vaticano.

Três dias depois, foi a vez do Parlamento Europeu deixar furioso o governo turco.  Os eurodeputados exigiram que a Turquia “reconhecesse o genocídio armênio, abrindo caminho para a verdadeira reconciliação entre os povos turco e armênio.” O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, respondeu que o apelo europeu lhe “entrou por um ouvido e saiu pelo outro”.

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Os antecedentes históricos

Desde o século XV, os armênios estavam sob o domínio otomano. Quando a ideia de independência amadureceu, o império reagiu matando 20 mil armênios no episódio conhecido como o Massacre de Adana (1909), nome de uma província otomana. Foi uma série de pogroms (atos de violência em massa, premeditada ou espontânea) anti-armênios em todo o distrito, protagonizados pelas forças imperiais. Além disso, durante a Primeira Guerra Mundial, o Império Otomano recrutou soldados para a guerra. Muitas minorias étnicas eram contra o recrutamento, inclusive os armênios. Com isso, em 24 de abril de 1915, o governo turco reuniu 250 líderes da comunidade armênia, alguns foram deportados, outros, executados. Depois de privar os armênios de suas principais lideranças, começou a deportação e o massacre dos armênios.

Justificando o ato de 24 de abril de 1915 , o ministro do interior, Mehmed Talat Bey, alegou que os comitês armênios “há muito tempo perseguem autonomia administrativa e este desejo é exibido uma vez mais, em termos inequívocos, com a inclusão dos armênios russos que assumiram uma posição contra nós”. A Primeira Guerra Mundial estava acontecendo e o texto dizia que “os armênios estão em conluio com o inimigo. Eles vão lançar um levante em Istambul”.

Os métodos

No extermínio foram utilizados a incineração coletiva,

O tenente Hasan Maruf, do exército otomano, descreve como os habitantes de uma aldeia foram reunidos e depois queimados: “prisioneiros turcos que tinham presenciado algumas dessas cenas ficaram horrorizados e enlouquecidos com a lembrança desta visão. Russos afirmaram que, vários dias depois, o odor da carne humana queimada ainda impregnava o ar. As populações civis foram fechadas em igrejas e queimadas, reduzidas a cinzas” .

afogamentos,

O cônsul italiano de Trebizonda, em 1915, Giacomo Gorrini, escreveu: “Vi milhares de mulheres e crianças inocentes colocadas em barcos que foram emborcados no Mar Negro. Outros, foram jogados amarrados no Eufrates”.

agentes químicos e biológicos,

O psiquiatra Robert Jay Lifton, ao descrever os crimes dos médicos nazistas: “talvez os médicos turcos, em sua participação no genocídio contra os armênios, foram os que mais se aproximaram dos nazistas disto, como comprovarei a seguir”.

como overdose de morfina, gás tóxico e inoculação de tifo, além de enfocamentos, deportações em massa e as chamadas Marchas da Morte.

Abril de 1915: armênios escoltados por soldados turcos marchando em direção à Síria.
Abril de 1915: armênios escoltados por soldados turcos marchando em direção à Síria.

As Marchas da Morte

Parte da população armênia foi levada para a cidade síria de Deir ez-Zor e para o deserto ao redor. O governo otomano não forneceu quaisquer instalações ou suprimentos para sustentar os armênios durante a sua deportação, nem quando eles chegaram. Privados de seus pertences e marchando para o deserto, centenas de milhares de armênios morreram. O general Friedrich von Kressenstein observou que “A política turca de causar a fome é uma prova muito óbvia de que a Turquia está decidida a destruir os armênios”.

Um registro fotográfico especialmente chocante é o de um oficial turco mostrando um pão para crianças armênias famintas.

Oficial turco exibindo um pão, para provocar crianças armênias famintas (1915)
Oficial turco exibindo um pão, para provocar crianças armênias famintas (1915)

Acredita-se que 25 grandes campos de extermínio existiram, sob o comando do ministro Mehmed Talat. A maioria deles situavam-se perto das atuais fronteiras da Turquia, Síria e Iraque.

