Dias úteis, de Patrícia Portela

Dias úteis, de Patrícia Portela

— Pai, quando é que tudo melhora?
— Quando te habituares a isto, filho.
Patrícia Portela, Dias Úteis (segunda-feira)

Dias úteis é um pequeno livro formado por um prefácio e seis contos, um para cada dia da semana, e mais um epitáfio para o domingo. Não há continuidade entre eles, são mais monólogos onde o poético, o lírico e o humor estão bem presentes. É excelente e intrigante. A escrita ou os temas abordados não parecem possuir um plano, são mais improvisações sem um tema-base, como o free jazz. A ideologia artística de Portela parece ser a de deixar-se assombrar-se com o que aparece de surpresa, com aquilo que se deixa mostrar sob os bons modos e a compostura, com a intimidade mais minudente. Adorei a terça-feira, onde uma mulher diz precisar de férias e passa a planejá-las. Ela primeiro fala em um fim de semana fora de casa e depois passa a fazer planos que incluem cada vez mais dias e viagens mais longas — chegando a algo como um “paroxismo” de férias, independência e liberdade.  Ela planeja uma mudança de vida em outro continente, aprendendo outras línguas. Tudo acaba na China. mas ela logo volta à razão (ou ao comum) e acaba desistindo de tudo. O final é muito engraçado. O altamente poético sábado, chamado aqui “Porque hoje é sábado” talvez seja o melhor conto do livro. Ele fala da memória que temos da pessoa amada que morreu — “a memória é um inimigo poderoso, mantém o cérebro a funcionar contra a sua vontade.”

Curiosamente, temos muito Brasil neste livro. Além do “Porque hoje é sábado” — título arrancado a Dia da Criação, de Vinícius de Moraes –, há epígrafes de Drummond, João Gilberto Noll, Machado de Assis, Adélia Prado, de uma carta de Erico Verissimo para Clarice Lispector, e ainda cita o Carnaval do Rio no prefácio que estabelece um jogo sem regras que pode ser recebido diferentemente por cada leitor.

Foto: publico.pt

A Coleção Privada de Acácio Nobre, de Patrícia Portela

A Coleção Privada de Acácio Nobre, de Patrícia Portela

Este é um romance nada convencional. É para quem gosta de vanguarda. A história parte de um baú encontrado pela autora na casa de seus avós. Dentro dele, ela encontra o espólio de um certo Acácio Nobre, já falecido. Ali estão objetos, correspondências, desenhos e documentos do mesmo. Acácio Nobre é uma figura que existiu, mas da qual não se encontram os rastros… O Google, por exemplo, o desconhece. Mas ele foi conhecido de importantes figuras de sua época, além de inventor e visionário. Imagina-se que ele teria nascido em 1868 e vivido até 1969. O livro é o conjunto, um a um, dos itens encontrados no baú, ou seja, é uma colagem do que foi sua vida. Em minha opinião, ele é uma realidade ficcional, mas nada disso interessa.

Acácio tinha a convicção de que as obras de arte deveriam permanecer anônimas, para poderem sobreviver ao artista e isto contribuiu para a quase inexistente documentação sobre ele. “Quero estar morto quando estiver morto! Que viva por si só a obra! A verdadeira imortalidade só se atinge quando nos apagamos definitivamente deste mundo”. Claro que ele não gostava de ser fotografado, embora o boato de ter sido registrado por Man Ray.

Por mais de 25 anos, desenhou puzzles geométricos para a Richter & Co. Uma de suas principais criações foi o Ovo de Colombo, que se desfazia em muitas peças e com as quais era possível montar um enorme número de imagens de aves. Também por suas estranhas ideias, foi investigado pela PIDE, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado, espécie de DOPS da ditadura portuguesa. No relatório da PIDE, que aparece no livro, é definido como um “louco, desenhista, alpinista e monge tibetano”. Não havia registros de sua identidade ou nascimento. Por todas essas características, ele tinha um potencial subversivo e perigoso e, mesmo que se desconhecessem ações concretas neste sentido, a PIDE estava de olho.

Além disso, ele adorava escrever cartas para políticos e importantes personalidades a fim de  solicitar auxílio na implementação de uma unidade do Instituto Fröbel em Portugal. A ideia do instituto era a de desenvolver o raciocínio lógico e a capacidade de desenhar, coisas que Acácio considerava imprescindíveis para todos os indivíduos. Sim, ele estava numa cruzada de alfabetização gráfica.

Dos seus contemporâneos, Patrícia traz um possível encontro com Fernando Pessoa (1888-1935) no café A Brazileira, ponto de encontro dos modernistas portugueses. Enquanto Patrícia nos entrega Acácio peça por peça, vamos fazendo nossa própria montagem do personagem. Ele, Acácio, fala em Pessoa, mas também em Lorca, Picasso, Maiakovski, Malevich, Marinetti…

Também afirma que sempre viaja sem mala porque nunca usa nada duas vezes, mantendo uma constante necessidade do novo e por isso troca de nome, de realidade, mundo, vida, linguagem, cultura. “A soma das partes não dá uma só pessoa”.

O livro é acompanhado de inúmeros fac-símiles de textos de Acácio, assim como de seus projetos. Eu imagino que apenas uma escritora transdisciplinar pudesse escrever / montar um livro como este. É o que Patrícia é. Seu currículo é impressionante e este sim pode ser conferido no Google. Ela é licenciada em realização plástica do espetáculo e leciona dramaturgia, entre outras mil coisas. “A soma das partes não dá uma só pessoa”.

Recomendo.

