Breve registro de um recital inesquecível de André Carrara

Breve registro de um recital inesquecível de André Carrara
Eu e Elena no recital de André Carrara | Foto: Augusto Maurer
Eu e Elena no recital de André Carrara | Foto: Augusto Maurer

Não há exagero no título. Na última quinta-feira (9), no inacreditável horário das 17h30, assistimos o recital do pianista André Carrara no Auditório Tasso Correa, do Instituto de Artes da Ufrgs. Para os padrões do local e apesar do horário, tinha muita gente na plateia. Foi uma noite que poderia ser chamada de europeia. Um recital impecável, seguido de um esplêndido jantar. Mas esqueçamos do jantar por ora. Quem conhece Carrara e suas interpretações de Chopin, largou o que estava fazendo e foi até o centro de Porto Alegre para ver de perto.

Em seu recital, ele interpretou, nesta ordem, os quatro Improvisos, os quatro Scherzi e as quatro Baladas do compositor polonês Frédéric Chopin (1810-1849), ícone do piano romântico. São três coleções bem distintas e que compuseram um concerto de crescente densidade emocional.

Chopin era um romântico inovador. Trabalhou novas formas musicais como a Balada, a Polonaise, o Noturno, o Improviso, o Estudo, etc. Carrara deu personalidade clara e própria a cada quarteto de peças. Em um recital que nunca abandonou o mais alto nível, o grande destaque foram as Baladas. A poetisa Orides Fontela devia estar presente ali, pois me vieram à mente suas palavras:

Nunca amar
o que não
vibra

nunca crer
no que não
canta

Teve gente bem próxima a mim que chorou. Depois do recital, enquanto jantava, eu refletia sobre a heterogeneidade dos músicos da Ospa, pois, ao lado de Carrara e outros grandes instrumentistas, há outros que têm relações infantis com seus instrumentos. Imaginem que Carrara tocou tudo de cor, sem recorrer a partituras!

Não sou um grande adepto do romantismo, mas há casos em que somos convencidos de nossos erros de forma tão cabal que só nos resta a vergonha. Na última quinta-feira, Carrara fez nossa noite, nosso dia e nossa semana e seria injusto que eu, que publico tanta besteira, não escrevesse estas linhas sobre aqueles sublimes 90 minutos que ecoam até agora.

Como disse Carrara nesta entrevista: “O repertório erudito é música para ‘gente grande’. Para ser apreciado, exige um estado reflexivo que está sendo cada vez mais esquecido. Estamos muito reativos e pouco reflexivos. Tem um sentido expressivo na música que estamos perdendo”. Recuperamos algo deste sentido na última quinta-feira.

Carrara mandando bala no IA | Foto: Augusto Maurer
Carrara mandando bala no IA | Foto: Augusto Maurer

Recital de clarinete e piano com Diego Grendene e Olinda Allessandrini no StudioClio

Recital de clarinete e piano com Diego Grendene e Olinda Allessandrini no StudioClio
Chovia ontem no Studio Clio
Choveu boa música ontem no StudioClio

Introdução nada a ver tudo a ver. Quando sento no proscênio do Theatro São Pedro — onde se fica literalmente uns três metros sobre os instrumentistas — ou ouço atentamente os músicos aquecerem antes de um concerto da Ospa, tenho a impressão de que ela é um grupo muito heterogêneo. Exemplos positivos são gente como o pianista André Carrara, que numa noite dessas atacou uma Hammerklavier cheia de estilo na Assembleia, ou Elieser Ribeiro, que aquecia para o musical Chimango realizando o solo inicial do Concerto em Sol Maior para piano de Ravel com enorme leveza. Há muitos outros exemplos positivos de músicos praticando o que vão tocar logo depois, mas há também alguns que beiram o constrangedor. Digo isso porque acho que os músicos adultos da cidade — os que trafegam longe da faixa do tatibitate — devem dar sua contribuição a fim de movimentar a música de câmara da cidade. Existe algo melhor do que a música de câmara? Ainda mais na excelente acústica do StudioClio, nosso Wigmore Hall?

E chegamos à noite de ontem. Diego Grendene de Souza, músico da Ospa, poderia ficar na zona de conforto, entre a vida tranquila de funcionário público com o salário a ser parcelado pelo Sartori e os cachês, mas resolveu aventurar-se por um belo e complicado repertório de obras do século XX para clarinete e piano junto com Olinda Allessandrini. Fez bem. A dupla saiu-se maravilhosamente e o público retirou-se eufórico da sala.

O programa:
— Leonard Bernstein (1918-1990): Sonata para Clarinete e piano (1941-42)
— Carlos Guastavino (1912-2000): Sonata para Clarinete e piano (1970)
— Gerald Finzi (1901-1956): Five Bagatelles, op. 23 (1940-41)
— Francis Poulenc (1899 -1963): Sonata para Clarinete e piano (1962)

Olha, foi um recital realmente esplêndido. A conhecida sonata de Bernstein poderia soar mais jazzy. Penso que o piano de Olinda não acompanhou o humor da peça, mas mesmo assim a dupla foi soberba. Complicado de aguentar foi o romântico tardio Guastavino que ameaçou melar o Clio com seus favos. Não acredito muito nisso, mas o Diego me disse que pensou em mim durante a execução. A coisa teria sido mais ou menos nestes termos: o Milton deve estar detestando tanto romantismo… É verdade, mas também é verdade que ele é uma pessoa gentil.