Um fato que torna ainda mais absurda a negação dos turcos em admitirem o genocídio é o julgamento ocorrido em janeiro de 1919. Nele, o tribunal militar fala claramente sobre o “desejo” do Comitê de União e Progresso de eliminar os armênios fisicamente, através da chamada organização especial.

“Levando em consideração os crimes acima mencionados, o tribunal marcial declara, por unanimidade, a culpabilidade, como principais autores destes crimes os fugitivos: Mehmed Talat. (…) A Corte Marcial pronuncia, a Lei a pena de morte contra Talat, Enver, Cemal e Dr. Nazim”.

Porém, em uma sessão da Assembléia Nacional, realizada em 17 de outubro de 1920, Hasan Fehmi Bey, deputado de Bursa, talvez tenha dado o pontapé inicial para a negação:

“A questão da deportação foi um evento que fez o mundo protestar e fez todos nós sermos considerados assassinos. Nós sabíamos, antes de termos feito isso, que o mundo cristão não toleraria isso e que iria dirigir sua fúria contra nós. Por que imputar o título de assassina a nossa raça? Por que entramos numa luta decisiva e tão difícil? Ora, isso foi feito apenas para garantir o futuro de nosso país que nós conhecemos como mais precioso e sagrado do que nossas vidas”.

Cerca de 1,5 milhão de armênios foram mortos durante o genocídio. Dentre eles, vários morreram assassinados por tropas turcas, em campos de concentração, queimados, enforcados e jogados amarrados ao Rio Eufrates, mas a maior parte dos armênios morreu por inanição, ou seja, falta de água e alimento. Dois milhões de armênios instalaram-se em outros países, na chamada Diáspora Armênia. O número de armênios no Brasil, conforme estimativas, chega a 25 mil, sendo em sua maioria em São Paulo.

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As perdas culturais

A destruição do patrimônio cultural, religioso, histórico e comunitário armênio também foi um objetivo do genocídio e da campanha de negação pós-genocídio. Igrejas armênias e mosteiros foram destruídos ou transformados em mesquitas. Cemitérios armênios foram destruídos, e, em várias cidades, bairros armênios foram demolidos.

Além das mortes, os armênios perderam suas propriedade e bens, sem compensações. Empresas e fazendas foram perdidas e todas as escolas, igrejas, hospitais, orfanatos, conventos e cemitérios tornaram-se propriedade do Estado turco. Em janeiro de 1916, o Ministro Otomano do Comércio e Agricultura emitiu um decreto ordenando a todas as instituições financeiras que operavam dentro das fronteiras do império a entregar dos ativos armênios ao governo. Os ativos foram canalizados para os bancos europeus, incluindo Deutsche Bank e Dresdner Bank. Após o fim da Primeira Guerra Mundial, os sobreviventes do genocídio tentaram retornar e recuperar seus antigos lares e bens, mas foram expulsos pelo governo de Ancara.

Em 1914, o patriarca Armênio de Constantinopla apresentou uma lista dos locais sagrados armênios sob sua supervisão. A lista continha 2.549 lugares religiosos, dos quais 200 eram mosteiros e 1.600 igrejas. Em 1974, a Unesco declarou que, após 1923, de 913 monumentos históricos armênios na Turquia oriental, 464 desapareceram completamente, 252 estão em ruínas, e 197 necessitam restauração.

Pamik: problemas em casa
Pamik: problemas em casa

Pamuk, um exemplo

O romancista Orhan Pamuk é o primeiro e único cidadão turco a receber um Prêmio Nobel. Recebeu o de Literatura em 2006. Pamuk foi processado em dezembro de 2004 por “insultar e debilitar a identidade turca” (artigo 301 do código penal) em uma entrevista a um periódico suíço na qual disse a seguinte frase: “Na Turquia mataram um milhão de armênios e 30 mil curdos; ninguém fala nisso e me odeiam por fazê-lo”. A primeira sentença era uma condicional de seis meses, durante os quais devia abster-se de cometer quaisquer outros delitos do gênero para manter sua liberdade. Ele reafirmou suas palavras em outubro de 2005.