 

Gustavo Melo Czekster sobre Abra e Leia

Gustavo Melo Czekster sobre Abra e Leia

Não faz muito tempo li um comentário que alguém escreveu sobre o livro Abra e leia, do Milton Ribeiro, dizendo que, por conhecer e apreciar o autor, tinha receio de se decepcionar com o livro. De certa forma, era o mesmo que eu sentia e, agora que li a obra, posso garantir a vocês, potenciais leitores, que não, não há nenhum risco disso acontecer. Pelo contrário, aliás: a admiração de vocês pelo Milton só tende a crescer. Quer dizer que o cara, além de entender de música, ter uma livraria, fazer ótimas resenhas e ser colorado, ainda é escritor? Mas quantas vezes ele entrou na fila de distribuição de benesses e qualidades? Precisa de uma CPI isso aí, hein.

Abra e leia foi uma leitura que comecei um pouco receoso, mas que logo foi se tornando prazerosa e, com o passar do tempo, até esqueci que era o Milton quem tinha escrito o livro. Só lembrava disso às vezes, quando o Milton aparecia dentro das histórias quase como um fantasma assombrando suas criações. É um livro que faz algo inédito nos tempos atuais: ele conta histórias. Sejam insólitas, trágicas ou cômicas, os contos de Abra e leia resgatam aquele prazer quase indescritível que é ler uma história bem escrita e bem contada, do tipo que parece estar se desenrolando diante dos nossos olhos e que estamos testemunhando acontecer. Em suma, uma maravilha de leitura. E, se alguns contos parecem acabar de uma maneira abrupta ou sem nenhum tipo de epifania, é por que a vida também acontece assim: cheia de cortes, de questões não respondidas, de finais que a gente não sabe se existem mesmo ou se só inventamos para não pensar mais naquilo.

Um detalhe de ritmo que o Milton tirou da música e trouxe para o livro: ele vai em um crescendo. Começa com boas histórias que, aos poucos, vão cativando a atenção, e a consistência narrativa vai se aprofundando cada vez mais até chegar em uma sequência final de contos realmente extraordinários. Melhor ir lendo aos poucos para ter essa impressão de arrebatamento, que eu nem consegui ver quando começa de verdade (sinal de que foi bem feita a escolha da ordem dos contos), mas, em geral, uma seleção de contos vai alternando maus, bons e ótimos momentos, algo que não acontece em Abra e leia, em que aquilo que era bom no início fica excepcional no final.

Entre os contos, gostei muito da praticidade filosófica e engraçada presente em Luciana e o hedonismo, do insólito em Os velhinhos, da situação quase kafkiana em Enquanto os psicanalistas se divertem, da maravilhosa construção de personagem em O Violista (muito leria um romance inteiro com esse personagem, um Sancho Pança sem Quixote), da estranheza que chamamos de vida em As afinidades ininteligíveis – quem nunca se perguntou “como foi que já gostei dessa pessoa no passado?” -, da insuspeitada força de Abra e leia, que tem um final extremamente vigoroso, e da tragédia que vira comédia em Anita e Belle, que me fez dar uma gargalhada tão alta que possivelmente acordei meus vizinhos nessa última madrugada.

Eu sei que muitas pessoas hoje consideram a literatura como um exercício sociológico, outros tentam mudar o mundo através dos seus livros, tem aqueles que desejam expressar sua visão pessoal ou filosofias particulares usando uma moldura ficcional, e está tudo bem querer isso, cada um com a sua literatura. Eu, contudo, como sou um leitor antiquado, do tipo que gosta de ler boas histórias, daquelas que me enganem muito bem e me façam acreditar piamente no que foi narrado, posso garantir que gostei muito de Abra e leia, tanto que agora farei ao Milton a pergunta temida por qualquer escritor: tá, e daí, quando vem o próximo?

Catorze Camelos para o Ceará, de Delmo Moreira

Catorze Camelos para o Ceará, de Delmo Moreira

Este é um livro surpreendente. Um daqueles que merecem a expressão “puro suco de Brasil”. Você sabia que, na metade do século XIX, mais exatamente por volta de 1859, os brasileiros estavam indignados com o que os europeus diziam ser nosso país? Pois na Europa havia livros que falavam de animais fabulosos – muitos deles semi-humanos –, de canibais insaciáveis e de povos indígenas de 3m de altura caminhando por nossas ruas. Pois D. Pedro II e seu governo promoveram a primeira expedição científica brasileira, que saiu do Rio de Janeiro para o Nordeste e Norte do país, capitaneada pelo engenheiro e mineralogista barão de Capanema, o botânico Freire Alemão e o poeta e etnólogo Gonçalves Dias, o autor de Canção do Exílio e do I-Juca-Pirama.

A exploração faria um levantamento do solo, flora e fauna da região e, como o problema da seca vem de longe, o monarca adquiriu 14 camelos argelinos, acompanhados de quatro tratadores africanos, para que a expedição se movimentasse pelo sertão. É sabido que, sem água, os camelos vão mais longe do que os jegues. Porém, como o Brasil já era aquilo que conhecemos, os camelos tornaram-se motivo de piadas. Os bichos trabalharam e se reproduziram do mesmo modo que fizeram nos EUA e principalmente na Austrália. E foram úteis, mas a oposição e sua imprensa sepultaram a ideia, pondo a iniciativa no ridículo.

E sabem que a má fama dos camelos argelinos chegou a nossos dias? A Imperatriz Leopoldinense venceu o Carnaval carioca de 1995 com o enredo Mais vale um jegue que me carregue, que um camelo que me derrube no Ceará. A Escola contava a história da expedição e boa parte da culpa do “malogro” coube aos pobres camelos. Não é verdade.

