Introdução à leitura de "2666", de Roberto Bolaño

Sim, eu não suportei a angústia. Quando fui a Montevideo, ele estava bem na entrada da Puro Verso. Abri o livro de 1125 páginas, vi que era de leitura confortável, com pontos de parada a cada duas ou três páginas; pensei que um livro daquele tamanho poderia ser mais um problema ortopédico do que literário para o leitor, mas que se repetiria na tradução brasileira. Ademais, para que serve o espanhol que conheço se recuasse ante o original de um escritor que amo? Comprei 2666 e voltei, não sei por quê, direto para o hotel. Abri o livro na primeira página e li a epígrafe:

Um oásis de horror em meio a um deserto de tédio.

CHARLES BAUDELAIRE

Oásis de horror… E, na página seguinte, a importante Nota Explicativa que traduzo a seguir da original:

Nota de los herederos del autor

Ante la posibilidad de una muerte próxima, Roberto dejó instrucciones de que su novela 2666 se publicara dividida en cinco libros que se corresponden con las cinco partes de la novela, especificando el orden y periocidad de las publicaciones (una por año) e incluso el precio a negociar con el editor. Con esta decisión, comunicada días antes de su muerte por el propio Roberto a Jorge Herralde, creía dejar solventado el futuro económico de sus hijos.

Después de su muerte y tras la lectura y estudio de la obra y del material de trabajo dejado por Roberto que lleva a cabo Ignacio Echevarría (amigo al que indicó como persona referente para solicitar consejo sobre sus asuntos literarios), surge otra consideración de orden menos práctico: el respeto al valor literario de la obra que hace que de forma conjunta con Jorge Herralde cambiemos la decisión de Roberto y que 2666 se publique en un solo volumen, tal como él habría hecho de no haberse cumplido la peor de las posibilidades que el proceso de su enfermedad ofrecía.

ou

Nota dos herdeiros do autor

Diante da possibilidade da uma morte próxima, Roberto deixou instruções para que seu romance 2666 fosse publicado em cinco livros correspondentes às cinco partes do romance, especificando a ordem e a periodicidade das publicações (uma por ano) e até mesmo o preço para negociar com o editor. Com esta decisão, enviada dias antes de sua morte pelo próprio Roberto a Jorge Herralde, pensava deixar resolvido o futuro econômico de seus filhos.

Após sua morte e depois da leitura e estudo da obra e do material de trabalho deixado por Roberto, Ignacio Echevarría (o amigo que indicou como seu conselheiro literário) surgiu com outra consideração de ordem menos prática: o respeito ao valor literário da obra, que faz com que, em conjunto com Jorge Herralde, alteremos a decisão de Roberto e que 2666 seja publicado primeiro em um só volume, como o autor teria feito se não tivesse sido cumprida a pior das possibilidades que oferecia seu processo de doença.

(Trad. sem muita revisão feita por mim)

Então, lembrei de que estava em Montevideo e que seria interessante, além de econômico, voltar a comportar-me como um turista e não como um literato inveterado que fica lendo em seu hotel não obstante a viagem. Eu que deixasse a leitura para Porto Alegre. Retornei à 18 de julho e à Puro Verso, sabendo que o tesouro estava guardado no hotel e combinei o almoço com a Claudia no Panini`s da Travessa Bacacay, na Cidade Velha, bem perto da outra Puro Verso, a de seis andares. Neste ínterim, não fiz muita coisa que não fosse fuçar em alguns antiquários em busca do Spica perfeito.

Quando a Claudia chegou, comemos o maravilhoso almoço de sempre do Panini`s, lembro que falamos  no preço das roupas, no estado das meus blusões e, levados pelo Cabernet Sauvignon, em John Kennedy Toole. e sua mamãe. Na verdade, bebemos tanto que foi necessário um pit stop no hotel. onde ele, 2666, estava.

