John Dunning parece fazer questão de rigor. Em seu romance policial Edições Perigosas, há uma morte na primeira frase e a conclusão só será inteiramente fechada na última. Para quem, como eu, desejava descansar de leituras mais árduas, Edições Perigosas foi perfeito. É muito bem escrito, tem história envolvente e os personagens são bem construídos, com cada (boa) trama disparando numa direção, de forma a nos enganar. O tema de fundo é a paixão pelos livros. Quem me emprestou este Dunning foi o livreiro Mauro Messina, da célebre Ladeira Livros. Dias depois, por ter falado muito bem do que estava lendo, tive que comprar o volume, pois minha mulher disse que também queria lê-lo. Mauro me cobrou tão pouco que parece não ter entendido muito bem o romance…
Os romances policiais costumam explorar detetives excêntricos que deslindam tramas complicadas. Cliff Janeway não chega a ser uma figura peculiar. Trata-se de um policial algo violento que é tarado por literatura e livros raros. Em Edições, ele investiga a morte de um alfarrabista. Alfarrabista é pessoa que garimpa livros para os sebos, seja comprando-os muito barato na origem, seja simplesmente recebendo de quem queira livrar-se deles. Eles os vendem um pouco mais caro para os livreiros que, por sua vez, exploram gente preguiçosa como nós. O livro nos dá uma ideia clara do que é o trabalho nos sebos e é óbvio que o Mauro foi seduzido pela questão da busca e compra de novos volumes, atividade da qual ele me confessou gostar especialmente.
John Dunning domina o gênero com sobras. Tem estilo fácil e viciante. Na área dos clichês, temos uma incerta mulher fatal e só. Os outros ficam de fora. Para nosso prazer, durante as discussões sobre livros e seus preços, esbarramos em Salinger, Bellow, Golding, Faulkner, Hemingway, Rex Stout, etc.
A literatura de Svetlana Aleksiévitch é muito singular. Ao mesmo tempo que é documental, tem altíssima qualidade, fenômeno mais comum em ficcionistas. Aliás, a produção da escritora bielorrussa é única. Como boa jornalista que é, ela entrevista e abre aspas. Na verdade só faz isso, mas unifica os discursos sob um rigoroso filtro literário que dá forma e unidade a seus livros. Há anos divido com estudiosos a convicção de que a ficção é a única forma narrativa que roça a realidade. Aleksiévitch abala tal convicção. Talvez fosse melhor dizer que o texto literário — jornalístico ou não — é o único gênero de escritura que arranha os fatos. O resto são dados, contextualizações, circunstâncias, mas não é informação real. O habitat desta, desculpem, é o bom texto. E a diferença da escritora bielorrussa para seus pares é que seu texto não é apenas bom, é de um virtuosismo arrebatador.
Aleksiévitch não é uma escritora de eventos comuns nem de análise política, é uma historiadora de emoções. O que ela nos oferece é todo um mundo emocional. Vozes de Tchernóbil é uma obra coral. São centenas de depoimentos, um enorme painel de vozes reais, cada uma delas peça de um mosaico estarrecedor. É uma espécie de romance coletivo ou romance de evidências. As pessoas falam de si mesmas formando um contexto de pesadelo onde a radiação paira invisível, como um deus terrível, implacável. Vozes é uma montanha de pequenas histórias que recria a grande história, provando que a verdade está distribuída entre seus vários participantes e que a vida individual é mesmo algo ininteligível.
Para mim, é muito difícil escrever uma resenha que não seja gonzo. Tenho que participar dela, pois minha mulher conhece pessoalmente alguns dos entrevistados. Ela me trouxe fotos de uma delas, uma professora da Escola de Arte e Cultura de Moguilióv. Ou seja, vi fotos de minha Elena, de sua mãe e de uma pessoa “de Tchernóbil” tiradas poucos anos antes da explosão do reator. Mais: nestas vozes do povo bielorrusso reconheço várias posturas e piadas — sem nenhuma relação com a tragédia — que noto na casa onde moro hoje e onde amo ficar.
(Aliás, paralelamente, neste blog, tenho enorme vontade de acrescentar uma voz ao relato de Aleksiévitch).
A literatura da bielorrussa dialoga em vários níveis com a música. Há polifonia nos “corais” e, como na música, o mesmo tema é retomado diversas vezes sob diferentes abordagens. Lendo Vozes, pensei várias vezes nas Variações Goldberg de Bach, onde o tema é criativamente explorado de todas as formas possíveis. Cada voz que entra tem uma visão diferente, de onde só podemos concluir que há 7 bilhões de diversas perspectivas (ou cegueiras) em nosso planeta. Mas a união de todas elas parece tornar inequívocos os fatos e suas consequências pessoais… Olha, só lendo.
Aleksiévitch escreveu sobre Tchernóbil, sobre a Guerra do Afeganistão, sobre as mulheres remanescentes da 2ª Guerra Mundial e sobre o fim do homem soviético. É claro que é muito combatida em seu país e na Rússia, pois seus temas são sempre as pessoas comuns sofrendo sob o Leviatã. Mas não é surpreendente que agora vá escrever sobre o amor, porque o afeto, além da radiação, é onipresente como pano de fundo de Vozes.
Recomendo fortemente e nem precisaria. Afinal, sei de nove amigos que estão lendo o livro nestes dias. Svetlana Aleksiévitch diz que sua pátria é a Bielorrússia, terra de seu pai e onde viveu toda sua vida, mas que também é ucraniana, onde ela e sua mãe nasceram. Só que sua verdadeira pátria é a grande cultura russa, da qual autenticamente faz parte .
Em 21 de novembro de 1811, Heinrich von Kleist, nascido em 1777, suicidou-se. Tinha 34 anos. Era pobre, estava endividado, sentia-se fracassado. Após sua morte, transformou-se em lenda, aclamado como gênio. Na novela Michael Kohlhaas, Kleist antecipou a seu modo o que seria Kafka. Um século depois, Kafka fazia leituras públicas de trechos da novela.
A história deste livrinho — Kohlhaas tem aproximadamente 105 páginas — tão difícil de encontrar no Brasil é simples. Michael Kohlhaas é um negociante de cavalos que necessita passar pela propriedade do junker von Tronka com alguns animais. Mas lhe pedem um salvo-conduto para que possa atravessá-la.
Kohlhaas, pessoa de indiscutível retidão e obediência às leis, desconfia de uma invencionice, mas deixa dois animais como garantia. Dias depois, ao retornar a fim de retirar seus cavalos, vê que estes estão magros e maltratados. Indignado, decide que só os aceitará de volta quando estiverem nas condições em que os deixou. A partir da negativa de von Tronka em alimentar os animais, Kohlhaas passa a perseguir obsessivamente um único objetivo: fazer com que seus animais sejam devolvidos no estado em que foram deixados. A grandiosidade do texto e de suas implicações religiosas, de direito e de poder, além da discussão filosófica e metafísica, é impossível de abarcar uma simples resenha. (Não esqueçam do link acima).