Num texto fluido, realmente bom de ler, o jornalista Delmo Moreira recriou a aventura da expedição, uma tragicomédia que misturou absoluto pioneirismo, vocação científica, muita burocracia, casos amorosos e alguma cachaça. Em meio a desvios de rota, corte de verbas, férias prolongadas e conflitos com os locais, a história da expedição é também a de um país que começava a se descobrir. Como os envolvidos eram cientistas, a aventura está muito bem documentada e Moreira levou 5 anos lendo e alinhavando tudo num esplêndido texto de mais ou menos 250 páginas.

“Não vos parece, senhores, que já era tempo de entrarmos, sem auxílio estranho, no exame e investigação desse solo virgem?”, propôs o visconde de Sapucaí. “De desmentirmos esses viajantes de má-fé ou levianos que nos têm ludibriado e caluniado?” Ex-preceptor de Pedro II, Sapucaí presidia o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Na sessão solene de maio de 1856, os sócios da instituição denunciavam, em discursos exaltados, exploradores estrangeiros que haviam publicado na Europa uma série de informações falsas e fantasiosas sobre o Brasil. Defendiam que o país tinha o dever de patrocinar uma missão exploratória e propunham a formação de um grupo de cientistas para estudar, sem controle estrangeiro, como nunca havia sido feito antes, o imenso e desconhecido território nacional. Até então, naturalistas locais serviam como meros colaboradores de expedições estrangeiras, sem autonomia sequer para escolher roteiros. Agora eles queriam “mostrar ao mundo que não nos faltam talentos e habilitações” para as pesquisas científicas. O Império só teria a ganhar: “Tudo seria do mais alto interesse: conhecimentos da topografia, dos cursos dos rios, dos minerais, das plantas e animais, dos costumes, da língua e das tradições dos autóctones, cuja catequese seria também mais facilmente compreendida”, previu o visconde.

Mas temos a dor e o prazer de estarmos no Brasil. Os conservadores fizeram pouco. Eles queriam que a expedição descobrisse riquezas… Ouro, por exemplo, não foi encontrado. Os liberais defendiam a iniciativa, mas como ela só trazia plantinhas, insetinhos e bichinhos grandes e pequenos, ficava difícil de defendê-la. A história dos camelos e da exploração é fascinante, às vezes hilariante, demonstrando que os conflitos com a ciência têm mais de um século em nosso país. Capanema e de Gonçalves Dias — esplêndidos personagens – que o digam.

Os camelos? Ora, morreram em fazendas e em circos.

Os resultados? Ora, por puro desinteresse, o fartíssimo material jamais foi catalogado. Agora, boa parte se perdeu porque ele estava naquele enorme museu de história natural e antropologia inaugurado em 1818 e que ficava no interior do Parque da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro.

Sim, no Museu Nacional, aquele mesmo que queimou em setembro de 2018.

Delmo Moreira

 

Uma Criança Abençoada, de Linn Ullmann

Uma Criança Abençoada, de Linn Ullmann

Claro, eu comprei este livro pelo simples motivo de Linn Ullmann ser filha de Liv Ullmann e Ingmar Bergman. Lançado pela Cia das Letras em abril de 2009, o livro vendeu minimamente no Brasil e só o encontrei em sebos. Pois fiquei muito feliz em lê-lo. É ótimo.

Vamos com um mínimo de spoilers. Erika, Laura e Molly são três meias-irmãs, filhas do mesmo pai com 3 diferentes mulheres. O pai, Isak Lovenstad, é um velho e famoso médico aposentado que está vivendo na pequena ilha de Hammarsö. Erika deseja que as irmãs façam uma visita conjunta ao pai.

(Bem, Ingmar Bergman passou sua velhice na ilha de Fårö e teve nove filhos com seis mulheres diferentes. Ullmann é a mais jovem, a última filha do grande homem. E olha, Linn sobrevive bem a isto. A casa de Bergman na ilha chamava-se Hammars, nome muito parecido com a ilha do livro de Linn).

O foco do livro são seus flashbacks, focando-se mais exatamente no quente verão de 1979, quando Erika estava fazendo 14 anos, Laura, 12, e Molly, 5. Elas tinham uma turma de garotos que circulava pela ilha. Um deles era desprezado pelos outros, fato bem conhecido de quem participou de turmas de bairro infantis. Excluído da turma, Ragnar refugiava-se em uma cabana secreta onde também se encontrava com Erika. Nascidos no mesmo dia e ano, ninguém sabia dos beijos e das intimidades entre eles. E era na cabana que eles pretendiam comemorar seu décimo quarto aniversário em 1979. Vinte e cinco anos mais tarde, Erika relembra os acontecimentos daquela noite de verão e decide voltar com as irmãs à ilha onde nunca mais puseram os pés.

O romance começa com Erika dirigindo nervosamente em meio a uma tempestade de neve até a ilha sueca de Hammarsö para visitar o pai de 84 anos. O velho vive ameaçando cometer suicídio e Erika convoca suas duas meias-irmãs para que possam ver como ele está.

A longa viagem de carro na neve gera lembranças em Erika: em 1972, as meninas começaram a passar o verão com o pai em Hammarsö. A Marion de cabelos negros é a abelha-rainha que dirige, com olhares malévolos, qual membro do grupo de adolescentes locais pode tomar sol ao seu lado ou quem terá o privilégio de emprestar-lhe uma blusa. Como disse, na periferia desse grupo está Ragnar, um menino que é o melhor amigo de Erika. Erika e Ragnar compartilham um linguagem secreta e um esconderijo numa cabana da floresta. Mas quando eles completam 14 anos, Erika o trai para ganhar espaço com Marion e esconder a “vergonha” de sua atração pelo vetado Ragnar, dando início a um episódio que faz O Senhor das Moscas parecer contido.