A coisa melhorou muito com o para mim desconhecido inglês Finzi. Suas bagatelas formam um mosaico tristonho, mas há joias na peça, como os dois últimos movimentos, Forlana — o preferido da neocolorada Elena — e Fughetta.

Mas o melhor ficou para o fim: a Sonata de Poulenc dedicada a postumamente a Arthur Honneger e que Benny Goodman estreou. Muito pessoal, tem uma estrutura que foge do padrão rápido-lento-rápido das sonatas tradicionais, tanto que o primeiro movimento –, que recebe o título um tanto paradoxal de Allegro tristamente — é ele próprio dividido nas três seções descritas. Como outras obras de Poulenc, a sonata parece incontrolável, sempre em movimento, mas, curiosamente, ela mantém o sentimento de luto. Como? Realmente não sei.

O segundo movimento , Romanza, é claro e violento. A melodia do clarinete é simples e sombria mas perde a compostura ao fazer o clarinete gritar desesperadamente, lembrando a ausência de Honneger. O terceiro movimento é delicioso e a gente esquece da morte. Diego e Olinda estiveram perfeitos numa peça que exige expressões variáveis e nada triviais ou comuns.

Foi uma bela noite de música de câmara. Ao final, atopetados na entrada, ninguém queria ir embora do StudioClio. Que outros músicos repitam e mostrem suas caras! E repito: existe algo melhor do que a música de câmara? Ainda mais na excelente acústica do StudioClio, nosso Wigmore Hall?

André Carrara, a chuva e a Hammerklavier

André Carrara, a chuva e a Hammerklavier
André Carrara: missão complicada lavada a bom termo | Foto: Ospa
André Carrara: missão complicada levada a muito bom termo | Foto: Ospa

Domingo à noite, fomos até a Casa da Música para assistir ao recital do pianista André Carrara. Não era pouca coisa: ele interpretaria a Sonata Nº 29, Op. 106, “Hammerklavier”, de Beethoven, e os 4 Improvisos de Chopin. A chuva fraca daquele fim de tarde estava começando quando Carrara dava início aos primeiros acordes da maior Sonata de Beethoven, com mais de 40 minutos. O Hammerklavier é um problema musical. Pode parecer incrível, mas as Sonatas de Beethoven eram ainda tocadas em cravos na sua época, então, o compositor resolveu alertar que o Op. 106 era para pianoforte ou hammerklavier. A Sonata é considerada a composição mais difícil de Beethoven para piano. Em dificuldade, apenas rivaliza com as 33 Variações sobre um Tema de Diabelli. A sonata foi escrita em 1817-18, e nela surgem pela primeira vez vários dos estilos que se tornariam comuns no período tardio de Beethoven, o dos últimos quartetos: a reinvenção das formas tradicionais, como a forma sonata, um humor súbito e algo violento e as reutilização da fuga.

A disposição dos movimentos, com a troca do scherzo para a segunda posição e a colocação do adágio na terceira, é semelhante a da 9ª Sinfonia e não é absurdo pensar que a Sonata foi uma espécie de ensaio para esta Sinfonia, principalmente se pensarmos nos dois sonhadores adágios, tão longos e belos lá e cá. É uma de minhas peças preferidas, das que tenho a impressão de conhecer cada nota, e eu estava lá por ela, não por Chopin. André Carrara já tinha interpretado a hammer no Salão Mourisco, em Porto Alegre, e no Centro Cultural do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro.

Quando começou o primeiro movimento, eu me senti muito feliz e confortado ouvindo a música ao lado de Elena com o som da tranquila chuva que caía lá fora. Sabia que Carrara estava passando extraordinário trabalho, e tinha absoluta certeza de que a posição burguesa de mero receptor pode funcionar muito bem com Chopin, mas que a hammer algum dá trabalho para o ouvinte. É como ler Joyce, requer esforço. Então, me aprumei na cadeira.

Gostei muito da forma como Carrara executou o centro emocional da obra: o belíssimo, longo e triste adágio que os pianistas levam entre 18 e 25 minutos tocando. A interpretação de Carrara foi muito madura. Não é uma peça para amadores. Alguém chamou este movimento de “a apoteose da dor, da tristeza profunda para a qual não há remédio e que não se exprime em desabafos apaixonados, mas no silêncio”. Ou seja, é uma música de grande profundidade que vem logo após um breve scherzo muito zombeteiro, sendo que a junção de ambos funciona como uma desconcertante interrogação. A fuga final recebeu tratamento de luxo de um concentradíssimo e muito musical André Carrara. Garanto-lhes, o moço está em boa forma.

Se não me engano, Nietzsche pediu uma orquestração para a Sonata. Ah, para quê?

Carrara tocou tudo de cor, incluindo os 4 Chopins no final do programa. Bem, eu tenho lá meus problemas com compositores que amam DEMAIS seus instrumentos. Então, por algum motivo, não consigo admirar gente como Chopin, Schumann e Rachmaninov. OK, é uma limitação minha, podem me atirar pedras! Apenas suportei o compositor polonês que a Elena adora e adorou novamente.

É elogiável a iniciativa da Casa da Música de aceitar uma proposta tão radical de programa, mas um Jimo Penetril cairia bem naquela banqueta barulhenta. Quase que eu me propus a ir no Zaffari do Shopping Total ali ao lado. Afinal, foi um tremendo recital.