E agora estou lá pela página 140, faltando umas 900 para ler. Meu estado é: maravilhado. É curioso: em minha opinião, estou fazendo uma leitura fundamental para quem queira acompanhar a cena literária contemporânea, mas não há, no Brasil, meu ambiente, grande ressonância a Bolaño. Aliás, não há ressonância a nada que não seja perecível, efêmero. É nosso país. Para nossa sorte, há o Uruguai e a Argentina aqui perto. E há os blogues portugueses. Lá, faltam 9 dias, 14 horas, 39 minutos e vinte e seis segundos para 2666 ser lançado. Há um blog que acompanha o pré-lançamento e toda a reação ao livro. Ele faz uma contagem regressiva atá a data de lançamento, 26 de setembro de 2009. Há comentários por toda a blogosfera lusitana, parece haver autêntica expectativa, debate, existem tentativas talvez exageradas de arranjar-lhe um bom lugar na história da literatura, divulga-se opiniões de gente que leu (por mais amalucadas que sejam) e a cultura parece ser até assunto de conversa nas ruas. Isso em Portugal.

Para viver bem do Brasil, há que se acostumar com nossa estupidez. Quando a Cia. das Letras lançar o livro haverá matérias amadorísticas naqueles mesmos jornais, a Cultura dará desconto para quem fizer a compra antes do lançamento, vão chamá-lo de Livro do Ano, o bom Sérgio Rodrigues vai publicar uma crônica provocativa a seus leitores lançando a dúvida — Bolaño é superestimado ou não? — e será uma pequena confusão de leitores e não-leitores (a maioria) a iniciarem o enterro uma obra que, puxa, deveria ser ao menos debatida. E estamos, por incrível que pareça, na América Latina. E o livro lida com personagens e problemas muito, mas muito mesmo, latino-americanos. E com licença que vou ler mais um pouco.

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  1. Tenho um problema de tendinite que certamente se agravará com 2666. E outro com o turismo: geralmente levo livros e fico diante de uma paisdagem qualquer sem vê-la, lendo. Quando canso, dou uma volta pelos arredores, visito uma adega e fico lá bebendo e lendo sozinho, ou bebendo e conversando quando não estou sozinho. Há essa expectativa sobre o 2666, mas nem tanta assim. A literatura do século XXI, por melhor que seja, ainda não chegou ao ponto. Falta assentar uma estética realmente renovada, dar um pé-na-bunda do século XX e parar de esperar pelo surgimento do próximo grande talento, comparável a (coloque aqui o nome de sua predileção).

    Uma coisa: “Não há, no Brasil, meu ambiente, grande ressonância a Bolaño. Aliás, não há ressonância a nada que não seja perecível, efêmero”. Vejo um problema aí, pois em Bolaño há um reconhecimento da efemeridade como essencial ao humano e sua literatura, daí sua forma de escrita entre a poesia e a escrita automática surrealista. Enquanto se vive, se ama e se odeia, mas a eternidade é uma quimera pesada demais para se desmanchar no ar sem provocar danos à imaginação daqueles que a tem no horizonte. Se há uma coisa que gosto no Brasil é justamente isso: aqui o tempo não é levado a sério, o que hoje ressoa amanhã não é nada, e menos ainda é a discussão circunscrita aos iniciados sobre se há ou não valor nessa literatura à beira da morte do chileno. Leite derramado, por exemplo, já morreu, depois de ter motivado essa mesma discussão estéril. Todo livro terá a ressonância que lhe é devida, e um livro de mais de 1000 páginas não será lido por quase ninguém (daí porque penso que Noturno do Chile deveria ser incluído nos currículos do segundo grau, pois é um livro sintético e muito, muito latino-americano), e entre esses poucos leitores não deve ficar nenhum gosto doce ou amargo de pretensão sub-erudita. Lê-se por uma compulsão, um hábito diante do texto, insatisfeito depois de finalizada a última frase: depois dele, abrimos outro livro e vamos assim, infinitamente, como alguns são maníacos por limpeza, música, culinária, etc. e tal.

    Viva o efêmero, pois tudo que vive o é; em qualquer perspectiva além de nossas presunções inúteis, nada restará de nós ou de nossa passagem por esse planetinha ordinário.

    Esperarei pela versão nacional de 2666. Penso que deveria ir a Montevidéu, mas Rachel tem pavor de avião. Será que lá tem um restaurante à beira duma praia onde se pode beber um bom vinho sem ter que olhar para o passeio público onde as meninas bonitas podem distraí-lo?