O Senhor das Moscas, de William Golding, gerou décadas de discussões sobre a maldade das crianças, principalmente dos meninos. Normalmente, as meninas são suas maiores vítimas. Linn inverte tudo. Marion, a adolescente-chefe do livro, comporta-se bastante mal — não vou esquecer a cena magistralmente assustadora que termina quando ela “joga o vibrador no mar”.

A estrutura em mosaico do romance, uma montagem de vários pontos de vista a partir de vários pontos no tempo, cria ecos desse acontecimento horrível no presente. A dolorosa gravidez de Erika adulta com seu filho parece uma penitência por sua traição. A preocupação de Laura com a reação de sua comunidade a um suspeito de pedofilia revela seu arrependimento sobre a violência contra Ragnar 25 anos antes.

A autora é perfeita. Se o cerne de Uma Criança Abençoada é um crime, a autora parece não ter certeza de quem é o culpado. A narradora não aponta o dedo para ninguém. Ullmann parece até ter certo amor pelos culpados. Sim, é um livro sem compromissos morais. De quem é a culpa quando as meninas se comportam mal? Ullmann levanta a questão, mas não a responde.

E vale a pena saber do mais recente livro de Linn Ullmann, publicado em 2020.

Linn Ullmann (1966) | Foto: Hampus Lundgren, do perfil do Facebook da autora

A Karina Pacheco leu Abra e Leia e escreveu o seguinte:

A Karina Pacheco leu Abra e Leia e escreveu o seguinte:

Milton,

Hoje acordei cedo, tomei o necessário café, coloquei comida no fogo (às vezes gosto de fazer pratos demorados nos domingos) e, no momento em que a casa toda estava cheirando a cominho, meu tempero preferido, sentei para ler o teu livro. E só levantei para o estritamente necessário, porque fiquei completamente absorta com a coleção.

Admito que não tinha começado a ler antes por receio: será que estou entrando com a expectativa muito alta? será que estou sendo (in)justa com o Milton? será que vou gostar mesmo? Bem, venho aqui solenemente declarar que fui besta e ridícula e que, como sói acontecer, meus receios se provaram todos absurdos e infundados.

O teu livro é ótimo! E não digo nem penso isso porque gosto de ti, sabes que sou uma leitora exigente e jamais faria elogios por obrigação. Os contos começam bem e, de alguma forma que ainda estou tentando entender, vão melhorando.

(Sim, é um fenômeno meio estranho até, porque não giram em torno de uma única temática nem são repetitivos, mais do mesmo. Se propõem a coisas diferentes e, ainda assim, a sensação é de que vão melhorando sempre. Que incrível!)

‘Marquinhos e Enzo, o grande’ tocou o fundo do fundo da minha sensibilidade da forma mais inesperada possível. ‘Atravessando a rua’ é uma aula de narrativa e, cabe dizer, tem um final hilariante. ‘Luciana e o hedonismo’ de uma inteligência e humor que raras vezes são executados assim, sem “forçar a barra”. Nem que falar de ‘O Violista’, que talvez seja o melhor da coleção e que poderia perfeitamente estar em qualquer coletânea que tivesse as palavras “melhores” e “contos” no título. O meu preferido, entretanto, acho que foi ‘Anita e Belle’, com essa combinação ideal de sensibilidade, realidade crua e humor.

Terminei o livro meio que já querendo reler, imaginando como os diferentes contos provavelmente vão produzir efeitos diferentes em mim nas próximas leituras.

Bem, resumo essa mensagem que já está abusivamente longa: obrigada por esse livro e, por favor, continua escrevendo.

Beijo da melhor-pior cliente da Bamboletras!

.oOo.

Obs. do Milton: como vocês leram, a Karina autodenomina-se a melhor-pior cliente da Livraria Bamboletras… A expressão nasceu quando sua mãe, durante uma das muitas viagens da filha — viagens aqui não é metáfora — disse-me que eu poderia escolher os livros que ela lhe daria de aniversário. Neguei-me a fazê-lo porque a Karina lê o que quer e tem opiniões fortes. Uma vez ou outra eu imponho um livro, mas é raro. Então, sua mãe rebateu: “Bem, já que tu preferes ficar 8h com a minha filha enquanto ela escolhe os livros, vou deixar um crédito pra ela…”. Gente, ela não demora 8h, mas também não é rápida e há um ganho: ela lê muito e bem, e em vários idiomas, e sempre se aprende com ela. Às vezes ela aparece com uns pedidos bem complicados, mas é da vida, né?

O Avesso da Pele, de Jéferson Tenório

O Avesso da Pele, de Jéferson Tenório

As narrativas de denúncia de racismo e violência podem ter o formato que quiserem e puderem ter. Há os que argumentam aos gritos e há os que o fazem com calma e sensibilidade, ambos com razão. Sei, há que ter sangue de barata, mas eu acho muito mais potente o que é dito com voz pausada, sem desviar ou atenuar fato nenhum. Ouço e leio com muito maior profundamente assim. Melhor ainda se for escrito com arte. Tenório é assim. Seus textos não gritam, recebem o trabalho de linguagem adequado ao assunto, não são exaltados e sempre demonstram enorme riqueza de conteúdo. São, na verdade, de um virtuosismo arrebatador. A violência e o preconceito estão lá. E Tenório sabe como contá-los.

O Avesso da Pele nos envolve pela interessante história familiar e nos leva lentamente a uma tragédia. Ignoro o que há de verdade naquilo que é contado, mas sei que Tenório é professor como o pai de O Avesso, que conhece profundamente a falência educacional de nosso país — o que nos põe no fundo do poço como país –, que é negro e que mora na racista Porto Alegre.

