Estou lendo O Fim, de Karl Ove Knausgård. É um romanção de 1056 páginas. Estou lá pela 430. Faz umas 50 páginas que ele iniciou uma furiosa incursão ensaística. Parece que a coisa tem mais 300 páginas. Não gosto.
Se os livros de ficção trazem teses, prefiro que estas sejam demonstradas por situações e impasses. As situações podem falar e creio que são elas que mais arranham a realidade. Além disso, filosofia em excesso me chateia, não tenho muita inteligência para ela e preferiria até voltar a estudar matemática. Falo sério.
Neste momento, Knausgård afasta- se tanto da história que conta quanto Musil faz em seu calhamaço-mor O Homem Sem Qualidades. Acho que é roubar no jogo ficcional, ainda mais após Thomas Mann demonstrar como ficção, personagens e filosofia podem se entrelaçar, como os personagens podem representar ideias, como Dostô também fazia em O Idiota e Os Irmãos. Saudades de Settembrini, Naphta e Míchkin.
Mas sou um cara dedicado e vou tentar atravessar as 300 páginas sem pensar em outra coisa.
Importante: eu ADOREI os 5 primeiros volumes da hexalogia. Resolvi encrencar no último…
Mas tenho mais fatos a narrar sobre a visita de Dostoiévski à Livraria Bamboletras, durante o lançamento do Ingresia de Franciel Cruz.
Apresentei-lhe ao célebre escritor um livro de seu conterrâneo e contemporâneo Tolstói, Anna Kariênina. Ele olhou, risonho porém visivelmente contrafeito, e disse:
— Ah, um Tolstói qualquer.
Notei que ele tinha achado minha atitude ofensiva e tentei consertar a situação dizendo que, imagina, atropelada por um trem, muito melhor uma machadinha ou um bom parricídio — já pensou que maravilha se acontecesse em Brasília, Dostô? –, mas como ele não reagia, reclamei das considerações agrícolas de Liêvin, louvei o príncipe Míchkin e o niilista Kirílov e fui saindo de fininho antes que ele jogasse em mim aquele copo de cerveja.
De posse da bela tradução direto do russo do Crime e Castigo da todavia — feita pelo grande Rubens Figueiredo –, eu lhe explicava como eram as traduções antigas de seus livros. Elas nos chegavam todas de segunda mão, a partir de traduções francesas. Parece que não havia ninguém que conhecesse russo no Brasil. Enquanto isso, ele, um eslavófilo furioso, 100% anti-francês, me olhava com aquela cara de quem tá louco pra pegar uma machadinha.
É complicado escrever uma simples resenha de todo um mundo. Pois o que Dostoiévski realiza em Os Irmãos Karamázov é exatamente o que Mahler pretendia fazer com suas sinfonias, colocar todo um mundo dentro delas. Acredito que ambos tenham conseguido.
Há vários planos de leitura do livro. Pode-se ler os Karamázov como um romance de suspense — quem matou o velho Fiódor? –, ou filosófico — o capítulo do Grande Inquisidor, Deus, os problemas morais –, ou psicológico — o parricídio, os vários conflitos, o duplo de Ivan e Smerdiakóv, as várias interpretações dos pensamentos dos personagens. E, céus, deve haver outro planos de leitura para este tremendo romance. Mas vou tentar um mínimo de organização.
A ideia de criar este drama ocorreu a Dostoiévski em 1874, mas o leitmotiv foi-lhe dado ao acaso, cerca de trinta anos antes. Quando preso na Sibéria, Dostoiévski tinha um colega chamado Ilinski, Dmitri Ilinski. Alegre, fanfarrão, sempre despreocupado, ele negava ter sido o autor do crime pelo qual estava na prisão: Ilinski teria assassinado o próprio pai, Nikolai. A história é a seguinte: numa pequena cidade russa, pai e filho se detestavam, brigavam publicamente, não sentavam na mesma mesa, etc. Para piorar, o filho bebia e estava sempre metido em discussões e lutas físicas, além de ser perdulário. Devia para meia cidade e era detestado. Para piorar, o amigo de Dostô tinha avisado a todos na cidade que mataria o pai na primeira chance que tivesse. O pai chamava-lhe de facínora, não lhe dava mais dinheiro e fazia de conta que ele não existia. Um dia apareceu morto, assassinado, mas Dmitri negava o crime, apesar de tudo o que dissera antes. Dostoiévski logo saiu da prisão em episódio bem conhecido. Acreditando na inocência de Dmitri, o escritor ficou com a história trabalhando em sua cabeça. Quinze anos depois, descobriu-se o verdadeiro assassino e Dmitri Ilinski foi libertado. Durante todo este tempo Dostoiévski mantivera-se informado. A inspiração é claríssima, tanto que nos primeiros manuscritos do romance, Karamázov é chamado várias vezes de Ilinski. O escritor pediu que o erro fosse corrigido.