É claro que a posição de Pamuk sobre a questão armênia na Turquia tornou-o um personagem polêmico em sua terra natal. Enquanto alguns poucos admiraram-no, a maioria considerou-o um traidor. Houve uma campanha de ódio desencadeada contra o escritor e Pamuk deixou o país por algum tempo. Alguns meios de comunicação turcos escreveram que ele teria usado a pretensa perseguição como pretexto para ganhar dinheiro dando palestras na Universidade de Columbia, nos EUA.

Erdogan: entrou por um ouvido, saiu pelo outro.
Erdogan: entrou por um ouvido, saiu pelo outro.

A Turquia

Este ano, o estado turco marcou as comemorações da batalha de Galípoli para o dia 24 de abril — mesmo ela tendo começado em 25 de abril –, numa nova tentativa de encobrir o genocídio armênio. Na Batalha, forças britânicas, francesas, australianas e neozelandesas desembarcaram em Galípoli, numa tentativa de invasão da Turquia. Foram rechaçados no início do ano seguinte.

O curioso é que os dirigentes turcos, ao negarem o genocídio, parecem confirmá-lo: “Não deixaremos a nossa nação ser insultada por causa da sua história”, disse o primeiro-ministro turco, Ahmet Davutoglu. Faz cem anos que a negação deste crime se situa no coração da política e da diplomacia do Estado turco. Há cem anos que tal negação alimenta o nacionalismo, os conflitos étnicos e impede o desenvolvimento da liberdade de expressão na Turquia.

Um rascunho de Svetlana Alexievich, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015

Um rascunho de Svetlana Alexievich, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015

Publicado em 10 de outubro de 2015 no Sul21 (*)

O Nobel de Literatura, concedido à bielorrussa Svetlana Alexievich, 67 anos, na última quinta-feira (7), foi a senha para que se iniciassem duas barulhentas discussões em três países: a Bielorrússia (ou Belarus), a Rússia e a Ucrânia.

A primeira delas envolve a nacionalidade da literatura e da própria Alexievich. Os russos dizem que ela escreve em russo e nasceu na União Soviética. Colocando inadvertidamente lenha na fogueira, a própria autora disse, logo que recebeu o prêmio: “É muito perturbador. O Nobel evoca imediatamente os grandes nomes de Búnin, Pasternak e Brodsky”. Todos russos.

Ivan Búnin (Nobel de Literatura de 1933) e Boris Pasternak (recebeu em 1960) nasceram na Rússia czarista, produziram na União Soviética e foram opositores ao regime. Búnin, inclusive, emigrou e morreu na França. Joseph Brodsky (Nobel de 1987) nasceu durante a Segunda Guerra e morreu em Nova Iorque, exilado. Todos escreviam em russo. E Svetlana Alexievich também. Então, como ela não escreve em bielorrusso… Para os russos, ela é russa.

E a Ucrânia entre no jogo pelo simples fato da escritora ter nascido em seu solo e de ter mãe ucraniana, mesmo que tenha ido para Minsk ainda quando criança. Então é ucraniana.

Porém, para os bielorussos, ela cresceu, estudou e se formou como jornalista no país. O pai era um militar bielorrusso que fora transferido temporariamente para a Ucrânia. Além disso — e eles estão corretos –, ela sofreu enorme influência de grandes escritores do país, como Alés Adamóvich, o fundador do gênero de romance-documentário que a escritora pratica. Então é bielorrussa.

Lukashenko, o eterno
Lukashenko vê sua inimiga premiada

A outra discussão

A outra discussão gira em torno dos temas dos livros de Svetlana Alexievich. A partir de entrevistas — ela é uma extraordinária entrevistadora — a autora se dedica a criar painéis de vozes reais. Seus livros são “romances coletivos”, também conhecidos como “romances corais”, ou “romances de evidências”. São pessoas que falam de si mesmas numa espécie de coral.

Tais corais são formados por vozes de sobreviventes da Segunda Guerra Mundial, do acidente nuclear de Chernobyl, da campanha no Afeganistão, etc. Também há um livro sobre como o povo sentiu a passagem do comunismo para o capitalismo. São relatos pessoais, onde, apesar de a política permanecer subjacente, têm um tom de forte crítica a várias gerações de governantes da União Soviética, Bielorrússia e Rússia.