A solidão de Kohlhaas e sua necessidade interna de justiça são avassaladoras. Mesmo utilizando fundamentos jurídicos simples, justos e perfeitamente claros, Kohlhaas vê-se cada vez mais impossibilitado de chegar à lei em razão das negativas e das amizades de von Tronka, das oscilações do direito e das relações do poder. Então, procura fazer justiça por si mesmo. Arma uma espécie de grupo guerrilheiro versão século XVI; invade cidades em busca de von Tronka e da justiça; desafia governos; chega ao ponto de entrar nos aposentos de Martinho Lutero a fim de discutir o caso. O diálogo de ambos é brilhante. Kohlhaas afirma que desistirá do caso se Martinho Lutero assim o desejar. Lutero chama-o de louco mas desiste de pedir a Kohlhaas que pare após ouvir seus argumentos. Para Kohlhaas é fundamental viver numa terra onde seus direitos estejam assegurados.
Não pensem que a novela restringe-se ao social. Ela é sociológica e ontológica. A psicologia e as justificativas de Kohlhaas para punir com as armas quem se interponha entre ele e a lei são esmiuçadas por Kleist. Em certos momentos, desejamos auxiliar o criminoso a encontrar o desonesto von Tronka e minuciosamente matá-lo… A vingança é desproporcional? Kohlhaas poderia muito bem alimentar seus cavalos e esquecer o pleito? Pois é.
Pelo amor exacerbado à lei, torna-se ladrão e assassino. Este livro — que deveria constar nos Cursos de Direito — me fala muito de perto e talvez este sentimento possa ser compartilhado por vários de vocês. A narrativa de Kleist é vertiginosa e guarda pouca relação com o verboso romantismo. É romântica pelo idealismo, nunca pelo palavreado inútil. A narrativa tem a obsessão e o ritmo de Kohlhaas. Kleist conta a história em linha reta, sem tergiversões ou divagações. É um legítimo pré-Kafka. Agora, por que há tão poucas edições no Brasil? Ah, meu amigo…
Gostei muito do filme argentino Paulina. É oportuníssimo, ainda mais após o estupro coletivo que ocorreu semanas atrás no RJ. Paulina é filha de um conceituado juiz. Advogada militante, com um suposto “futuro brilhante na carreira”, ela decide abandonar os estudos para dedicar-se a um trabalho como professora no interior da Argentina. Diz que a situação é temporária. Sabe que isto pode lhe custar alguns anos de carreira, mas o idealismo a leva inevitavelmente em direção ao projeto. Ela vai, mas logo nos primeiros dias é atacada e estuprada. O primeiro ponto polêmico são os velhos argumentos machistas levantados durante a investigação policial, e apontados de forma clara pelo excelente diretor Mitre, como o questionamento sobre que roupa Paulina estava vestindo… O segundo é que a advogada descobre que não sabe manejar seus alunos. Na verdade, é surpreendida pelo comportamento deles. O terceiro é que ela mantém suas convicções e vai em linha reta. “Quando os envolvidos são pessoas pobres o Judiciário não procura justiça, mas sim culpados.” Creio que o único problema do filme é a própria Dolores Fonzi, a atriz que faz Paulina e que tem belos olhos, mas que, a partir de determinado momento, não parece mais movida por seus ideais e sim pela birra. Ela é muito inexpressiva e calada para uma militante que vai a campo, acho eu. Mas tal fato torna o filme ainda mais desconcertante e digno de discussão. Mais uma joia argentina.
Paulina é um remake. Aqui está o filme de 1960. Também argentino, com o mesmo título original (La Patota) e igualmente um filmaço. Mirtha Legrand, a Paulina de 1960, parece fazer uma atuação “mais inteira” do que Fonzi. O trabalho do diretor Santiago Mitre é excelente, mas, afora este fato, é útil para sairmos discutindo a questão. É impossível não falar sobre o filme após a sessão.
Beleza e tristeza (1964) conta a história de Oki Toshio, um escritor japonês que busca uma amante do passado, Otoko Ueno, agora uma artista plástica. O romance tem um plot absolutamente comum e um desenvolvimento surpreendente. Logo nas primeiras páginas, ficamos sabendo que, no passado, Oki tinha 31 anos e sua amante era uma adolescente de 16 anos. Ela engravidou, porém a criança não sobreviveu ao parto prematuro e ao sórdido hospital escolhido por Oki para esconder o caso. Depois disso, ele se mantivera fiel à esposa e agora, aos 55 anos, desejava rever a ex-amante, sobre a qual escrevera um livro bastante culpado, franco, apaixonado e constrangedor para todos, seu maior sucesso. O interessante do livro é que a reconciliação parece ser impossível e, desta forma, os protagonistas permanecem inertes em suas vidas. Ambos parecem ter desejo na reconciliação, mas Oki vai ficando com a esposa e Otoko com a amante, a bela Keiko. Mais ativos são os coadjuvantes, que criam grande tensão dramática. A ameaçadora personagem de Keiko é uma grande criação de Kawabata (1899-1972), Nobel de 1968. Ela tem por vezes comportamentos amorais e seus planos de vingança contra Oki são perturbadores. Kawabata narra tudo com absoluta serenidade. Não é seu melhor livro, mas é um excelente romance.
“Os dias deslizam como se fossem líquidos. Não tenho mais cadernos onde escrever. Também não tenho mais canetas. Escrevo nas paredes, com pedaços de carvão, versos sucintos. Poupo na comida, na água, no fogo e nos adjetivos.”
Tive minha atenção chamada para este livro de José Eduardo Agualusa em função da shortlist do prêmio literário britânico Man Booker International, que premia o melhor livro lançado no ano anterior em língua inglesa, incluindo as traduções. Ele ficou entre os seis melhores de 2015. Uma lista absolutamente entusiasmante, segundo o The Guardian. Este livro de Agualusa é de 2012, mas foi traduzido para o inglês apenas no ano passado.
Teoria Geral do Esquecimento conta a história de Ludovica, ou Ludo, uma portuguesa que vive em Angola em 1975. Quando ocorre a independência do país, ela se vê sozinha sem saber o que aconteceu à irmã e ao cunhado, com quem mora. Eles, como tantos outros, somem. E ela se isola de forma inusitada, evitando que seu enorme apartamento seja invadido. Para conseguir isso, ergue uma parede que a mantém fechada em casa durante 28 anos. De forma distorcida, porém estranhamente clara, o que acontece em Luanda, capital de Angola, ainda lhe chega. Bela parábola, Teoria Geral do Esquecimento é um romance sobre a sobrevivência, o medo do outro, o racismo e a xenofobia, tudo isso milagrosamente condensado. A violência da Guerra Civil — que durou de 1975 a 2002 — não está ausente do livro.
O curioso é que Agualusa concebeu este romance para ser filmado. O filme nunca saiu, mas o romance-filme pode ser pressentido, tanto em seu conteúdo como na forma que monta seus personagens em cenas sem nexo aparente num primeiro momento. Essas histórias aparentemente isoladas, no caos de uma guerra civil, vão se unindo. Cada capítulo amarra um ponto a outro, construindo relações e uma história de poesia dura e sensível. Tudo acaba num vaudeville que não pretendo contar… A impressão causada é espantosa. Apesar de tecido sobre as dores, a violência e o preconceito de uma guerra, é um romance leve, um livro que poderia ter sido escrito no Brasil, se tivéssemos Agualusas por aqui.
Recomendo.
“Não se atormente mais. Os erros nos corrigem. Talvez seja necessário esquecer. Devíamos praticar o esquecimento.”
