Quando ocorreu o episódio de Nova Hartz — com Luisa Geisler sendo desconvidada da Feira do Livro da cidade em razão dos palavrões e do “linguajar inadequado” de Enfim, capivaras (Seguinte, selo jovem da Cia. das Letras, 173 páginas, R$ 39,90) –, logo fiquei louco para ler o livro, claro. E aconteceu o que eu esperava: Geisler manteve a (alta) classe e categoria habituais. Trata-se de um excelente romance, de estrutura sofisticada, muito bem narrado por 4 vozes, com boa história e linguajar inteiramente adequado.
Palavrões? Onde, meu deus? Um porra aqui, outro cu ali, um merda e um cazzo lá adiante, em um livro cujos personagens são adolescentes? Isso não é normal? Sem spoilers, conto que a ação de Enfim se passa durante uma madrugada, quando o carro de um dos meninos estraga na estrada e os jovens, sem sinal de celular e sem ter como obter auxílio imediato, passam a noite juntos, procurando alguém que os tire daquela situação. Sexo? Nada, apenas platônicos interesses amorosos. Há um beijo carinhoso de Léo em Vanessa, se não estou enganado. Drogas? Apenas álcool. Violência? Quase nada, O Senhor das Moscas, por exemplo, mereceria tarja preta perto das capivaras de Geisler. Queriam que eles não discutissem ou que discutissem com zero palavrões? Queriam que eles rezassem na beira da estrada esperando uma ajuda do vereador Robinson Bertuol, do PSC de Nova Hartz?
Mas “Para a alegria das crianças e felicidade dos pais, o livro foi retirado de circulação e autora não virá para Feira do Livro de Nova Hartz”, disse Bertuol.
Mas vamos sair do papo absurdo do casto vereador.
Os pais de Vanessa se separaram e ela e a mãe se mudaram para Chapada do Pytuna, em Minas Gerais. Como costuma ocorrer nessas cidades, não há diversão para os jovens. Sobram a bebida, ir à festas nas redondezas ou a invenção. A invenção: Dênis é um baita mentiroso, cria e defende histórias incríveis como o fato de possuir uma capivara de estimação. Então Vanessa, Léo — o menino rico que anda de caminhonete –, Zé Luís — filho da empregada da casa de Léo — e a interessante Nick, vão visitar Dênis para conhecer a tal capivara.
Só que Dênis lhes diz que ela tinha fugido, é óbvio. E, mesmo cética, a turma sai à procura do bicho. E o carro estraga durante a jornada. E o resto eu não conto.
A estrutura é bem engenhosa. Os capítulos obedecem a cronologia e são narrados em primeira pessoa, com os personagens se alternando. Antes de cada capítulo há listas de desejos, intenções e opiniões aleatórias de quem narrará o próximo capítulo. A coisa prende.
Enfim, capivaras é um livro sobre a amizade, as descobertas, as diferenças sociais, as diferenças de quem vive na cidade grande e no campo, as dificuldades de se relacionar, as dúvidas de toda ordem que assaltam os adolescentes e, digo mais, acho que poderia ser adotado por escolas mais avançadas. Em vez de fazer seu adolescente babar dormindo sobre Iracema, dê-lhes capivaras, professor!
A dicotomia tipicamente gaúcha foi exportada para a política nacional faz mais de uma década. O Grêmio e o Inter, a noite e o dia, o bem e o mal, o preto e o branco, deus e o diabo, o céu e o inferno, o PT e o PSDB. Isso é empobrecedor demais. A Veja e assemelhados fazem seu discurso de ódio ao PT, enquanto vários pequenos veículos e blogs respondem. Um trata de demonizar o outro em exageros espetaculares, como se o mundo se resumisse a detestar a Dilma ou o Aécio.
No entanto, há mais coisas no ar. Houve uma bancada que conseguiu enorme projeção no primeiro mandato de Dilma: a Bancada Evangélica. Segundo dados da própria Frente Parlamentar Evangélica, nas eleições de 2010 a bancada cresceu de 46 deputados (9% do total da Casa) para 68 deputados (13,2% do total), um crescimento de quase 50%. No Senado, os evangélicos têm 3 representantes: Walter Pinheiro (PT-BA) da Igreja Batista, Magno Malta (PR-ES) da Assembleia de Deus e o bispo Marcelo Crivella (PR-RJ), um ex-bispo da Igreja Universal do Reino de Deus.