(A Bielorrússia tem o mesmo presidente desde a implosão da União Soviética. Aleksandr Lukashenko, conhecido como O Último Tirano da Europa, está no cargo desde 1994 em sucessivas e mui discutidas reeleições).

Deste modo, o Nobel teria sido concedido a uma pessoa que dedica-se a tecer críticas à sociedade russa e bielorrussa, isto é, a uma pessoa de posições claras, non grata para muitos.

Então, na quinta-feira à noite, enquanto os amigos de Svetlana Alexievich faziam uma enorme festa numa vinoteca de Minsk, parte dos jornais e redes sociais referiam-se a um Nobel dado a uma autora que “odeia nosso país”.

A escritora em Portugal, na ocasião do lançamento de seu único livro traduzido para nossa língua
A escritora em Portugal, na ocasião do lançamento de seu único livro traduzido para nossa língua

Europeia

A escritora fala com grande tranquilidade sobre a primeira questão levantada, a de sua nacionalidade. “Eu sou europeia. Nasci na Ucrânia, de uma família que era metade do local e metade bielorrussa. Quase imediatamente após meu nascimento, fomos para a Bielorrússia. Durante mais de 12 anos eu vivi na Itália, Alemanha, França e Suécia. E há dois anos, voltei para Minsk”.

A Academia Sueca, anunciando sua vitória, elogiou os “escritos polifônicos” de Alexievich, descrevendo-os como “um monumento ao sofrimento e à coragem em nosso tempo”. Muito influenciada pelo escritor Alés Adamóvich, que considera como seu mestre, Alexievich tem a particularidade de deixar fluir diferentes vozes em torno de um tema. Ela esclarece diversos destinos individuais, descrevendo mosaicos que criam a certeza de tragédias reais. Alexievich trabalha decididamente na faixa do drama e da morte.

A edição portuguesa da Porto
A edição portuguesa da Porto

Os livros

Em 1989, ela publicou Tsinkovye Málchiki (Meninos de Zinco), sobre a experiência da guerra do Afeganistão. Para escrevê-lo, percorreu o país entrevistando mães de soldados mortos no confronto. Em 1993, publicou Zacharovannye Smertiu (Encantados pela morte), sobre os suicídios cometidos por aqueles que não haviam conseguido sobreviver ao fim do socialismo. Em 1997, foi a vez de Vozes de Chernobyl, um aterrador retrato da tragédia cuja devastação radioativa atingiu principalmente a Bielorrússia. O livro vendeu 2 milhões de exemplares em língua russa.

No ano passado, foi lançado O Tempo de Segunda Mão (ou O Fim do Homem Soviético, em Portugal). Nesse novo trabalho, Alexievich se propõe a “ouvir os participantes do drama socialista”. Para a escritora, o “homo sovieticus” ainda continua vivo, e não é apenas russo, mas também bielorrusso, turcomano, ucraniano, casaquistanês, etc. “Hoje vivemos em Estados distintos, falamos línguas distintas, mas somos inconfundíveis, rapidamente reconhecidos. Todos nós somos filhos do socialismo”, afirma, referindo-se a seus “vizinhos de memória”. “O mundo mudou completamente e não estávamos realmente preparados para isso”

Falando à emissora sueca SVT, Svetlana Alexijevich disse que o prêmio a deixou com um sentimento “complicado”. A academia telefonou para ela enquanto estava em casa “deixando passar o momento da divulgação do vencedor”, disse ela, acrescentando que os mais de 3 milhões de reais do prêmio “comprariam sua liberdade”. “Demoro muito para escrever meus livros, de cinco a 10 anos cada um. Eu tenho duas ideias para novos livros, por isso estou muito satisfeita: agora vou ter dinheiro e tranquilidade para trabalhar neles.”

Os romances corais

Alexievich nasceu no dia 31 de maio de 1948 na cidade ucraniana de Ivano-Frankovsk. Após a desmobilização do pai do exército, a família retornou à Bielorrússia e se estabeleceu em uma aldeia onde ambos os pais trabalhavam como professores. Ela deixou a escola para trabalhar como repórter no jornal local na cidade de Narovl.