Em capítulos curtos, indo e vindo no tempo, o narrador preenche lacunas da história de seus pais. O racismo é o que mais nos choca — ou o que mais me chocou — mas as relações familiares e a dor estão tão presentes quanto o preconceito racial. Elegantemente, como um Paulinho da Viola escritor, Tenório avança por vicinais que sempre acabam na figura paterna. O pai de Pedro, Henrique, foi morto em uma absurda e rotineira abordagem policial em Porto Alegre. É dessas coisas que “têm que acabar”, mas que não acabam nunca. Os negros podem ser abordados como suspeitos e ai dos que não se comportem com absoluto respeito, educação e subserviência. Em caso de insubmissão, a violência física e os tiros à queima-roupa são a regra. Dentro deste arcabouço, Tenório narra fatos sobre Pedro, sua mãe Martha e seu pai Henrique que devem, de alguma forma, ser conhecidos por todos os não brancos de nossa sociedade.

Ao final do livro, Pedro, ao revirar as coisas de seu pai, diz:

Acho que vocês nunca se preocuparam em organizar uma narrativa para mim. Sei que o tempo foi passando e o que foi dito por vocês, antes de minha memória, foi dito em retalhos. Então precisei juntar os pedaços e inventar uma história. (…) Para isso, não me limito ao que vocês me contaram, nem ao que estes objetos me dizem sobre você. Não acho que devemos lidar  apenas com a lógica dos fatos. Prefiro uma verdade inventada, capaz de me pôr de pé. Eu sei que esta história pode estar apenas na minha cabeça, mas é ela que me salva.

Um livro autobiográfico? Provavelmente, mas antes de tudo um grande romance que recomendo fortemente.

Jeferson Tenório | Foto: Carlos Macedo / Jornal Rascunho

De Fernanda Melo, sobre meu livro Abra e Leia

De Fernanda Melo, sobre meu livro Abra e Leia

Ontem, recebi isto aqui da Fernanda Melo.

Tive que parar pra respirar depois dessa declaração de amor à tua filha. Quem te conhece pelo menos um pouco consegue identificar claramente as histórias autobiográficas.

Não desgrudei do livro desde que comecei. Pega a gente imediatamente e é variado, vai pra qualquer direção, escapa do que pode ser cansativo às vezes nos livros de contos, que é ficar tudo meio igual

Dá pra entender porque a editora o quis imediatamente. Meus parabéns, você realmente chegou lá ❤️ .

De Luís Augusto Farinatti, sobre Abra e Leia

De Luís Augusto Farinatti, sobre Abra e Leia

Quando o Milton me convidou para escrever a orelha, respondi: finalmente esse livro vai sair. Caramba, Milton! Já merecia há anos!

Começa assim o texto que escrevi para a orelha do livro de contos do Milton Ribeiro. Chegou aqui em casa hoje. Todo mundo conhece o Milton. Livreiro dono da Bamboletras, jornalista, blogueiro e desde sempre escritor. Só agora publicado. Tá mais que na hora da gente poder aproveitar esses contos.

Um livro desses. Finalmente vindo a público. E o convite pra escrever a orelha. Tô feliz demais.

Foto: Luís Augusto Farinatti

De Cândida Roriz, sobre Abra e Leia

De Cândida Roriz, sobre Abra e Leia

Milton Ribeiro, seu livro esta sendo um oásis pra mim. Minha gatinha de estimação sumiu e ler seu livro está me desligando um pouco do problema.

As histórias desse livro são boas demais. Você não tentou arrumar um final feliz. Apenas a vida como ela é. No seu caminhar, sem ter a obrigação de terminar arrumadinha. Nas histórias do livro, os personagens não tem controle sobre nada que irá acontecer em suas vidas, assim como na vida real. E traz esse choque de realidade bem diante dos olhos. Só quero agradecer, obrigada!

Foto: Cândida Cunha Roriz

Meus Prêmios, de Thomas Bernhard

Meus Prêmios, de Thomas Bernhard

Um livro absolutamente hilariante! Thomas Bernhard era um mal-humorado e nem quando era laureado agia com delicadeza. Na verdade, parecia amar sincericídios, o que, se não é doença, é grave falha no trato social. O fato é que Bernhard tinha problemas com prêmios — ele os odiava, mas sempre precisava do dinheiro. Ele adorou quando alguém o chamou de “um pássaro que suja o próprio ninho”. Receber um prêmio de entidades nas quais não acreditava — como o estado austríaco, por exemplo — era para Bernhard pior do que ler uma crítica negativa, o que não raro lhe acontecia. Este livro reúne textos sobre nove prêmios que recebeu, bem como seus discursos inflamados de aceitação para três deles e sua carta de demissão para a Academia de Língua e Poesia de Darmstadt.

Aceitar os prêmios apenas pelo dinheiro, causava-lhe conflitos morais: “Sempre pensei, meu caráter revela uma grande mácula. Eu desprezava aqueles que concediam os prêmios, mas não me recusava seriamente a receber os prêmios em si”. O dinheiro aceito ajudou a pagar a casa onde morou até o fim da vida, um carro (que se espatifou num acidente dias após a compra) e tratamentos de saúde.

O livro não inclui a peça mais violenta de Bernhard contra a Áustria: seu testamento. Ele estipulou que suas peças nunca mais seriam encenadas nem seus livros publicados na Áustria — chamando o testamento de “emigração literária póstuma” — e especificou que mesmo que a Áustria fosse invadida e não fosse mais um Estado-nação, os termos de sua vontade se aplicariam às suas antigas fronteiras.