Os evangélicos cresceram tanto que o comando da campanha à reeleição de Dilma Rousseff está preocupado com o voto deles, um eleitorado que representa 22,2% da população, ou 42,3 milhões de brasileiros, segundo o último Censo do IBGE. Agora será mais difícil conquistar esse eleitorado, sobretudo diante da candidatura de um de seus representantes, o Pastor Everaldo Pereira, do “Partido” Social Cristão (PSC) e da Assembleia de Deus. Em seu primeiro dia de campanha, Everaldo anunciou que criará o Ministério da Segurança Pública. E disse: “Com a Bíblia e a Constituição Federal nas mãos, inicio aqui, com Fé, minha caminhada para mudar o Brasil de verdade”. Assim vai nosso Estado Laico.
Dei uma passada no Facebook, blog e site do pastor. É de um retrocesso constrangedor. Inverdades vendidas como “verdades” e mais ódio, ódio e ódio à, digamos o termo exato, felicidade. Os evangélicos preveem um maior crescimento nestas eleições. Pensam que aumentarão em 30% sua presença no Congresso. Já há partidos políticos que se colocam frontalmente contrários ao Estado Laico, casos do PR e PSC. As mulheres e os homossexuais que se preparem, ainda mais que as leis de financiamento de campanha nunca são alteradas. Os caras têm grana e Everaldo já teria 4% dos votos, segundo as pesquisas. Isso sem contar com Marina Silva, vice de Eduardo Campos, terceiro colocado nas pesquisas.
Aberrações como o tal Estatuto do Nascituro — com sua consequente proibição do aborto –, cura-gay, homofobia, retirada da diversidade de gênero do Plano Nacional de Educação, o impedimento do kit gay — que foi retirado do MEC por Dilma e que era apenas um kit educacional contra a homofobia — e outros fatos foram os primeiros passos contrários a um Estado Laico onde a religião seja uma escolha íntima, uma necessidade pessoal. O que virá? Olha, me cago de medo dessa gente.
No caso da repressão, talvez se chegue à punição ou, no mínimo, à identificação de militares torturadores, mas o papel da Oban e da Fiesp e de outros civis coniventes permanecerá esquecido nas brumas do passado, a não ser que a tal Comissão da Verdade siga a sugestão do [Carlos] Araújo e jogue um pouco de luz nessa direção também.
Luís Fernando Verissimo, na crônica Os coniventes, de 21 de março de 2013
Cerveja que tomo hoje é
Apenas em memória dos tempos da Panair
A primeira Coca-cola foi
Me lembro bem agora, nas asas da Panair
A maior das maravilhas foi
Voando sobre o mundo nas asas da Panair
Conversando no bar (Canção de Milton Nascimento e Fernando Brant)
Há alguns anos, esta canção de Milton Nascimento recuperou seu título original de Saudades dos aviões da Panair. Na época em que foi lançada por Elis Regina, em 1974, os autores tiveram receio de falar em Panair e em suas saudades da empresa logo no título da canção. Então, ela foi rebatizada para Conversando no Bar. Afinal, era proibido sentir saudades da enorme e respeitada empresa que, por ação dos militares, foi desmontada sem maiores explicações nos primeiros meses do Golpe de 1964. Num país pobre e quase desindustrializado, a existência da Panair do Brasil S. A. era motivo de orgulho nacional.
Rio de Janeiro, 10 de fevereiro de 1965, 15 h. Um telegrama do Ministério da Aeronáutica chegou aos escritórios da Panair, a maior companhia aérea do país e uma das maiores do mundo. A mensagem era simples e dava conta de que o governo estava cassando seu certificado de operação em razão da condição financeira insustentável da empresa. O telegrama vinha assinado pelo ministro Eduardo Gomes. A Panair não tinha nenhum título protestado nem impostos atrasados, mas o telegrama adiantava que ela não tinha meios para saldar suas dívidas e que estava proibida de voar. Os dias eram assim, também cantava Elis, ou podiam ser assim. À noite, tropas do Exército invadiram os hangares da Panair e a Varig imediatamente assumiu todas as concessões de linhas aéreas e propriedades da concorrente. E conseguiu fazer isto sem atrasar nenhum voo. Provavelmente, tinha sido alertada sobre os caminhos se abririam para ela naquele grande abril.