Alexievich escreve contos, ensaios e reportagens, mas diz que só encontrou sua voz sob a influência de Alés Adamóvich. Na cerimônia de divulgação do prêmio, a crítica literária Sara Danius disse que “não se trata de uma escritora de eventos nem de análise política, é uma historiadora de emoções. O que ela nos oferece é realmente um mundo emocional. O desastre nuclear de Chernobyl e a guerra soviética no Afeganistão são pretextos para explorar a indivíduo soviético e pós-soviético”.

Chernobyl, o horror
Chernobyl, o horror

Em Vozes de Chernobyl, Alexievich entrevista centenas de pessoas afetadas pelo desastre nuclear, indo desde uma mulher que, agarrada a seu marido morto, ouve os enfermeiros lhe dizerem que “isso não é mais uma pessoa, é um reator nuclear”, até os soldados enviados ao local. Fala de suas raivas por terem sido “arremessados lá, como areia no reator”. Em Meninos de Zinco, ela reúne vozes da guerra do Afeganistão: soldados, médicos, viúvas e mães.

“Eu não pergunto às pessoas sobre a política, eu pergunto sobre suas vidas: o amor, o ciúme, a infância, a velhice”, escreveu Alexievich na introdução ao O Tempo de Segunda Mão (O Fim do Homem Soviético). “Me interessam não apenas as tragédias vividas, mas a música, as danças, as roupas, os penteados, os alimentos. Os detalhes diversos de uma maneira desaparecida de viver. Esta é a única maneira de perseguir a catástrofe”.

“A história está interessada apenas em fatos; as emoções são excluídas do seu âmbito de interesse. É considerado impróprio admiti-los na história. Eu olho para o mundo como uma escritora, não como uma historiadora. Eu sou fascinada por pessoas “.

Seu primeiro livro, A guerra não tem rosto de mulher, tem como base entrevistas com mulheres que participaram da Segunda Guerra Mundial. “É uma exploração da Segunda Guerra Mundial a partir de uma perspectiva que era, antes do livro, quase completamente desconhecido “, disse Danius . “Ela conta a história de mulheres que estavam na frente de batalha na segunda guerra mundial. Quase um milhão de mulheres soviéticas participaram na guerra, e esta era uma história desconhecida. A obra foi um enorme sucesso na União Soviética, vendendo mais de 3 milhões de cópias. É um documento comovente e íntimo, trazendo para muito perto de nós cada indivíduo.” 

Tradutores, editores e leitores

Embora Alexievich tenha sido traduzida para o alemão, francês e sueco, ganhando uma série de importantes prêmios por seu trabalho, as edições em inglês do seu trabalho são escassas. Em Portugal, O Fim do Homem Soviético saiu este ano pela Porto Editora.

Seu editor francês diz que este livro é uma pesquisa micro-histórica da Rússia da segunda metade do século XX, indo até os anos Putin. Aliás, Alexievich é uma das vozes de oposição, costumando criticar duramente Putin e Lukashenko em palestras para leitores.

Bela Shayevich, que atualmente está traduzindo Alexievich para o inglês disse que “esta vitória significa que mais leitores serão expostos às dimensões metafísicas de sobrevivência e desespero das tragédias da história soviética. Espero que mais pessoas entendam o sofrimento provocado por circunstâncias geopolíticas estranhas a elas”.

A opinião geral de seus admiradores é a de que seus livros são muito incomuns e difíceis de categorizar. São tecnicamente não-ficção, mas recebem um belíssimo tratamento literário e de trabalho de linguagem. Sua tradutora inglesa faz uma reclamação: “Os editores ingleses e americanos são relutantes em assumir riscos e não gostam de livros muito trágicos. Não investem em um livro só porque ele é bom. Agora, com Nobel, talvez a coisa mude”.

Nas entrevistas após o prêmio, perguntaram a Alexievich sobre os refugiados na Europa. “A Europa agora passa por mais um teste sobre sua própria humanidade. Estive recentemente em Mântua, na Itália, e alguns amigos me convidaram para “marchar de pés descalços”. Este tipo de marcha foi organizada pela primeira vez em Veneza e agora está indo para todas as cidades. As pessoas tiram os sapatos e caminham descalças pelas cidades em solidariedade aos refugiados. Lá estavam refugiados, imigrantes e italianos solidários a eles. E isto na Itália, onde o nacionalismo é muito forte. Espero que, desta vez, a Europa seja aprovada no teste”.