Este livro me foi indicado após a leitura de Mr. Gwyn, romance do mesmo autor e do qual tinha gostado muito. Mas gostei menos deste Seda, apesar da história ampla, interessante, contada num estilo de minicontos com trechos que se repetem como numa fábula. A história narra a trajetória de Hervé Joncour, morador de Lavilledieu, uma cidade francesa cuja economia floresce, na metade do século XIX, com a produção de seda.
Joncour compra e vende ovos de bichos-da-seda. Ele mora com a amada esposa Hélène em Lavilledieu numa casa confortável. Só que uma praga dizima os bichos-da-seda do Mediterrâneo e cria-se a necessidade de comprar o produto num local onde a praga não chegou: o Japão. Baldabiou — o mais rico de todos os fabricantes de seda — pede-lhe que vá ao país do sol nascente buscar os ovos.
O paradoxo do livro está no homem de vida rotineira transformado em aventureiro. Ele vai ao Japão quatro vezes. Leva meses em cada uma das viagens. Vai de trem, cavalo e em navios de contrabandistas. Nas viagens que faz ao Japão para comprar o produto, abre-se um mundo novo para aquele crasso europeu. Lá, ele vê uma bela mulher de rosto ocidental e passa a ter um segundo motivo para viajar. Quer revê-la e sentir seu toque de seda. Mas volta pelos negócios e, fundamentalmente, porque não consegue esquecer a linda voz de sua mulher na França.
Foi com esse livro que Baricco ficou famoso, mas, sabe?, faltou poesia. Como em Mr. Gwyn, mais uma vez Baricco procura “um modo exato de estar no mundo” para um personagem seu. Esta é a poesia maior do livro. E talvez de todos nós.
Dia desses, o Luís Augusto Farinatti deu uma bela lida em algumas contos que escrevi. E fez uma limpeza geral. Rejeitou, por exemplo, tudo aquilo que era cronístico. Eu concordei com ele. Agora, lendo os 17 contos deste livro de João Ubaldo Ribeiro, pensava na avaliação que o Farinatti faria da maioria deles. Este livro tem duas pequenas joias e muitos contos que estão mais para a crônica. Nada casualmente, Ubaldo colocou as duas joias assim: uma para a abrir o livro e outra para fechá-lo.
Livrinho descompromissado, Já podeis da pátria filhos conta histórias dos habitantes da ilha de Itaparica, mas de vez em quando os personagens apenas passam como sombras adjacentes à boa prosa do bom Ubaldo. São histórias de pescadores exagerados, festas de debutantes, turistas assanhadas, meninos brincando de médico, políticos corruptos e jogadores de futebol amador.
Ubaldo é bom escritor, subverte com brilhantismo a língua culta, mas não adianta ser bom cantor sem boa música. A história inicial, que conta as prerrogativas de um boi garanhão e a final, sobre o menino que acompanha o pai no sacrifício de uma porca e procura se manter firme, são excelentes, mas tão curtas que podemos lê-las em pé, enquanto “examinamos” o livro numa livraria.
É complicado escrever uma simples resenha de todo um mundo. Pois o que Dostoiévski realiza em Os Irmãos Karamázov é exatamente o que Mahler pretendia fazer com suas sinfonias, colocar todo um mundo dentro delas. Acredito que ambos tenham conseguido.
Há vários planos de leitura do livro. Pode-se ler os Karamázov como um romance de suspense — quem matou o velho Fiódor? –, ou filosófico — o capítulo do Grande Inquisidor, Deus, os problemas morais –, ou psicológico — o parricídio, os vários conflitos, o duplo de Ivan e Smerdiakóv, as várias interpretações dos pensamentos dos personagens. E, céus, deve haver outro planos de leitura para este tremendo romance. Mas vou tentar um mínimo de organização.
A ideia de criar este drama ocorreu a Dostoiévski em 1874, mas o leitmotiv foi-lhe dado ao acaso, cerca de trinta anos antes. Quando preso na Sibéria, Dostoiévski tinha um colega chamado Ilinski, Dmitri Ilinski. Alegre, fanfarrão, sempre despreocupado, ele negava ter sido o autor do crime pelo qual estava na prisão: Ilinski teria assassinado o próprio pai, Nikolai. A história é a seguinte: numa pequena cidade russa, pai e filho se detestavam, brigavam publicamente, não sentavam na mesma mesa, etc. Para piorar, o filho bebia e estava sempre metido em discussões e lutas físicas, além de ser perdulário. Devia para meia cidade e era detestado. Para piorar, o amigo de Dostô tinha avisado a todos na cidade que mataria o pai na primeira chance que tivesse. O pai chamava-lhe de facínora, não lhe dava mais dinheiro e fazia de conta que ele não existia. Um dia apareceu morto, assassinado, mas Dmitri negava o crime, apesar de tudo o que dissera antes. Dostoiévski logo saiu da prisão em episódio bem conhecido. Acreditando na inocência de Dmitri, o escritor ficou com a história trabalhando em sua cabeça. Quinze anos depois, descobriu-se o verdadeiro assassino e Dmitri Ilinski foi libertado. Durante todo este tempo Dostoiévski mantivera-se informado. A inspiração é claríssima, tanto que nos primeiros manuscritos do romance, Karamázov é chamado várias vezes de Ilinski. O escritor pediu que o erro fosse corrigido.
O conflito pai x filho é explorado sob diversas formas no romance. Se o centro do romance é o amor e ódio entre o velho Fiódor e o filho mais velho, também há conflitos mais silenciosos entre o velho e Ivan (o segundo filho) e entre o velho e o suposto filho bastardo Smerdiakóv. Lendo-se os romances anteriores de Dostô, vê-se que as personalidades de todos vinham sendo formadas há tempo. É fácil ver paralelos na natureza dos personagens de diferentes obras do autor: o terceiro filho Aliocha Karamázov e Grúchenka com o príncipe Míchkin e Nastácia Filippovna (de O Idiota), Ivan Karamazov com Raskolnikov (de Crime e Castigo), o starietz Zossima com Tikhon (de Os Demônios).
Apesar da indiscutível qualidade de todos os grande romances de Dostoiévski, Os Irmãos Karamázov tem uma grandiosidade inalcançável. É um enorme painel russo, psicológico e político, trabalho maior da vida de um escritor genial. Com vida própria — separadas do autor — ali estão suas memórias de infância ligadas às reflexões e experiências dos últimos anos. As imagens dos irmãos Dmitri, Ivan e Aliócha — assim como a do bastardo Smerdiákov, espécie de duplo de Ivan — talvez simbolizem diferentes estágios de desenvolvimento espiritual do autor. O romance tem uma estrutura complexa, multidimensional, de gênero difícil de definir. São eventos que ocorrem em apenas duas semanas, mas nesse curto espaço de tempo se encaixam tantas histórias, disputas, conflitos e confrontos ideológicos, que estas seriam suficientes para vários romances de suspense, obras filosóficas, crônicas familiares ou dramas domésticos.