Acho que Meus prêmios não é um livro para conquistar novos leitores para o prazer peculiar de ler Bernhard. Se eu recomendasse um livro para começar a conhecer este grande autor, sugeriria Extinção, Árvores Abatidas ou O sobrinho de Wittgenstein.

O que torna Bernhard moralmente significativo é que, para todo o ódio que ele lança sobre a sociedade austríaca, reserva uma medida igual para si mesmo. Ele está totalmente ciente de si. Há uma cena em O sobrinho de Wittgenstein em que o filósofo começa a chorar por causa de uma criança que mendiga na rua. Bernhard fica igualmente horrorizado, mas só começa a chorar quando percebe que a criança enganou os dois. Essa clareza de visão tipifica sua sátira. Muito poucos escritores hoje possuem sua integridade satírica e sua humanidade absoluta.

Em Meus prêmios, temos alguns de seus discursos mais mordazes. Em particular, o discurso por ocasião da entrega do Prêmio Nacional Austríaco de Literatura. Ele começa dizendo “Ilustre senhor ministro, ilustres presentes…” e então manda chumbo grosso: “Não há nada a louvar, nada a amaldiçoar, nada a condenar, mas muito há de ridículo; tudo é ridículo quando se pensa na morte”. E depois começa a falar da sociedade austríaca. O “ilustre senhor ministro” sai furioso, quase quebrando uma porta em sua retirada apressada… O que jamais é explicado no livro é que a “tia” que o acompanha invariavelmente é na verdade sua amante, Hedwig Stavianicek, 37 anos mais velha.

A raiva de Bernhard é lendária e ele estava no caminho certo, me parece. Havia algo na Áustria, talvez haja ainda. A desnazificação do país foi lenta, apesar de ser o berço de Hitler. Até hoje a Áustria tem um governo de direita com coalizões com partidos de extrema-direita. O país é rico e uma maravilha do ponto de vista material, mas é um horror e um perigo político. Imagino o que Bernhard escreveria — ele não viveu para ver — sobre o fiasco de Jack Unterweger — um prisioneiro que supostamente “se reformou” por meio da escrita criativa, que era o queridinho dos literatos austríacos e, ao ser solto em 1990, assassinou dez mulheres… Um país assim merece um cronista raivoso.

Thomas Bernhard (1931-1989)

Encaixotando minha biblioteca, de Alberto Manguel

Encaixotando minha biblioteca, de Alberto Manguel

A triste operação de encaixotar sua biblioteca na França inspirou uma das obras mais pessoais de Alberto Manguel. Este é daqueles livros deliciosos, para os quais a gente sempre terá um belo lugar em nossa memória. O que ele diz é óbvio para nós, devotos da leitura, e dá até pena de abandoná-lo após a leitura, tantos são os bons motivos e razões que ele apresenta para sermos como somos. O livro nos explica, eleva e é maravilhosamente informativo, além de demonstrar que, bem, não somos loucos.

Alberto Manguel é um daqueles argentinos geniais que não dá para desconhecer, ainda mais que foi amigo de Borges e — como Borges — também diretor da Biblioteca Nacional da Argentina. Encaixotando minha biblioteca (Cia. das Letras, 175 páginas, R$ 44,90) fala sobre a importância dos livros em nossa vida e conta como o autor se preparou para a mudança: ele sairia de sua casa medieval no Loire para morar em um apartamento em Nova York. Sua biblioteca pessoal, com cerca de 35 mil volumes, teria que ser guardada. Nesse momento, em apaixonada elegia, o escritor começa a relembrar sua relação com os livros e com as bibliotecas (públicas e privadas) que já passaram por sua vida. Suas reflexões variam amplamente, indo desde as adoráveis idiossincrasias dos bibliófilos a análises mais profundas de eventos históricos, como o incêndio da antiga Biblioteca de Alexandria.

O livro me causou alguma angústia. Desde que me separei em 2013, não vi mais meus livros. Os 3 mil livros que reuni até aquele ano estão em um guarda-móveis. É certo que nestes 8 anos, outra bela biblioteca começou a se formar e, quando li o livro de Manguel, percebi que havia pelo menos outra pessoa no mundo (snif) que entendia minha dor e angústia de separação. A obra tem o subtítulo “Uma elegia e dez digressões”. Ou seja, há muita coisa além da mudança e alguns trechos ecoaram demais em minha experiência pessoal. Depois de falar sobre a “geografia” de sua biblioteca (como ele organizou seu acervo), ele afirma que seus livros faziam parte de quem ele era e que a biblioteca o explicava. Sua coleção seria uma “espécie de autobiografia em várias camadas” e sua própria memória estaria “menos interessada em mim do que em meus livros”.

Voltando a Milton Ribeiro, digo que, ao entregar minha biblioteca para o guarda-móveis, estive em próximo contato com minha mortalidade. Manguel capta isso à perfeição: “Se toda biblioteca é autobiográfica, sua colocação em caixas numeradas parece uma espécie de obituário”. O livro traz palavras de sabedoria de sua avó: “Com o tempo, você aprende a desfrutar não o que você tem, mas o que você lembra” e, de forma semelhante, Manguel também dá a Dom Quixote — o herói que perdeu sua biblioteca — o crédito por ajudá-lo a compreender melhor a perda: “A perda ajuda você a se lembrar e a perda de uma biblioteca ajuda a lembrar quem você realmente é. A biblioteca segue existindo na mente do leitor na forma de associações e memórias”.