Svetlana Alexievich é apenas a 14ª mulher a receber o Nobel de Literatura. Ao todo, 111 autores já foram premiados.

(*) Com Elena Romanov

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Dmitri Shostakovich (V)

Para Paulo Ricardo Brinckmann Oliveira

Seguimos nossa série iniciada aqui, continuada ali e ainda aqui e acolá.

Sinfonia Nº 13 (Babi Yar), Op. 113 (1962)

Após o equívoco da Sinfonia Nº 12 – lembrem que até Beethoven escreveu uma medonha Vitória de Wellington, curiosamente estreada na mesma noite da sublime 7ª Sinfonia, mas este é outro assunto… -, Shostakovich inauguraria sua última fase como compositor começando pela Sinfonia Nº 13, Babi Yar. Iniciava-se aqui a produção de uma sequência de obras-primas que só terminaria com sua morte, em 1975. Esta sinfonia tem seus pés firmemente apoiados na história da União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial. É uma sinfonia cantada, quase uma cantata em seu formato, que conta com a nada desprezível colaboração do grande poeta russo Evgeny Evtuchenko (conforme alguns, como a Ed. Brasilinense, porém pode-se encontrar a grafia Ievtuchenko, Yevtuchenko ou Yevtushenko, enfim!).

O que é, afinal, Babi Yar? Babi Yar é o nome de uma pequena localidade situada perto de Kiev, na atual Ucrânia, cuja tradução poderia ser Barranco das Vovós. Ali, em 29 e 30 de setembro de 1941, teve lugar o assassinato de 34 mil judeus pelos nazistas. Eles foram mortos com tiros na cabeça e a participação comprovada de colaboradores ucranianos no massacre permanece até hoje tema de doloroso debate público naquele país. Nos dois anos seguintes, o número de mortos em Babi Yar subiu para 200 mil, em sua maioria judeus. Perto do fim da guerra, os nazistas ordenaram que os corpos fossem desenterrados e queimados, mas não conseguiram destruir todos os indícios. Ievtuchenko criticou a maneira que o governo soviético tratara o local. O monumento em homenagem aos mortos referia-se às vítimas como ucranianas e russas, o que também eram, apesar de se saber que o fato determinante de suas mortes era o de serem judeus. O motivo? Ora, Babi Yar deveria parecer mais uma prova do heroísmo e sofrimento do povo soviético e não de uma fatia dele, logo dele, que seria uma sociedade sem classes nem religiões… O jovem poeta Ievtushenko considerou isso uma hipocrisia e escreveu o poema em homenagem aos judeus mortos. O que parece ser uma crítica de importância relativa para nós, era digna de censura, na época. O poema — o qual tem extraordinários méritos literários — foi publicado na revista Literatournaia Gazetta e causou problemas a seu autor e depois, também a Shostakovich, ao qual foram pedidas alterações que nunca foram feitas na sinfonia. No Ocidente, Babi Yar foi considerado prova da violência antissemita na União Soviética, mas o próprio Ievtuchenko declara candidamente em sua Autobiografia Precoce (Ed. Brasiliense, 1987) que a tentativa de censura ao poema não teve nada a ver com este gênero de discussão e que, das trinta mil cartas que recebeu falando em Babi Yar, menos de trinta provinham de antissemitas…

O massacre de Babi Yar é tão lembrado que não serviu apenas a Ievtuchenko e a Shostakovich, tornando-se também tema de filmes e documentários recentes, assim como do romance Babi Yar de Anatoly Kuznetsov. Não é assunto morto, ainda.

O tratamento que Shostakovich dá ao poema é fortemente catalisador. Como se fosse uma cantata em cinco movimentos, os versos de Ievtuchenko são levados por um baixo solista, acompanhado de coral masculino (formado apenas por baixos) e orquestra. É música de impressionante gravidade e luto; a belíssima linha melódica ora assemelha-se a um serviço religioso, ora aum dos grandes modelos de Shostakovich, Mussorgski; mesmo assim, fiel a seu estilo, Shostakovich encontra espaço para seu habitual sarcasmo.