Há duas longas e compreensíveis interrupções na narrativa. A primeira serve para que Dostoiévski (ou Ivan) escreva aquele que talvez seja o melhor capítulo da literatura de todos os tempos. Trata-se do momento em que Ivan, num bar, narra para Aliócha a Parábola do Grande Inquisidor. Jesus retorna à Terra, mas o Grande Inquisidor, na pessoa de um velho bispo de 90 anos, argumenta que sua vinda é inútil e que agora ele só atrapalharia a Igreja. E condena-o à fogueira. (Este resumo chega a ser uma gozação, tal a riqueza do texto). O segundo serve para que Aliócha conte a história de seu mentor Zossima.
A ação principal do romance está na relação entre o velho Fiódor e Dmitri. O whodunit é “Quem matou o velho Fiódor?”. E todos são desvairados, desesperados e negligentes com a verdade e a moral. Todos os personagens parecem meio loucos. A família Karamázov é apaixonada e violenta. O pai Fiódor e Dmitri amam a mesma mulher. Dmitri acha que o pai lhe deve a herança da mãe. Ambos são lascivos, rivais e imprevisíveis. Dmitri é um paradoxo. Incapaz de se controlar, tem grande dignidade pessoal e é cheio de justificativas. Ao contrário de seu pai, um cínico, Mítia visa os mais altos ideais. É dotado daquela tal alma russa que o leva a picos e a abismos como um ioiô. Dmitri Karamázov briga e cita Schiller. Quando preso sob a acusação de assassinato, pensa no sofrimento dos outros e chora.
Ivan não é nada disso. Inteligente e profundo, é um filósofo centrado nos problemas mais irreconciliáveis da existência humana: a natureza de Deus e a ideia de permissão. Intelectual ateu, parece ter dentro de si um conflito permanente entre liberdade e autoridade. O Grande Inquisidor não está relacionado com a trama principal da novela. No entanto, sai de Ivan esta que é a parte mais importante do ponto de vista das ideias contidas no livro.
Aliócha é supostamente o herói do romance. Vivia num mosteiro, mas foi mandado para o mundo. Profundamente religioso, tudo compreende e passa o livro correndo de um lado para outro, tentando conciliar todos. Sem ele, o livro não existiria. É um personagem meio picaresco — vai de um lugar a outro e é uma espécie de informante de todas as tramas paralelas do livro. Acaba conseguindo conciliar apenas um grupo de crianças no belo final do romance.
Uma questão central na abordagem do romance é notar que as ideias do autor estão muito bem escondidas. As célebres citações que o livro contém foram todas rejeitadas por Dostoiévski ainda em vida. Quando lhe atribuíram algumas citações, Dostô respondeu simplesmente que não as assumiria: “Não sou eu quem diz isso, é Ivan. A linguagem é dele, o estilo é dele, o pathos é dele e não meu. Além disso, ele é muito jovem”.
No mundo criado por Dostoiévski, a Rússia e o mundo aparecem como se fossem o reino dos Karamázov. A noção da complexidade e da desorganização das relações talvez nunca tenha ficado tão clara como neste romance. Ninguém é confiável. A maldade pode explodir a qualquer momento. Todos dizem meias verdades por meio de mentiras. Os atos de uns são conduzidos pelos pensamentos de outros. A espiritualidade cristã é invocada a cada momento, mas sucumbe às necessidades tirânicas de felicidade terrestre, à sensualidade e ao álcool.
Numa frase, não dá para não ler.
P.S. — A tradução de Paulo Bezerra é incontornável. Se hoje você ler outra edição em português, não estará tão próximo do original.
A Dançarina de Izu (1926)é uma novela autobiográfica de Yasunari Kawabata (1899-1972), Nobel de 1968. O tema é simples, simplíssimo. Um estudante de 19 anos, de férias, faz uma viagem a pé à península de Izu, a oeste de Tóquio. Hospeda-se em alguns albergues familiares e, de aldeia em aldeia, conhece uma trupe de artistas saltimbancos. Um dos membros desta trupe é uma menina chamada Kaoru, de treze anos, uma dançarina. Ele fica deslumbrado por ela e faz amizade com o grupo, viajando com eles. Quando as férias acabam, ele volta para sua cidade. Nada acontece de carnal, pouco é dito, não há nenhum avanço, apenas o encanto de um amor impossível.
Novela de apenas 60 páginas de grande arte, poema de dolorida singeleza, A Dançarina de Izu faz da solidão e da sexualidade velada preciosa matéria-prima. Um belo livro onde vai surgindo algo que seria vulgar chamar de paixão ou mesmo de amor. Talvez a melhor palavra seja desejo de aproximação ou admiração. Na década de 1920, livre do mau gosto e das maldições do moralismo politicamente correto, Kawabata demonstra que o pudor pode ser um sentimento superior. O estudante desconhece a consequência do que sente pela menina e nem tenta cristalizar ou declarar algo, preferindo a fugacidade. É bonito, sensível, bonito e bonito.
No evento da foto abaixo, estivemos eu, a autora de Vermelho-goiaba Alexandra Lopes da Silva e mais Camila von Holdefer e Laila Ribeiro. O tema da discussão era a crítica literária (in)existente hoje. E tanto a Camila como a Laila disseram que era complicado escrever sobre autores locais porque eles reagiam às vezes agressivamente, perdia-se amigos, tinha-se que andar com cuidado pelas ruas, etc. Isto é mais ou menos verdade, garanto-lhes, mas não creio que a gentil Alexandra vá tentar furar meus olhos com uma caneta Bic na rua. Até porque gostei de seu pequeno livro de contos (86 páginas), lido ontem durante os intervalos do dia e já ostentando algumas páginas sujas de café.
Já que é quase feriadão, vamos a uma gonzo-resenha. A primeira qualidade da coletânea é a variação de narradores e estilos, dando-nos a impressão de uma escritora desalojada do próprio umbigo, qualidade rara entre jovens escritores. No início da leitura, a constante referência a animais de estimação e a outros bichos me incomodou um pouco. Amo os cães e estava achando que as histórias com cachorros fossem um golpe baixo. Porém, a música caótica dos excelentes contos Almôndegas e Instantâneos acabou por assentar o estilo de Alexandra na minha cabeça. Celebração me pareceu desnecessário — quase uma introdução de um romance talvez inexistente–, mas a sequência formada por Águas Brancas, A panelinha de alumínio e A natureza invade sua casa me deixaram muito feliz.
São 3 contos muito bem realizados e, para mim, evocativos. (Avisei que hoje acordei informal e gonzo?). Águas lembrou minha mãe e sua dificuldade em nomear as coisas ao final de sua vida. Pedi muito que ela me contasse fatos de nossa pequena família, mas a mera tentativa de organizar seus pensamentos a fazia parar. Ocorre o mesmo com a personagem de Alexandra, o que me deixou muito pensativo. Foi neste momento que derramei café no livro. A panelinha de alumínio é cheio de reviravoltas e surpresas muito bem realizadas. O inesperado machismo do descolado personagem principal — que perturba-se com a evolução profissional da mulher — é abordado com saboroso humor por Alexandra. Grande final.
Também excelente é A natureza invade sua casa, onde uma contra-traição é montada a partir de uma suposta descoberta e de fatos corriqueiros. Dei risada pensado que quem faz a dedetização em minha casa é um velhinho de uns 70 anos que vem sempre com sua mulher. Disse que fiquei feliz e é verdade. Acabei o dia cantarolando Deixa a Menina, do ontem atacado Chico Buarque. Ou tire ela da cabeça / Ou mereça a moça que você tem.