Espero arrumar minha biblioteca em poucos anos. Um livro que certamente estará lá é este Encaixotando minha biblioteca. Será parte de minha coleção e espero que permaneça valioso quando eu não estiver mais por perto.

Encaixotando minha biblioteca, como já disse, talvez seja a mais pessoal de Alberto Manguel. Ela se conclui com sua posse no cargo de seu admirado Jorge Luis Borges, o de diretor da Biblioteca Nacional da Argentina.

Existem leitores — grandes leitores — que não desejam formar bibliotecas e que possuem relativamente poucos livros. Borges, como lembra Manguel, seria o exemplo definitivo. Alguém poderia imaginá-lo rodeado de livros em casa, mas não era o caso. Ele doava quase tudo. Eu  admiro tal despojamento, mas o quero para mim. Talvez o leitor mais sábio seja aquele que lê muitos livros (ou, melhor ainda, poucos, mas profundamente) e que não se importa em possuir nenhum, porque sabe que os verdadeiramente importantes foram incorporados ao seu ser. Talvez seja um sinal de fraqueza e até mania de colecionar livros que não necessariamente nos tornarão melhores ou mais inteligentes. Aceito totalmente essa possibilidade. Mas, foda-se, vou seguir armazenando livros.

Alberto Manguel

Eu fui Vermeer, de Frank Wynne

Eu fui Vermeer, de Frank Wynne

Este livro estava no setor de Arte da Bamboletras. Acabo de transferi-lo para o de Biografias. Pois trata-se de uma muito boa e sedutora biografia de um falsário. Han van Meegeren (1889-1947) foi um habilidosíssimo artista plástico holandês que virou as costas ao modernismo. Ele amava e queria criar quadros como os da Idade de Ouro dos grandes mestres holandeses, gente como Vermeer, Rembrandt, Hals, Rubens, Ter Borch, Lievens, De Hooch, Baburen, só para citar os preferidos de van Meegeren. Ao ser desprezado pelos críticos, que queriam obras contemporâneas, ele, que conhecia todos os métodos utilizados pelos pintores seiscentistas, foi picado pela vontade de enganar os especialistas. Tudo começou com uma brincadeira do tipo “vou criar um Vermeer” para se transformar num negócio tão lucrativo que van Meegeren não sabia mais onde enfiar o dinheiro em espécie que recebia. O autor, Frank Wynne, escreve que van Meegeren “tinha talento técnico, mas nada a dizer com sua própria arte”.

Mas o falsário não era um mero copiador de quadros. No início do século XX, a reputação de Vermeer não parava de crescer, mas pouco se sabia da vida do artista e da verdadeira extensão de sua obra. A história, assim como a natureza, tem horror ao vácuo. Apenas 35 de suas obras chegaram a nós e há uma enorme disparidade entre as primeiras obras do mestre e os trabalhos maduros. Faltam as pinturas intermediárias, aquelas que fazem a ligação, unindo a fase inicial e a final. E foi neste vazio que van Meegeren entrou. Ele tratou de encontrar tais quadros, ou melhor, de criá-los. Quem os apresentava eram sempre laranjas, “representantes de uma decaída família holandesa que encontrou um tesouro em seu sótão, olha só”, etc. Vocês podem imaginar o valor que estas descobertas tiveram, não?

E Meegeren comprou propriedades e castelos, até os tubos de calefação tinham notas de dinheiro. Ficou milionário. Mesmo com a qualidade da sua produção decaindo literalmente a olhos vistos, ninguém notava as imposturas. Ele chegou a vender obras para nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.

O livro é sensacional. Depois que a guerra acabou, o holandês ficou numa situação difícil e foi  preso. Ou tinha realmente vendido quadros para os nazistas (crime gravíssimo), ou confessava a falsificação e se assumia como escroque. Acabou confessando — sua confissão foi comemorada na Holanda em razão dos quadros vendidos serem falsos –, mas daí precisou convencer os próprios críticos, que pouco antes tinham saudado e autenticado com convicção os Vermeers redescobertos, de seus equívocos e de sua incompetência…

Afinal, em 1940, os os especialistas e os jornais chamavam de descoberta sensacional a soberba Ceia em Emaús, obra da fase intermediária de Vermeer que saíra dos pincéis de van Meegeren… Natural, portanto, que a história desse holandês bon-vivant e viciado em morfina tenha virado um problema também para a crítica. O caso van Meegeren desestabilizou a autoridade dos especialistas e que ameaçou o rico mundo dos leilões e dos mercados de arte. O caso é saboroso.

Ao final do livro, sabemos até onde estão os ex-Vermeer e os verdadeiros.

Excelente diversão. Recomendo!

Um show: a fim de comprovar suas habilidades, van Meegeren, em 1945, criou publicamente um Vermeer para a polícia conferir e as imprensa gravar.

 

A Gaivota / Tio Vânia / As Três Irmãs / O Jardim das Cerejeiras, de Anton Tchékhov

A Gaivota / Tio Vânia / As Três Irmãs / O Jardim das Cerejeiras, de Anton Tchékhov

Na minha opinião, é difícil encontrar em toda a literatura algo melhor do que isso. É difícil encontrar melhores e mais transcendentes diálogos. Talvez seja impossível encontrar tanta concisão e tantos significados em prosa teatral.

Eu sou apaixonado pelos contos e novelas de Tchékhov, mas essas peças são muito especiais dentro de sua obra, certamente estão dentre os principais trabalhos do mestre.