A revogação das concessões de linhas aéreas da Panair do Brasil foi decretada pelo Marechal Castelo Branco e a Varig era de propriedade de um aliado do governo militar, Ruben Berta — nome de bairro em Porto Alegre. De uma tacada, a atitude provocou o desemprego de cerca de 5 mil pessoas, deu à Varig o monopólio dos vôos aéreos internacionais do Brasil e isolou quarenta e três cidades da Amazônia, pois nenhuma outra empresa operava os hidroaviões Catalina, os únicos que alcançavam aquelas localidades. Já a Celma, a subsidiária da Panair que fazia a manutenção das turbinas aeronáuticas civis e militares no Brasil, foi estatizada. Fim.
Provavelmente, não houve apenas uma razão um motivo para que os militares responsáveis pelo Golpe de 1964 perseguissem a Panair. Provavelmente, o motivo foi o conjunto da obra e, certamente, houve considerável influência externa. Mário Wallace Simonsen, o principal sócio da empresa, era um dos homens mais ricos do país. Era uma versão principesca de nossos super-ricos, uma espécie de Eike Batista com glamour. Simonsen era o sócio majoritário da Panair, o dono da TV Excelsior, da Comal — maior exportadora de café do Brasil num período em que o café respondia por dois terços das exportações nacionais –, da Editora Melhoramentos, do Banco Noroeste, do Supermercado Sirva-se (o primeiro a existir no Brasil), da Rebratel (qualquer semelhança com o nome Embratel não é mera coincidência) e de mais 30 empresas. A rapidez com ele foi expurgado do mundo empresarial brasileiro após 1964 foi absolutamente espantosa. A única empresa que continuou a existir foi o Banco Noroeste, que foi repassado a seu primo Léo Cochrane Simonsen até ser recentemente comprado pelo Banco Santander.
A família era admiradíssima como os ricos costumam ser. Presença constante nas colunas sociais, sabia-se que a família Wallace Simonsen – Mário, sua esposa Baby e os três filhos Wallace, John e Mary Lou – viviam como reis. A linda Mary Lou era figura comum nas revistas dos dois lados do Atlântico. Sua festa de debutante foi realizada em Londres, na presença da rainha da Inglaterra. Seu noivado também ocorreu na capital inglesa, só que na embaixada do Brasil. Seu irmão Wallinho andava com um espantoso Mercedes-Benz esportivo nas ruas de São Paulo e tinha casa com mordomo em Paris.
Ou seja, tratava-se do jet set da época, pessoas que normalmente têm boas relações com o poder. Mas Mário Wallace Simonsen devia ter graves problemas, na opinião dos militares. Por que a ditadura empenhou-se tanto para acabar com o império de Simonsen? Há várias possibilidades: é notório que a Varig – cuja diretoria era amiga da ditadura – desejava o mercado aéreo dominado pela Panair, que os Diários Associados queriam o mercado da TV Excelsior e que as empresas americanas de café, representadas por Herbert Levy, queriam abocanhar a Comal. E se havia tais pressões civis, talvez houvesse também um bom motivo militar.
Simonsen não era especialmente simpático à esquerda nem tinha intimidade com João Goulart, porém, em agosto de 1961, enquanto Jânio Quadros estava em visita à China, Simonsen posicionou-se ao lado da legalidade. Houve “acusações” – fato inverídico – de que Jango teria voltado da China num avião da Panair. Mas a verdade talvez seja ainda pior: Simonsen mandou um executivo da empresa avisar o vice-presidente sobre o que estava em andamento no Brasil. Jango não sabia de nada, pois naquele tempo as comunicações eram tais que o vice-presidente poderia retornar da China sem cargo e sem saber de nada. Então, avisado, Jango deu telefonemas de Paris e Zurique, onde fazia escalas, para San Tiago Dantas — seu futuro Ministro de Relações Exteriores e da Fazenda — e para o ex-presidente Juscelino Kubitschek, articulando sua ascensão ao cargo que lhe cabia constitucionalmente.
Logo após o Golpe, o deputado Herbert Levy conseguiu criar uma CPI da Comal, a empresa de exportação de café de Simonsen. Levy era uma figura da ditadura militar. Foi deputado federal por dez mandatos consecutivos, entre 1947 e 1987, pela UDN, Arena, Partido Popular, PDS, PFL e PSC, além de secretário da Agricultura do Estado de São Paulo em 1967, durante a administração Abreu Sodré. Na CPI, Levy conseguiu que o novo regime cancelasse a licença da empresa para comercialização de café, sem que ela tivesse um único título protestado.