O caso Panair: o esquecimento de que a ditadura fazia mais que torturar

O caso Panair: o esquecimento de que a ditadura fazia mais que torturar

No caso da repressão, talvez se chegue à punição ou, no mínimo, à identificação de militares torturadores, mas o papel da Oban e da Fiesp e de outros civis coniventes permanecerá esquecido nas brumas do passado, a não ser que a tal Comissão da Verdade siga a sugestão do [Carlos] Araújo e jogue um pouco de luz nessa direção também.

Luís Fernando Verissimo, na crônica Os coniventes, de 21 de março de 2013

Cerveja que tomo hoje é
Apenas em memória dos tempos da Panair

A primeira Coca-cola foi
Me lembro bem agora, nas asas da Panair

A maior das maravilhas foi
Voando sobre o mundo nas asas da Panair

Conversando no bar (Canção de Milton Nascimento e Fernando Brant)

Há alguns anos, esta canção de Milton Nascimento recuperou seu título original de Saudades dos aviões da Panair. Na época em que foi lançada por Elis Regina, em 1974, os autores tiveram receio de falar em Panair e em suas saudades da empresa logo no título da canção. Então, ela foi rebatizada para Conversando no Bar. Afinal, era proibido sentir saudades da enorme e respeitada empresa que, por ação dos militares, foi desmontada sem maiores explicações nos primeiros meses do Golpe de 1964. Num país pobre e quase desindustrializado, a existência da Panair do Brasil S. A. era motivo de orgulho nacional.

Logotipo da Panair: pouso forçado em abril de 1965

Rio de Janeiro, 10 de fevereiro de 1965, 15 h. Um telegrama do Ministério da Aeronáutica chegou aos escritórios da Panair, a maior companhia aérea do país e uma das maiores do mundo. A mensagem era simples e dava conta de que o governo estava cassando seu certificado de operação em razão da condição financeira insustentável da empresa. O telegrama vinha assinado pelo ministro Eduardo Gomes. A Panair não tinha nenhum título protestado nem impostos atrasados, mas o telegrama adiantava que ela não tinha meios para saldar suas dívidas e que estava proibida de voar. Os dias eram assim, também cantava Elis, ou podiam ser assim.  À noite, tropas do Exército invadiram os hangares da Panair e a Varig imediatamente assumiu todas as  concessões de linhas aéreas e propriedades da concorrente. E conseguiu fazer isto sem atrasar nenhum voo. Provavelmente, tinha sido alertada sobre os caminhos se abririam para ela naquele grande abril.

Um avião que levava um passageiro e 25 fardos de borracha na Amazônia em 1943

A revogação das concessões de linhas aéreas da Panair do Brasil foi decretada pelo Marechal Castelo Branco e a Varig era de propriedade de um aliado do governo militar, Ruben Berta  — nome de bairro em Porto Alegre. De uma tacada, a atitude provocou o desemprego de cerca de 5 mil pessoas, deu à Varig o monopólio dos vôos aéreos internacionais do Brasil e isolou quarenta e três cidades da Amazônia, pois nenhuma outra empresa operava os hidroaviões Catalina, os únicos que alcançavam aquelas localidades. Já a Celma, a subsidiária da Panair que fazia a manutenção das turbinas aeronáuticas civis e militares no Brasil, foi estatizada. Fim.

Provavelmente, não houve apenas uma razão um motivo para que os militares responsáveis pelo Golpe de 1964 perseguissem a Panair. Provavelmente, o motivo foi o conjunto da obra e, certamente, houve considerável influência externa. Mário Wallace Simonsen, o principal sócio da empresa, era um dos homens mais ricos do país. Era uma versão principesca de nossos super-ricos, uma espécie de Eike Batista com glamour. Simonsen era o sócio majoritário da Panair, o dono da TV Excelsior, da Comal — maior exportadora de café do Brasil num período em que o café respondia por dois terços das exportações nacionais –, da Editora Melhoramentos, do Banco Noroeste, do Supermercado Sirva-se (o primeiro a existir no Brasil), da Rebratel (qualquer semelhança com o nome Embratel não é mera coincidência) e de mais 30 empresas. A rapidez com ele foi expurgado do mundo empresarial brasileiro após  1964 foi absolutamente espantosa. A única empresa que continuou a existir foi o Banco Noroeste, que foi repassado a seu primo Léo Cochrane Simonsen até ser recentemente comprado pelo Banco Santander.