Eu estava relendo Dançar tango em Porto Alegre quando cruzei com Sergio Faraco numa livraria. Não sou exatamente um amigo seu, mas, certa vez, participamos de um jantar e nos colocaram juntos. Ele me reconheceu e pareceu que recomeçamos a conversa do ponto onde a tínhamos parado há dez anos. Eu disse logo que estava lendo novamente o Dançar tango e voltei a elogiar uma das obras-primas do pequeno volume de dezoito contos: Guapear com frangos. Disse a ele que era o maior conto já escrito por um escritor gaúcho. Estava sendo sincero. Ele me agradeceu e respondeu: “Sabe que eu gosto mais do conto seguinte, O Voo da Garça-Pequena?”. Na verdade, os dois são perfeitos e muito diferentes.
Faraco me disse que se esforça muito e que, quando publica, publica o melhor que pode. “deve dar para melhorar, mas além daquilo eu não consigo”. Depois, enveredamos por outras conversas mais seculares e ele arriscou até umas frases em russo para a Elena.
Em Guapear, alguns homens, gente das fazendas próximas à fronteira com a Argentina, procuram o corpo de um companheiro que se aventurou a uma travessia do Rio Ibicuí e morreu afogado. Depois de dois dias de busca, ele é encontrado. Os homens decidem se o enterram ali mesmo ou se o carregam até a cidade para uma cerimônia formal. Decidem que têm a “obrigação de não deixarem corpo do amigo sem velório”. Cabe a López levar o corpo já em decomposição. O conto é a luta para carregar o corpo. Contra a intenção de López vai toda a natureza. O corpo fede e é continuamente atacado por animais.
Já O Voo é delicadamente feminista. Maria Rita largou o marido que lhe batia para prostituir-se. Mas não é uma qualquer, tem ideias e encomenda um rádio a um contrabandista. Ele se sente atraído por aquela mulherinha minga, delgada, figurinha que a natureza regateara em tamanho mas caprichara no desenho. Ela lhe conta que há mulheres doutoras trabalhando em hospitais e até dando discursos. Quer o rádio para ouvir as notícias do mundo. E o homem vai mudando lentamente seu interesse do sexo para a pessoa dela. É uma história realmente belíssima e uma grande realização de Faraco — canção e cantor no mais alto nível.
Os contos estão divididos em três partes. A primeira é a das histórias que acontecem na paisagem rural fronteiriça do Rio Grande do Sul. Creio que tais histórias estejam localizadas temporalmente na primeira metade do século XX, quando a modernização começa invadir os hábitos da região. A segunda fala do final da infância, colocando o foco nas experiências emocionais da adolescência e da iniciação sexual. Por último, há os contos sobre o indivíduo que, melancólico, pobre e solitário, não se adapta ao espaço urbano.
Penso que os clássicos estejam na primeira e terceira partes. Além dos contos citados — ambos da primeira parte –, temos A Dama do Bar Nevada e Aceno na Garoa, histórias de bondade mal compreendida, e Dançar tango em Porto Alegre. Mas nenhum dos outros contos são esquecíveis.
É brasileiro? Então tem que ler. Faraco foi tocado por Erico e Cyro, mas recebeu uma curiosa pitada de Rosa. Em resumo, resulta que Faraco é Faraco mesmo.
Fahrenheit 451 (1953) é um livro mais famoso do que bom. O filme de Truffaut, realizado em 1966, ergueu demais uma obra apenas média. E olha, acordei indulgente hoje. Sei que Bradbury finalizou o romance apenas oito anos depois da Segunda Guerra Mundial, vinte anos depois que começaram os incêndios de livros na Alemanha Nazista e no ano da morte de Stalin, quando várias ditaduras floresciam pelo mundo com o aval dos EUA e da URSS. Também havia censura em quase todos os países do mundo, principalmente nos EUA, com o macartismo perseguindo todo e qualquer desvio, desrespeitando os direitos civis. Só que qualquer romance, quando publicado, deve prescindir ou acrescentar coisas a seu contexto, não deve se apoiar no mesmo. O romance pode ser quente, mas é sem sal. Em seu filme, Truffaut melhorou bastante a história do filme, colocando em seu roteiro vários temperos de criatividade. Já o romance de Bradbury é forçado.
Guy Montag é um bombeiro cujo trabalho é o de queimar quaisquer livros, assim como as casas que os abrigam. Adicionalmente, persegue e mata as pessoas que os detêm. Uma noite, voltando de seu trabalho, ele encontra sua nova vizinha, Clarisse McClellan, cujo espírito questionador o estimula a reconsiderar seu próprio estilo de vida, seus ideais e sua noção de felicidade. As conversas pré-hippies que eles têm não mudariam a vida de ninguém, mas Montag enlouquece. Muito mais chocante é o problema de saúde de sua esposa e o suicídio de uma mulher que se auto-incinera com seus livros em meio a uma ação dos bombeiros. O curioso é que, no mesmo dia do suicídio desta mulher, Montag remexe os livros de sua pequena biblioteca domiciliar… De onde saíram aqueles livros? Como é que não sabíamos disso? São pré ou pós Clarisse? E o chefe dos bombeiros, Beatty? Por que ele faz citações literárias pelos cotovelos a fim de demonstrar a inutilidade dos livros? Deve ler muito para ser tão culto.
Depois, quando Montag foge para um dos acampamentos de homens-livros, acontece a inacreditável guerra nuclear seletiva de Bradbury, que parece só destruir aquela sociedade efetivamente terrível. Os homens-livro veem a bomba e não se preocupam com a radiação. Tal tom otimista — o da aniquilação daquela sociedade — é assassinado pela inverossimilhança da coisa. Nem Spielberg ousaria cometer um final daqueles.
O final de Truffaut é muito mais poético. É, na verdade, lindo. Pô, Bradbury, que livrinho ruim.
Estou lendo Fahrenheit 451 pela primeira vez. Como encontrei muitos pontos de contato entre este livro de Ray Bradbury e 1984, de George Orwell, fui dar uma pesquisada por aí. O texto abaixo é uma compilação bem simples do que encontrei em vários sites.
1984 foi publicado em 1948, Fahrenheit 451 em 1953. Os dois romances são obras de ficção distópica e ambos os personagens principais, no início, levam uma vida sem graça, sem sentido. Porém, um dia, uma mulher aparece e eles acabam por se rebelar contra as sociedades em que vivem.
Do ponto de vista individual, o personagem Guy Montag (de Fahrenheit 451) acaba vencendo sua guerra. Vi o filme e sei que ele conseguirá se livrar do controle governamental e encontrar a paz numa comunidade de pessoas afins. Já Winston Smith (de 1984) perde, sendo submetido a uma lavagem cerebral.
Em ambos os romances, há a ideia de uma sociedade cruel, onde (em Fahrenheit 451) as crianças atacam as pessoas e dão tiros umas nas outras para se divertirem. Já em 1984, há cenas como as de “um navio cheio de refugiados sendo bombardeado” que são utilizadas para diversão.
