Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch

vozes-de-tchernobilA literatura de Svetlana Aleksiévitch é muito singular. Ao mesmo tempo que é documental, tem altíssima qualidade, fenômeno mais comum em ficcionistas. Aliás, a produção da escritora bielorrussa é única. Como boa jornalista que é, ela entrevista e abre aspas. Na verdade só faz isso, mas unifica os discursos sob um rigoroso filtro literário que dá forma e unidade a seus livros. Há anos divido com estudiosos a convicção de que a ficção é a única forma narrativa que roça a realidade. Aleksiévitch abala tal convicção. Talvez fosse melhor dizer que o texto literário — jornalístico ou não — é o único gênero de escritura que arranha os fatos. O resto são dados, contextualizações, circunstâncias, mas não é informação real. O habitat desta, desculpem, é o bom texto. E a diferença da escritora bielorrussa para seus pares é que seu texto não é apenas bom, é de um virtuosismo arrebatador.

Aleksiévitch não é uma escritora de eventos comuns nem de análise política, é uma historiadora de emoções. O que ela nos oferece é todo um mundo emocional. Vozes de Tchernóbil é uma obra coral. São centenas de depoimentos, um enorme painel de vozes reais, cada uma delas peça de um mosaico estarrecedor. É uma espécie de romance coletivo ou romance de evidências. As pessoas falam de si mesmas formando um contexto de pesadelo onde a radiação paira invisível, como um deus terrível, implacável. Vozes é uma montanha de pequenas histórias que recria a grande história, provando que a verdade está distribuída entre seus vários participantes e que a vida individual é mesmo algo ininteligível.

Para mim, é muito difícil escrever uma resenha que não seja gonzo. Tenho que participar dela, pois minha mulher conhece pessoalmente alguns dos entrevistados. Ela me trouxe fotos de uma delas, uma professora da Escola de Arte e Cultura de Moguilióv. Ou seja, vi fotos de minha Elena, de sua mãe e de uma pessoa “de Tchernóbil” tiradas poucos anos antes da explosão do reator. Mais: nestas vozes do povo bielorrusso reconheço várias posturas e piadas — sem nenhuma relação com a tragédia — que noto na casa onde moro hoje e onde amo ficar.

(Aliás, paralelamente, neste blog, tenho enorme vontade de acrescentar uma voz ao relato de Aleksiévitch).

A literatura da bielorrussa dialoga em vários níveis com a música. Há polifonia nos “corais” e, como na música, o mesmo tema é retomado diversas vezes sob diferentes abordagens. Lendo Vozes, pensei várias vezes nas Variações Goldberg de Bach, onde o tema é criativamente explorado de todas as formas possíveis. Cada voz que entra tem uma visão diferente, de onde só podemos concluir que há 7 bilhões de diversas perspectivas (ou cegueiras) em nosso planeta. Mas a união de todas elas parece tornar inequívocos os fatos e suas consequências pessoais… Olha, só lendo.

Aleksiévitch escreveu sobre Tchernóbil, sobre a Guerra do Afeganistão, sobre as mulheres remanescentes da 2ª Guerra Mundial e sobre o fim do homem soviético. É claro que é muito combatida em seu país e na Rússia, pois seus temas são sempre as pessoas comuns sofrendo sob o Leviatã. Mas não é surpreendente que agora vá escrever sobre o amor, porque o afeto, além da radiação, é onipresente como pano de fundo de Vozes.

Recomendo fortemente e nem precisaria. Afinal, sei de nove amigos que estão lendo o livro nestes dias. Svetlana Aleksiévitch diz que sua pátria é a Bielorrússia, terra de seu pai e onde viveu toda sua vida, mas que também é ucraniana, onde ela e sua mãe nasceram. Só que sua verdadeira pátria é a grande cultura russa, da qual autenticamente faz parte .

(Livro comprado na Ladeira Livros).

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