    P.S.: Para a coleção de “intelectuais” que gostam de futebol, Vladimir Nabokov. Ele era goleiro, e escreveu uma pequena crônica sobre a posição; talvez se ache na Internet – o texto é delicioso, mais que os romances dele, meio irrelevantes. Quem sabe ele não deveria mesmo é se dedicar à carreira de futebolista? Especulação deveras inútil, em se tratando dum cara que já morreu.

    1. Engraçado, não vi problema no “efêmero”: refiro-me (um tanto misteriosamente) ao baixo nível geral, aquele que começa na educação elementar, segue pelo secundário, pelo superior, chegando ao professor que ensina pouco.

      Se tu convenceres a Raquel a pegar um avião, fale com um uruguaio ou argentino. Eles são informados, mesmo o garçom e a balconista.

      Isto se reflete no gosto artístico e musical deles. Eles reverenciam menos o efêmero.

      Abraço.

      1. Ahn… mas como disse o Charlles, é bom livro de “escritor menor”, que npara ele o Bolaño é, embora, para mim, este sehja melhor que o primeiro, mas talvez para isso concorram minhas simpatias latinas contra um russo ocidentalista. Se é pra ser russo, que seja louco, que nem Dostoiévski, Tolstói e Maiakóvski, ou uma nulidade tão gritante que salte aos olhos, como Gontcharóv, fora os espectors, que nem Tchekóv, morto desde a infância, mais insistente, insistente…

  2. A primeira frase do último parágrafo calou fundo. Diabos, essa seria a “ferida narcísica” que todo o brasileiro capaz de fazer mais de quatro ligações sinápticas em um milissegundo precisa assimilar no divã do psicanalista?

    É o que faz a boa literatura: a Bolaños nunca faltou cojones, com o perdão do traduzível trocadalho.

    1. Essa é uma característica de Bolaño que aprecio muito: ele tem coragem, não parece muito preocupado com nada que não seja sua literatura. Não faz curvas.

      Victor, a frase talvez devesse ser:

      “Para viver bem do Brasil, há que se acostumar com nossa ignorância.”

      Abraço.

  3. A tendinite vai ser grande, pois o Paulo Henriques Britto tá trabalhando nas 1000 páginas de “Against the Day”, do Thomas Pynchon.

    Mas, com a permissão do Milton:

    Essa vai para você, Farinatti, que além de nossa idade aproximada, o gosto por GGM, temos o mais importante: você o seu Miguel, e eu, o meu Eric. E pelo andar da carruagem, começarão a rasgar para depois devorarem os livros.

    O trecho seguinte, na minha íntima concepção, parece conter a musicalidade, a natureza concentrada de tempo, e as personagens marcantes que acredito ter calado fundo no jovem colombiano, no calor de seu quarto num puteiro de Medelín. As sementes de Macondo.

    “Se alguma coisa fosse capaz de me induzir a voltar a Sulaco (eu detestaria contemplar todas essas mudanças),seria Antonia. E a única razão para isso_ por que não ser franco?_, o único motivo, é que para criá-la tomei como modelo meu primeiro amor. Era de ver-nos, um bando de colegiais meio espigados, companheiros de seus dois irmãos, era de ver-nos a lançar os olhos para aquela moça que tinha acabado, ela própria, de deixar os bancos escolares, como a porta-bandeira de uma fé na qual todos tínhamos nascido, mas que somente ela sabia manter bem alto, com uma esperança inabalável! Teria ela, talvez, mais ardor e menos serenidade na alma do que Antonia, porém era uma intransigente puritana do patriotismo, sem que seus pensamentos exibissem a mácula do mais íntimo mundanismo. Eu era o único apaixonado por ela. Mas era eu que tinha, com mais frequencia, de ouvir-lhe as contundentes críticas a minhas frivolidades_ tal como o pobre Decoud_ ou suportar os golpes de suas severas e irrespondíveis invectivas. Ela não compreendia de todo…mas não importava. Naquela tarde em que fui, pecador contrito, mas desafiador, dizer-lhe o último adeus, recebi um aperto de mão que me fez saltar o coração, e vi uma lágrima que me tirou o fôlego. Ela abrandara por fim, como se houvesse de súbito percebido (éramos ainda tão crianças!) que eu realmente partia para sempre, que ia para muito longe_ que acabaria por chegar a Sulaco, ainda desconhecida e oculta a nossos olhos na escuridão do Golfo Plácido.