Os dois livros envolvem guerras como pano de fundo, mas de naturezas diferentes. A guerra de Orwell serve claramente ao governo como um instrumento para a perpetuação da escassez e da paranoia, enquanto que a de Bradbury visa a aniquilação total do inimigo.
O governo em 1984 depende muito de lavagem cerebral e de políticas que envolvam vigilância em massa por parte de espiões semelhantes aos da Juventude Hitlerista. Em suma, o partido parece se preocupar mais com os pensamentos, do que com os atos. “Você é um traidor”, acusam. O governo de Bradbury mantém o controle sobre todos aqueles que se desviam da maioria, mas não se importa muito com as ideias de rebelião. O professor Faber é um inimigo que não age, então OK. Há uma tentativa de idiotizar todo mundo através da televisão. Em vez das torturas presentes nas lavagens cerebrais de Orwell, o governo de Bradbury gosta de queimar as pessoas que se desviam, assim como os livros, considerados altamente perniciosos.
As atmosferas: 1984 também pode ser considerado um romance satírico, enquanto Fahrenheit 451 jamais.
O cenário de ambos é o de uma pós-guerra nuclear. Um diz “Quando a bomba atômica foi lançada sobre Coventry”, e outro “Nós começamos e ganhamos duas guerras atômicas desde 2022”. Os efeitos de tais guerras são muito diferentes. Nos EUA de Fahrenheit 451, o país saiu de duas guerras e vai para uma outra. Algumas de suas cidades “parecem com pilhas de fermento em pó”. Porém, em 1984, o conflito nuclear fez cessar qualquer uso de armas atômicas e assegurou a permanência de ditaduras estáveis. No universo de Orwell há enormes “fortalezas flutuantes” para defender áreas estratégicas (“a nova fortaleza flutuante ancorada entre a Islândia e as Ilhas Faroe” ) e projetos incríveis de produção de terremotos artificiais.
Em 1984 não há nada que esteja fora da visão do governo. Ele tudo vê e tudo sabe. Já em Fahrenheit 451 há uma nova revolução silenciosa acontecendo fora da visão do governo. Aliás, o governo permanece em grande parte um mistério em Fahrenheit 451, mas, em 1984, sua estrutura é bem explicada. Na verdade, o funcionamento interno dos governo sob o qual Smith vive é a chave para o enredo do livro.
Os dois livros têm muitíssimas semelhanças, mas, curiosamente, estas não persistem após um exame mais minucioso de detalhes. Dentre os clássicos, temos também Admirável Mundo Novo, claro, mas este está realmente perdido em minha memória. Já A Guerra das Salamandras… Bem, aí entramos no campo das obras-primas e há que ter mais respeito.
Kawabata é um escritor suave, sem pressa. Seus romances se aproximam bastante da poesia e as interjeições não lhe caem bem. Pouca literatura vem com menor aparato de brilho e as histórias são montadas através de delicadas pinceladas que vão acrescentando informações a um mosaico cujas lacunas podem ser preenchidas pelo leitor. Kyoto, romance de 1962 de Yasunari Kawabata (1899-1972), escrito logo depois de A Casa das Belas Adormecidas, conta a história de Chieko, uma jovem que observa a ocidentalização e a mudança de costumes do Japão do pós-guerra. Ela assiste a lenta falência da loja de sua família e de outros estabelecimentos comerciais da antiga capital japonesa que vendem peças do vestuário tradicional do país. Mas o romance não tem apenas fundo econômico. Abandonada quando bebê, Chieko é uma filha adotiva que, num passeio pelo interior, na aldeia de Kitayama, encontra acidentalmente sua irmã gêmea Naeko, desde a infância criada em ambiente muito diverso do seu. Enquanto Chieko teve uma formação tradicional, Naeko é mais madura em razão da simplicidade da vida e do trabalho no campo. As duas irmãs tentam uma aproximação.
Como de costume, evitarei contar o final, mas o contraste entre as irmãs gêmeas — a tradicional e a trabalhadora — provavelmente simboliza o conflito entre a cultura tradicional e a modernização do Japão na época do pós-guerra. Kawabata joga poesia sobre a desfiguração irreparável da antiga capital do Império do Sol Nascente em um romance sóbrio.
Muito bom, mas, para quem não conhece o autor, acho melhor ler antes A Casa das Belas Adormecidas.
De forma muito pouco séria, o romancista britânico Nick Hornby encorajou as pessoas a queimarem em uma fogueira os livros complicados que se instalam em nossa mesa de cabeceira como parasitas porque seu leitor é incapaz de lê-lo, mas não quer admitir a derrota. “Cada vez que continuamos lendo sem vontade reforçamos a ideia de que ler é uma obrigação e a internet é um prazer”, afirmava, em um elogio da leitura como atividade hedonista.
Depois que Hornby expressou essa posição, muitos fóruns discutiram quais títulos são os mais indigestos, em mais uma versão do eterno debate sobre se as pessoas leem obras complicadas para poderem dizer que as leram, não pelo prazer de lê-las. O romancista britânico Kingsley Amis disse em seus anos de maturidade que a partir de então, com pouco tempo de vida pela frente, só leria “romances que começam com a frase: ‘Escutou-se um disparo’”. Talvez o pai de Martin Amis tenha exagerado (as memórias de seu filho, nas quais tanto o ataca, têm quase 500 páginas), mas são muitos os que opinam que “a vida é muito curta para ler livros muito compridos”.
Só para encher o saco, vou dar minha contribuição à lista. Trata-se de um livro que infelizmente li, mas teria sido melhor para mim se ele tivesse criado teias de aranha em meu criado mudo.
O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil
O Homem Sem Qualidades é um horror. Para começar, é um romance inacabado de mil páginas. Para piorar, não focaliza nenhum tema específico. Apesar de possuir alguns personagens — tem até um personagem principal, o matemático Ulrich — o livro quase só fala e fala e fala sobre o valor da verdade e da opinião. Também discorre lenta e antiquadamente sobre como a sociedade organiza suas ideias. Não é um romance, obviamente, mas seus admiradores costumam chamá-lo de romance filosófico. É mais ou menos como o jazz: quando na música aparece alguma coisa muito estranha que possa ter qualidades, melhor chamá-la de jazz. Classificar, mesmo arbitrariamente, é tranquilizador.
O caudaloso O Romance Sem História tem três partes. A primeira chama-se de “Uma espécie de introdução”, e é uma longa exposição do protagonista, o chatíssimo Ulrich. Tal exposição é como tomar banho de sol em Tramandaí, sob sol escaldante, e dormir. Sem sucesso, o protagonista busca um sentido para a vida e para a realidade. Sua indiferença à vida e sua flexibilidade moral o transformam em um ‘homem sem qualidades’. Imaginem que nem a ninfomaníaca Bonadea, amante de Ulrich, tem graça. Sabem como se chama a segunda parte do calhamaço? Chama-se “A mesma coisa acontece”. Olha, é de cortar os pulsos. Pura automutilação cerebral.
Mas eu li tudo, provando que tenho forte componente masoquista. A terceira parte chega a ter certa beleza literária. É quando aparece Agathe, a irmã de Ulrich. Os dois irmãos têm um encontro de caráter poético e surreal, quase incestuoso. Eles se consideram ‘almas siamesas’, mas aí já é tarde para salvar o naufrágio, ainda mais que o comandante foge do navio, deixando-o inacabado.