A família era admiradíssima como os ricos costumam ser. Presença constante nas colunas sociais, sabia-se que a família Wallace Simonsen – Mário, sua esposa Baby e os três filhos Wallace, John e Mary Lou – viviam como reis. A linda Mary Lou era figura comum nas revistas dos dois lados do Atlântico. Sua festa de debutante foi realizada em Londres, na presença da rainha da Inglaterra. Seu noivado também ocorreu na capital inglesa, só que na embaixada do Brasil. Seu irmão Wallinho andava com um espantoso Mercedes-Benz esportivo nas ruas de São Paulo e tinha casa com mordomo em Paris.

Ou seja, tratava-se do jet set da época, pessoas que normalmente têm boas relações com o poder. Mas Mário Wallace Simonsen devia ter graves problemas, na opinião dos militares. Por que a ditadura empenhou-se tanto para acabar com o império de Simonsen? Há várias possibilidades: é notório que a Varig – cuja diretoria era amiga da ditadura – desejava o mercado aéreo dominado pela Panair, que os Diários Associados queriam o mercado da TV Excelsior e que as empresas americanas de café, representadas por Herbert Levy, queriam abocanhar a Comal. E se havia tais pressões civis, talvez houvesse também um bom motivo militar.

Mario Wallace Simonsen, dono de um grupo de empresas destroçadas pelo Golpe de 64

Simonsen não era especialmente simpático à esquerda nem tinha intimidade com João Goulart, porém, em agosto de 1961, enquanto Jânio Quadros estava em visita à China, Simonsen posicionou-se ao lado da legalidade. Houve “acusações” – fato inverídico – de que Jango teria voltado da China num avião da Panair. Mas a verdade talvez seja ainda pior: Simonsen mandou um executivo da empresa avisar o vice-presidente sobre o que estava em andamento no Brasil. Jango não sabia de nada, pois naquele tempo as comunicações eram tais que o vice-presidente poderia retornar da China sem cargo e sem saber de nada. Então, avisado, Jango deu telefonemas de Paris e Zurique, onde fazia escalas, para San Tiago Dantas — seu futuro Ministro de Relações Exteriores e da Fazenda — e para o ex-presidente Juscelino Kubitschek, articulando sua ascensão ao cargo que lhe cabia constitucionalmente.

Logo após o Golpe, o deputado Herbert Levy conseguiu criar uma CPI da Comal, a empresa de exportação de café de Simonsen.  Levy era uma figura da ditadura militar. Foi deputado federal por dez mandatos consecutivos, entre 1947 e 1987, pela UDN, Arena, Partido Popular, PDS, PFL e PSC, além de secretário da Agricultura do Estado de São Paulo em 1967, durante a administração Abreu Sodré. Na CPI, Levy conseguiu que o novo regime cancelasse a licença da empresa para comercialização de café, sem que ela tivesse um único título protestado.

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Plano Nacional dos Direitos Humanos, versão 3

Sem construção de alicerces de conhecimento histórico, a ignorância erige-se em terreno fértil para que os apoiadores da ditadura, fossem eles truculentos ou silentes, voltem a sibilar barbaridades. Estas, por sua vez, tem, cada vez mais, tomado a forma da velha cantilena de que se travava uma guerra desde 1963, de que o Brasil teve que escolher entre uma ditadura de direita ou uma de esquerda, de que o golpe do Castelo Branco foi necessário, sendo que, depois, o regime degringolou por alguns anos, com os generais da linha dura. Barbaridades, que a pesquisa histórica tem desmentido.