O conflito pai x filho é explorado sob diversas formas no romance. Se o centro do romance é o amor e ódio entre o velho Fiódor e o filho mais velho, também há conflitos mais silenciosos entre o velho e Ivan (o segundo filho) e entre o velho e o suposto filho bastardo Smerdiakóv. Lendo-se os romances anteriores de Dostô, vê-se que as personalidades de todos vinham sendo formadas há tempo. É fácil ver paralelos na natureza dos personagens de diferentes obras do autor: o terceiro filho Aliocha Karamázov e Grúchenka com o príncipe Míchkin e Nastácia Filippovna (de O Idiota), Ivan Karamazov com Raskolnikov (de Crime e Castigo), o starietz Zossima com Tikhon (de Os Demônios).
Apesar da indiscutível qualidade de todos os grande romances de Dostoiévski, Os Irmãos Karamázov tem uma grandiosidade inalcançável. É um enorme painel russo, psicológico e político, trabalho maior da vida de um escritor genial. Com vida própria — separadas do autor — ali estão suas memórias de infância ligadas às reflexões e experiências dos últimos anos. As imagens dos irmãos Dmitri, Ivan e Aliócha — assim como a do bastardo Smerdiákov, espécie de duplo de Ivan — talvez simbolizem diferentes estágios de desenvolvimento espiritual do autor. O romance tem uma estrutura complexa, multidimensional, de gênero difícil de definir. São eventos que ocorrem em apenas duas semanas, mas nesse curto espaço de tempo se encaixam tantas histórias, disputas, conflitos e confrontos ideológicos, que estas seriam suficientes para vários romances de suspense, obras filosóficas, crônicas familiares ou dramas domésticos.
Há duas longas e compreensíveis interrupções na narrativa. A primeira serve para que Dostoiévski (ou Ivan) escreva aquele que talvez seja o melhor capítulo da literatura de todos os tempos. Trata-se do momento em que Ivan, num bar, narra para Aliócha a Parábola do Grande Inquisidor. Jesus retorna à Terra, mas o Grande Inquisidor, na pessoa de um velho bispo de 90 anos, argumenta que sua vinda é inútil e que agora ele só atrapalharia a Igreja. E condena-o à fogueira. (Este resumo chega a ser uma gozação, tal a riqueza do texto). O segundo serve para que Aliócha conte a história de seu mentor Zossima.
A ação principal do romance está na relação entre o velho Fiódor e Dmitri. O whodunit é “Quem matou o velho Fiódor?”. E todos são desvairados, desesperados e negligentes com a verdade e a moral. Todos os personagens parecem meio loucos. A família Karamázov é apaixonada e violenta. O pai Fiódor e Dmitri amam a mesma mulher. Dmitri acha que o pai lhe deve a herança da mãe. Ambos são lascivos, rivais e imprevisíveis. Dmitri é um paradoxo. Incapaz de se controlar, tem grande dignidade pessoal e é cheio de justificativas. Ao contrário de seu pai, um cínico, Mítia visa os mais altos ideais. É dotado daquela tal alma russa que o leva a picos e a abismos como um ioiô. Dmitri Karamázov briga e cita Schiller. Quando preso sob a acusação de assassinato, pensa no sofrimento dos outros e chora.
Ivan não é nada disso. Inteligente e profundo, é um filósofo centrado nos problemas mais irreconciliáveis da existência humana: a natureza de Deus e a ideia de permissão. Intelectual ateu, parece ter dentro de si um conflito permanente entre liberdade e autoridade. O Grande Inquisidor não está relacionado com a trama principal da novela. No entanto, sai de Ivan esta que é a parte mais importante do ponto de vista das ideias contidas no livro.
Aliócha é supostamente o herói do romance. Vivia num mosteiro, mas foi mandado para o mundo. Profundamente religioso, tudo compreende e passa o livro correndo de um lado para outro, tentando conciliar todos. Sem ele, o livro não existiria. É um personagem meio picaresco — vai de um lugar a outro e é uma espécie de informante de todas as tramas paralelas do livro. Acaba conseguindo conciliar apenas um grupo de crianças no belo final do romance.
Uma questão central na abordagem do romance é notar que as ideias do autor estão muito bem escondidas. As célebres citações que o livro contém foram todas rejeitadas por Dostoiévski ainda em vida. Quando lhe atribuíram algumas citações, Dostô respondeu simplesmente que não as assumiria: “Não sou eu quem diz isso, é Ivan. A linguagem é dele, o estilo é dele, o pathos é dele e não meu. Além disso, ele é muito jovem”.
No mundo criado por Dostoiévski, a Rússia e o mundo aparecem como se fossem o reino dos Karamázov. A noção da complexidade e da desorganização das relações talvez nunca tenha ficado tão clara como neste romance. Ninguém é confiável. A maldade pode explodir a qualquer momento. Todos dizem meias verdades por meio de mentiras. Os atos de uns são conduzidos pelos pensamentos de outros. A espiritualidade cristã é invocada a cada momento, mas sucumbe às necessidades tirânicas de felicidade terrestre, à sensualidade e ao álcool.
Numa frase, não dá para não ler.
P.S. — A tradução de Paulo Bezerra é incontornável. Se hoje você ler outra edição em português, não estará tão próximo do original.