Sim, O Homem Sem Qualidades é considerado uma das principais obras do modernismo e um dos mais importantes da literatura alemã do século XX. Foi incluído na lista “Os 100 livros do século” do jornal Le Monde e na lista dos 100 melhores livros de todos os tempos, segundo The Guardian. Que vão à merda.
(*) A primeira parte deste artigo se baseia num artigo de 2014 do El Pais.
Por meses fui recebendo, quinzenalmente, capítulo por capítulo, este livro de Arthur de Faria. A razão disso é o fato de que o Sul21 estava publicando uma coluna do autor sobre a música de Porto Alegre. (No caso de Elis, uma música de localização indefinida, cujo espaço de influência foi muito além de Porto Alegre). Como contrapartida, arcávamos com o custo irrisório da revisão. O esquema era perfeito: ganhávamos um excelente colunista e ele se motivaria a retomar um projeto que estava meio parado. Deu tudo certo. Fomos muito longe no projeto, até que a editora Arquipélago interessou-se por aquele excelente material, especialmente pelos capítulos dedicados a Elis Regina, propondo sua publicação em livro. Então, Arthur pediu-nos que retirássemos do ar esses capítulos — na verdade duzentas e cinquenta páginas de texto –, o que foi feito.
É obvio que guardo uma relação de carinho com o livro. Eu mesmo o publicava pessoalmente, até porque tinha interesse no assunto. Creio até ter feito algumas correções, coisa de erros de digitação, nada demais. Lembro do trabalhão que me dava. Cada texto vinha com umas vinte imagens e outros tantos links. Mas a gente se entendia. Na página 251, dentro dos “Agradecimentos”, Arthur escreve que foi no Sul21 que a versão final foi formatada por ele.
Terminei a leitura do livro ontem. Além de ter achado excelente, cheio de informações exclusivas, tive aquela sensação de inteireza que a leitura quinzenal jamais daria. Recomendo a quem gosta de Elis e de música. Mas se você detestar Elis e odiar música, ainda sobrará uma grande história bem contada.
Surpreendente livro de 1961. Uma extraordinária novela sobre erotismo e morte, velhice e sensualidade. Mas acho melhor colocar logo um verbo nesta resenha… Esta clássica e notável obra do Prêmio Nobel de Literatura de 1968, Yasunari Kawabata (1899-1972) adentra, com grande sensibilidade e delicadeza, o complicado e praticamente ignorado tema do erotismo na idade da impotência ou, para sermos elegantes, da busca pela felicidade após a juventude. Esta obra serviu de inspiração a Gabriel García Márquez para o seu Memória de Minhas Putas Tristes (2004), bem como para a peça de 1983 The House of Sleeping Beauties, de David Henry Hwang. Kawabata criou um estranho estabelecimento. Uma espécie de puteiro onde homens de idade avançada podem passar as noites com jovens mulheres despidas, adormecidas. Sob forte medicação, elas jamais acordam e eles podem examinar cada detalhe de seus corpos, passar-lhes a mão, apalpar seus seios, beijar seus corpos, observar seus dentes, seus ressonares, hálitos e sonhar, relembrando seus passados com mulheres. São mulheres anônimas, escolhidas pela dona da casa e os velhos nunca concretizam o ato sexual, até devido à falta de vigor físico. Eram tempos pré-Viagra e a relação quase contemplativa permite ao autor elaborar densas e poéticas metáforas a respeito da finitude e do caminhar pra a morte. Afinal, a beleza e a juventude não obtêm serem roubadas pelo velho Eguchi, protagonista da novela, mas o contato com elas é consolador e sugestivo, apesar das vontades do velho. Eguchi vai à casa em cinco noites não consecutivas e o que lhe passa pela cabeça é esplêndida e poeticamente descrito por Kawabata, assim como cada gesto e movimento das moças durante seus sonos. Um livro curioso e pervertido, de doce e indecente poesia. Tudo na medida certa, com perfeito bom gosto. Recomendo muito.
Na tarde de 3 de março de 1936, após passar a noite anterior revisando o romance Angústia, Graciliano Ramos entregou o manuscrito para sua datilógrafa, Dona Jeni. Depois, às 19h, foi levado de sua casa, preso. O motivo era a suspeita – jamais formalizada – de que o escritor tivesse conspirado no malsucedido levante comunista de novembro de 1935. Preso em Maceió, Graciliano foi demitido do serviço público e enviado a Recife, onde embarcou com outros 115 presos no navio “Manaus”. O país estava sob a ditadura Vargas. No período em que esteve preso no Rio, que durou até janeiro de 1937, passou pelo Pavilhão dos Primários da Casa de Detenção e depois foi mandado para o presídio de Ilha Grande, onde passou a célebre temporada descrita em Memórias do Cárcere.
“Haviam desencadeado uma perseguição feroz. Tudo se desarticulava, sombrio pessimismo anuviava as almas, tínhamos a impressão de viver numa bárbara colônia alemã. Pior: numa colônia italiana”, escreveu Graciliano em Memórias do Cárcere, referindo-se ao nazismo e ao fascismo que tanta admiração causava ao governo brasileiro. Foi uma época terrível. Ou nem tanto. Afinal, ele esteva preso com Aparício Torelly, o Barão de Itararé, que garantia que tudo ia muito bem… No Capítulo 5 da Segunda Parte do livro, ainda descrevendo o que passou no Pavilhão dos Primários, há a comprovação de que a convivência com o Barão era bem mais efetiva que qualquer autoajuda de nosso tempo:
Apporelly sustentava que tudo ia muito bem [no Pavilhão dos Primários]. Fundava-se a demonstração no exame de um fato de que surgiam duas alternativas; excluía-se uma, desdobrava-se a segunda em outras duas; uma se eliminava, a outra se bipartia, e assim por diante, numa cadeia comprida. Ali onde vivíamos, Apporelly afirmava, utilizando seu método, que não havia motivo para receio. Que nos podia acontecer? Seríamos postos em liberdade ou continuaríamos presos. Se nos soltassem, bem: era o que desejávamos. Se ficássemos na prisão, deixar-nos-iam sem processo ou com processo. Se não nos processassem, bem: à falta de provas, cedo ou tarde nos mandariam embora. Se nos processassem, seríamos julgados, absolvidos ou condenados. Se nos absolvessem, bem: nada melhor esperávamos. Se nos condenassem, dar-nos-iam pena leve ou pena grande. Se se contentassem com a pena leve: descansaríamos algum tempo sustentados pelo governo, depois iríamos para a rua. Se nos arrumassem pena dura, seríamos anistiados, ou não seríamos. Se fôssemos anistiados, excelente: era como se não houvesse condenação. Se não nos anistiassem, cumpriríamos a sentença ou morreríamos. Se cumpríssemos a sentença, magnífico: voltaríamos para casa. Se morrêssemos, iríamos para o céu ou para o inferno. Se fôssemos para o céu, ótimo: era a suprema aspiração de cada um. E se fôssemos para o inferno? A cadeia findava aí. Realmente ignorávamos o que nos sucederia se fôssemos para o inferno. Mas ainda assim não convinha alarmar-nos, pois esta desgraça poderia chegar a qualquer pessoa, na Casa de Detenção ou fora dela.