Luís Augusto Farinatti (em comentário feito neste blog)

Ululante ou não, é óbvio que este blog defende o diabo, ou seja, o Plano Nacional dos Direitos Humanos, versão 3. Quando vi quem berrava contra ele, fiquei irremediavelmente apaixonado:

1. Os militares consideraram o plano insultuoso e revanchista, temendo uma caça aos torturadores. Ora, não vejo a hora da caçada. Há que se definir o que foi guerra e o que foi tortura e as punições devem ser para todos os que ultrapassaram os limites. Evidentemente, este blog não pensa em punir o militar que deu um tiro fatal num guerrilheiro no Araguaia; este blog gostaria apenas de saber quem trabalhou nos varais de pau-de-araras, quem foi manicure, essas coisas. Como os militares sabem que foram responsáveis por muito mais mortes, temem as investigações. Teria especial curiosidade sobre as mortes mais espetaculares. Como a de Juscelino Kubitschek (09/08/1976) — ocorrida em acidente automobilístico contrário às Leis da Física, na época suspensas pela ditadura — , como a de Carlos Lacerda (22/07/1977) — internado com uma forte gripe e que morreu logo após uma injeção — e como a do enfarto de João Goulart (06/12/1976) — encontrado com um travesseiro sobre o rosto, em posição bastante atípica para sua causa mortis. Vocês não acham essas mortes muito, assim, tipo muito próximas cronologicamente? Os argentinos gostam muito deste esporte, uma das atividades mais dignas que ocorrem em nosso conturbado vizinho. Bem, sou a favor das investigações e das punições antes que estes caras morram. Há uns bem vivos. Há um, inclusive, ex-membro do CCC, que comenta notícias num programa de TV em rede nacional.

2. A Igreja Católica não curtiu muito a aprovação do aborto, as restrições à ostentação de símbolos religiosos, a união civil entre pessoas do mesmo sexo e o direito a adoção para gays. Lula, o catolicão, já começa a recuar nestes pontos que são tranquilos, compreensíveis e razoáveis a quaisquer vertebrados (explico, os vertebrados costumam ter um cérebro numa das pontas da vértebra; a outra ponta costuma estar nas proximidades de coisas menos dignas; mas até os católicos as têm). Alguém poderia informar a eles que o aborto é opcional, que nem todos se ligam em igrejas e que deixem de encher o saco?

3.  A Abert — Associação Brasileira de Rádio e Televisão tem a posição mais cômica de todas, pois vê ameaçada a liberdade de expressão de seus associados. O motivo é incrível: mesmo sendo donos de meras “concessões”, acham repugnante a criação de uma comissão governamental para monitorar suas programações. Querem continuar livres, exercendo a liberdade democrática de bombardear a esquerda e a cultura diariamente. Claro, são empresas privadas, seus donos têm convicções políticas firmes, só que — incrível — trabalham sob “concessões” renovadas periodicamente. Têm uma função social, como não? Tal monitoramento teria como objetivo ranquear as empresas de comunicação dentro de critérios de aderência aos Direitos Humanos. Ora, que absurdo, não? Um ranking! E, olha, estamos falando apenas de rádio e TV. Nada de publicações escritas como a Veja e alguns de nossos bem conhecidos jornais.

Para terminar:

Você sabia… Que em dezembro de 2002, último mês do governo Fernando Henrique, em apenas sete dias foram publicadas no Diário Oficial da União 96 novas concessões por todo o país?

Você sabia… Que em apenas um dia (13 de dezembro), o Diário Oficial publicou 46 novas outorgas? Entre os principais beneficiados pelas novas concessões, destacaram-se a RBS e a Fundação João Paulo II. O grupo gaúcho obteve 21 novas concessões, 21,87% das que foram designadas pelo Ministério das Comunicações.

Fonte dos dois “Você sabia…”.

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