    Eis por que anseio, às vezes, por outro vislumbre da “belíssima Antonia” (ou será da outra?), a caminhar na obscuridade da grandiosa catedral, dizendo uma breve prece junto à tumba do primeiro e último cardeal-arcebispo de Sulaco, contemplando, absorta em filial devoção, o monumento a Don José Avelhanos, e, depois de alongar um terno e fiel olhar ao medalhão que recorda Martin Decoud, sair serenamente para o sol da plaza, com seu porte e sua cabeça branca; uma relíquia do passado que não atrai a atenção de homens que aguardam, impacientes, as alvoradas de outras novas eras, o advento de mais revoluções.”
    (da Nota do Autor de Nostromo, de Joseph Conrad)

  4. Estou tentando rever meus conceitos sobre Bolaño, Milton! Minha espectativa sobre Detetives Selvagens foi tão grande_ esperando ansiosamente que a estantevirtual o enviasse logo_ fruto da babação que cercou o autor, que quando o li, senti todo o anticlímax da espera. Tenho por mim que das abordagem que um autor possa fazer à escrita de um romance, a da primeira pessoa é a mais fácil, a que menos exige esforço, o que torna mais confortável ainda dividindo-o em seções em que o narrador escreve um diário. Sempre tive indisposição à forma literária de diário: parece rala, coloquial demais, tenho que prender o livro e segurá-lo bem entre as mãos para ele, em sua leveza, não retornar de vez à estante. Mas o DS tem partes ali extraordinárias: algumas delas: as que se referem às reflexões do pai da poetisa desaparecida, trancafiado num manicômio; o encontro com Octavio Paz num parque; as partes finais onde a gorda refugiada que os dois personagens principais procuram nas 600 páginas, é encontrada. Mas tem muita coisa solta, não revisada, que atrasa a narrativa e dá a ela um sinal de mortalidade assim que passar o frisson sobre Bolaño. Por isto, julgo que esse autor é maior nas pequenas obras, nos contos e em novelas como a magistral Noturno do Chile (idéia ótima a do Nunes, deveria sim ser obra obrigatória nas escolas). Não sei se vai ser fácil para mim aturar essas 1100 páginas de 2666. Ainda tenho Bolaño como um valioso escritor menor, como Paul Auster, Updike, Kundera, o que já é alguma coisa.

  5. Milton,

    compartilho a sua opinião sobre Bolaño. Também amo-o imensamente. Já li tudo que há publicado dele em português.

    E não agüento esperar pelo 2666. Um amigo meu vai pro Chile nos próximos dias. Vou encomendar!

    Abraço.

    (aliás, você tem idéia de quanto vou ter que desembolsar (R$)?

  6. to lendo sabato e queria saber q lugar ele encontra nessas classificações de vcs. pode até ser “fora”.
    o próximo deve ser esse noturno no chile aí.
    abraço, milton.

  7. Pô, eu tava iludido achando que ficaria mais barato comprar lá. Se for mais caro, o charme vai ficar de lado e encomendo aqui na Cultura.

    Valeu, Milton.

  8. Grande Milto, companheiro de paixão e idolatria por Bolaño. Estive em Santiago ano passado e a importação de 2666 ocupou em minha mala o lugar de umas três garrafas de vinho.

    Mas não me arrependo.

  9. Milton, afinal de contas, você já terminou de ler o 2666? Estou devorando, recém cheguei à “Parte de los Crimenes”. Com certeza trata-se de um dos melhores livros que li nos últimos tempos.

  10. Infelizmente sou obrigado a concordar com a estupidez inerente à condição tupiniquim! Não é só 2666 ( seminal, soberbo, orgástico), mas outras obras como Crime e Castigo, Guerra e Paz, Pedra Páramo, Em busca do tempo perdido e Ulisses, são pedir demais ao nosso povinho eleitor de Tiriricas!

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