Angústia foi lançado no mês de agosto de 1936, durante a prisão de Graciliano Ramos. Naquele ano, o autor recebeu o Prêmio Lima Barreto, conferido pela Revista Acadêmica numa atitude encarada como desafiadora do regime.
Escrito após Caetés e São Bernardo, Angústia foi o terceiro romance de Graciliano. Nele, radicaliza-se seu estilo seco e contundente, assim como o foco na produção de uma literatura que una a ética ao fazer literário. Trata-se de um romance de tom confessional que acompanha em primeira pessoa a vida de Luís da Silva, funcionário público de 35 anos, tímido e solitário, que vive num bairro distante em uma casa caindo aos pedaços, acompanhado por ratos e desespero. Da mesma forma que em seus dois romances anteriores, Caetés e São Bernardo, também narrados em primeira pessoa, Graciliano apresenta personagens em grande conflito interno, buscando explicações sobre como agir e motivos para os acontecimentos que o atingem.
Além de trabalhar o dia todo, Luís completa o orçamento escrevendo, à noite, textos por encomenda para um jornal. Após curar-se de uma doença, retorna ao trabalho. Num fluxo de consciência escrito de forma seca e direta, Luís tenta entender seu passado com tamanha fúria que somos obrigados a lembrar que, na verdade, o existencialismo não começou apenas com Sartre, Camus e seus grupos após a Segunda Guerra Mundial.
Luís detestava todos e principalmente a si mesmo. Insatisfeito e pobre, frustra-se por sua vida inútil. Entregando-se à análise de sua vida, repassa-a desde a infância. O avô é um bêbado decrépito; o pai é um preguiçoso que vivia lendo e do qual herdara várias características, como o gosto pelas letras. Porém Luís, em crise, não consegue mais escrever, assediado por estes fantasmas e pela onipresente angústia.
Um dia, conhece a loira Marina. Pede-a em casamento, usando todas as suas economias para um enxoval. Porém, o gordo e eufórico Julião Tavares, com mais dinheiro, ousadia, lábia, posição social e, sobretudo, despreocupação, conquista Marina, que passa a desconhecer Luís. Humilhado, ele passa a desejar a própria morte. Quando vê que Julião abandonou Marina e fica sabendo que ela fez um aborto, cobre-a de ofensas em plena rua. Completa a obra fazendo mais bobagens. Todo o sofrimento e humilhação desaparecem e Luís passa a sentir-se forte, capaz e ativo. Porém, logo volta a angustiá-lo com o temor de ser descoberto. Não vai mais trabalhar, procurando destruir os indícios do que fez. Lava tudo e lava-se. A água tem importante papel no romance; é a purificação que percorre os canos sujos, conhecidos dos ratos. Mas Luís permanece em desvario, aniquilado, sufocado pela angústia, como o Raskonikov de Dostoiévski.
É curioso que um livro dedicado a um profundo estudo da frustração receba tantas homenagens e seja tão festejado. Afinal de contas, falamos de uma obra sem saída, cruel e violenta, cheia de amargura. Por que Angústia é tão importante? Porque é notavelmente bem executado; porque pela primeira vez na literatura nacional há um monólogo interior que parece não dirigir-se a um leitor, mas a si mesmo; porque Luís é muito nordestino, brasileiro e universal; porque comprova brilhantemente a célebre frase de Tolstói: “Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia”. A essência do romance é Luís. Quase não há diálogos e as cenas parecem ser jogadas com certo descontrole pelo narrador, como se transbordassem dele. É um monólogo-pesadelo. “Ninguém dirá que sou vaidoso referindo-me a esses três indivíduos” – disse Graciliano em discurso no jantar de jantar de seus 50 anos, em 1942, referindo-se a seus três primeiros livros — “porque não sou Paulo Honório, não sou Luís da Silva, não sou Fabiano”.
Mas talvez o homem sério e duro que foi Graciliano se envaidecesse da permanência de seu personagem.
Como o diabo gosta é um livro delicioso. Ele já foi O diabo a quatro em 1985 e, radicalmente revisado e ampliado pelo autor, está sendo relançado neste ano em bela edição da Cosac Naify. Merece, e não apenas por estar completando 30 anos. O que talvez não mereça é minha participação de hoje à noite no lançamento da nova edição na Palavraria, batendo um papo com Ernani Ssó. Ainda bem que pretendo falar pouco. Porém, neste momento, peço desculpas ao Ernani, pois aqui no blog quem faz os solos sou eu.
Ernani realizou uma auto-entrevista a la Glenn Gould numa crônica chamada 50 tons de vermelho. O título é chamativo, mas é redutor. Ali, ele começa dizendo que “os resenhistas, como todo mundo nos jornais, trabalham demais, leem os livros correndo, quando leem, e escrevem a toda, sem pensar direito”, o que justifica a entrevista. Ele tem toda a razão, principalmente na necessidade de pensar, tanto que hoje acordei e fiquei matutando sobre como escrever a respeito de um livro do qual gostara muito. O problema é que é mais fácil dizer o que ele não é. Mas vamos ao que ele é.
Numa manhã, Camilo Severo tenta inspirar-se para escrever um romance. Seus pensamentos são interrompidos por lembranças desordenadas. O livro é isso, uma série de capítulos fora da ordem cronológica, às vezes escritos na primeira pessoa, às vezes não, talvez inspirado por O Jogo da Amarelinha do Cortázar que Ernani tanto ama. O livro se passa em Porto Alegre, no triângulo obtuso formado pela cidades de Ermo, Sombrio e Turvo (SC) e um pouquinho mais longe, no Farol de Santa Marta (SC), provavelmente durante o final dos anos 70, quando aquela região estava sendo recém descoberta pelos turistas, principalmente gaúchos. Para lá se dirigiam hordas de bichos-grilos a fim de alugar as casas de pescadores. Lá, ficavam tomando banho de mar e de caneca, bebendo cerveja, consumindo drogas e trepando. Era bom, participei.
Por que é mais fácil dizer o que ele não é? Pelo fato de que Como o diabo gosta ser um livro enganador: ao leitor mais superficial pode parecer uma série de descrições do desbunde, da perda do autodomínio, da loucura e das muitíssimas relações sexuais mantidas pelo narrador. Realmente, o sexo é um tema importante de um livro que se pretende meio bandalho, só que não podemos esquecer que este se apoia mais na literatura do que no sexo. O texto é excelente. Tudo aparece em seu lugar e tem ritmo. Exatas, as palavras só poderiam estar onde estão. Isto é que torna o livro uma delícia e é sempre difícil elogiar um volume dotado de tamanho potencial de prazer e que não envolve grandes e claras teses. É um livro cujas melhores metáforas vêm da musicalidade e isto confunde.
E há o humor. Como o diabo gosta é um livro engraçadíssimo, mas não é um livro de humor. A história também revela a angústia do personagem principal, presente desde o elaborado e culto “tô nem aí” de Camilo, que é refletido no desespero de algumas cenas de sexo. A repetição de alguns fatos — descritos de forma inteiramente diversa no romance — não resulta num quadro divertido, mesmo que se ria deles. Isto parece ser muito bem controlado por Ernani, que espalha pistas que formam um quadro de uma época em que, ao lado da vida no desbunde, havia uma ditadura se desmanchando.