Tranquila crueldade: soldados alemães examinam as roupas dos mortos em Babi Yar.

“Babi Yar” é como ficou conhecida a sinfonia para coro masculino, baixo e orquestra.  A partir do texto de dura indignação de Ievgueni Evtuchenko e apesar dos problemas que ele geraria na União Soviética pós-stalinista, Shostakovich construiu um painel de extraordinária força em torno de mazelas típicas de seu tempo: o medo e a opressão, o conformismo e o carreirismo, o massacre cotidiano num Estado policial e a possibilidade de superação através do humor e da intransigência.

Em linguagem quase descritiva, combinando a severidade da orquestra com a impostação épica das vozes, “Babi Yar” tem um poder de evocação cinematográfico: raramente se ouviu música tão plástica. O realismo e a imagens dos poemas são admiravelmente apoiados pelo estilo alternadamente sombrio e agressivo da música de Shostakovich. Não obstante o grande efetivo orquestral e a tensão dos clímaxes, as texturas são rarefeitas e o coro, declamando ou murmurando, canta quase sempre em uníssono ou em oitavas — mais um elemento dessa estrutura preparada para expressar a desolação e o nervosismo.

O primeiro movimento alterna estrofes que exploram o horror e a culpa de Babi Yar com relatos de dois outros episódios — o de Anne Frank e o de um menino massacrado em Bielostok. No segundo movimento, ritmado de forma tipicamente shostakovichiana, o tom enfático das vozes falam da resistência que o “Humor” jamais deixará de oferecer à tirania. “Na loja”, o Adagio que se segue, descreve quase fisicamente as filas das humilhadas donas-de-casa numa linha sinuosa à espera de um pouco de comida. Quando chegam ao balcão, o poema diz: “Elas nos honram e nos julgam”, enquanto percussão e castanholas simulam panelas e garrafas se entrechocando. É em clima que estupefação que o movimento se encerra: “Nada está fora de seu alcance”.

A linha sinuosa torna-se reta ao prosseguir sem interrupção para o episódio seguinte, um ameaçador ‘sostenuto’ das cordas graves sob solo da tuba: é o “Medo”, componente constante da vida soviética. Contrapondo-se às sombras que até aqui dominam a sinfonia, Shostakovich a conclui com uma satírica reflexão sobre o que é seguir uma “Carreira”. Em ritmo de valsa lenta, ficamos sabendo que a verdadeira carreira não é a dos que se submetem, mas a de Galileu, Shakespeare ou Pasteur, Newton ou Tolstói: “Seguirei minha carreira de tal forma que não a esteja seguindo”, conclui o baixo, com o eco do sino que abrira pesadamente a sinfonia, agora aliviado pela celesta.

Shostakovich (esquerda), com o poeta Evgeni Ievtuchenko (direita)e o regente Kiril Kondrashin na estréia da 13ª Sinfonia.

A história da primeira execução de Babi Yar foi terrível. Houve protestos e ameaças por parte das autoridades soviéticas. Se até 1962, Shostakovich dava preferência a estrear suas obras sinfônicas com Evgeny Mravinsky (1903-1988), Babi Yar causou um surdo rompimento na parceria entre ambos. O lendário regente da Sinfônica de Leningrado amedrontou-se (teve razões para tanto) e desistiu da obra pouco antes de começarem os ensaios. Porém, como na União Soviética e a Rússia os talentos brotam por todo lado, Mravinsky foi substituído por Kiril Kondrashin (1914-1981) que teve uma performance inacreditável e cujo registro em disco é das coisas mais espetaculares que se possa ouvir.

P.S.- Por uma dessas coisas inexplicáveis, encontrei o disco soviético com o registro da estreia num sebo de Porto Alegre em 1975. Comprei, claro.

Obs.: A descrição da música foi adaptada de um texto que Clovis Marques escreveu para um concerto no Municipal do Rio de Janeiro.