Comprei estes dois volumes da Veredas na Estante Virtual e, no mesmo dia em que os recebi, li que a Penguin-Companhia iria lançar essas 4 peças em nova tradução de Rubens Figueiredo, o que é garantia de alta qualidade. O livro está em pré-venda e estará disponível em 23 de setembro. Oh, vida! A tradução da Veredas é satisfatória, mas Figueiredo é um notável tradutor — quem leu sua tradução de Anna Kariênina para a Cia. das Letras sabe disso — e a Penguin costuma acrescentar boas e interessantes introduções a seus livros.

Anton Tchékhov, filho de um pequeno comerciante falido, formou-se em medicina, mas, ainda na faculdade, começou a contribuir para revistas literárias. Escreveu muito durantes seus parcos 44 anos de vida. Entre 1896 e 1904, ano de seu falecimento, escreveu as quatro peças que compõem estes volumes da Veredas e o da Penguin – e que se tornaram clássicos do repertório teatral.

A Gaivota mostra os conflitos de um grupo numa propriedade rural da Rússia no fim do século XIX. Numa tarde de verão, um jovem dramaturgo apresenta uma peça protagonizada por Nina, atriz por quem está apaixonado. As opiniões dos convidados sobre a obra divergem e a mãe do autor, uma importante atriz, desencoraja-o a seguir escrevendo. Logo, Nina decide ir a Moscou atrás de fama e de um célebre romancista.

Tio Vânia é o meu preferido dentre estes textos. Numa propriedade rural, moram o professor aposentado Serebriakov; sua jovem e linda esposa, Helena; a filha do primeiro casamento, Sônia; a mãe da falecida esposa, Maria; e o irmão da falecida, Ivan, conhecido na família como tio Vânia. Serebriakov foi sempre considerado um gênio, um grande literato. Sempre conseguiu que todos o admirassem e fizessem tudo por ele. Entretanto, com o passar dos anos, o gênio revelou-se um engodo. Agora, velho, hipocondríaco e rabugento, só faz chatear e perseguir os familiares que, sem outra saída, suportam-no, principalmente sua esposa Helena. O tio Vânia trabalha como um louco para manter a fazenda e sente-se explorado pelo professor. Também questiona o poder do velho sobre a família. Principalmente, Vânia inveja o casamento do velho, pois, há dez anos, é louco por Helena.

As Três Irmãs conta a história de três mulheres que moram numa cidade do interior da Rússia. Elas acham tediosa a vida na província e sonham em voltar para Moscou, onde haviam passado uma infância feliz. Olga é uma professora solteira que vê os anos passarem e também a oportunidade de casar; Macha, esposa de um professor de liceu, aos poucos percebe a mediocridade do marido; e Irina, a mais nova, é a única que ainda acredita no futuro. Todas idealizam Moscou como a sua única salvação e anseiam voltar para lá. Porém, o projeto é sempre adiado.

O Jardim das Cerejeiras… Bem, vou colocá-lo ao lado de Tio Vânia nas minhas preferências. É a última peça escrita por Tchékhov e conta sobre uma família aristocrata em decadência que resiste em vender o seu jardim de cerejeiras, ao qual atribui valor afetivo, apesar de improdutivo nos últimos tempos. Eles retornam de Paris cheios de ideias disparadas e irrealistas sobre a propriedade. Um velho amigo da família, Lopákhin, cujo pai fora servo da fazenda nos velhos tempos, dá-lhes um banho de realidade e propõe uma saída: o jardim podia ser desmatado e a terra dividida em lotes para veranistas. Imagina!

Uma rara foto de Tchékhov sorrindo

A nota amarela — seguida de Sobre a escrita — um ensaio à moda de Montaigne, de Gustavo Melo Czekster

A nota amarela — seguida de Sobre a escrita — um ensaio à moda de Montaigne, de Gustavo Melo Czekster

Esta será uma resenha estranha, escrita em formato gonzo. Gonzo é um estilo de texto jornalístico ou cinematográfico no qual o autor abandona qualquer pretensão de objetividade e se mistura com o que é contado.

Pois bem, o romance A Nota Amarela — primeira parte do livro de Czekster — é narrado pela violoncelista Jacqueline du Pré. Trata-se de seus pensamentos durante sua célebre interpretação do Concerto para Violoncelo de Elgar. Claro que tudo o que ela pensa foi criado e (muito) pesquisado por Czekster. Du Pré foi uma grande figura inglesa da música erudita. Linda, cheia de vida, verdadeiramente fulgurante, ela era recém casada com o pianista e regente Daniel Baremboim — até hoje uma figura referencial na área musical. Há um filme de uma interpretação de du Pré para este concerto que foi gravado em 1967 e que serviu de base para boa parte do trabalho. Eu conheço este filme há muitos anos. Acho que o vi pela primeira vez ainda adolescente em alguma TV Educativa e fiquei fascinado. Afinal, uma linda música, tocada com muita emoção por uma bela mulher, o que poderia haver de melhor? O fato é que jamais esqueci dele e tratava de rever o filme a cada reapresentação. Aqui está ele:

Uma vez, nos anos 80, levei uma moça muito bonita, graciosa e radical, pela qual estava me apaixonando, para ver a Ospa tocar este concerto. O programa finalizava com a Sinfonia Nº 9 de Schubert, a Grande. Não é que tenha dado errado, mas… O fato é que fiz enorme propaganda do concerto de Elgar e, no final, ouvi ela dizer que o inglês fora humilhado por Schubert e… Como é que eu tinha dito que detestava autores do século XX que escreviam como se estivessem no XIX se, já de cara, no primeiro concerto em que íamos juntos, eu elogiava um desses “horrores”? E me perguntou ironicamente qual era a obra de Rachmaninov que eu amava. Nenhuma, eu respondi, já perdendo o entusiasmo. Ela gostava da música moderna, divertia-se com Stockhausen, Xenakis, com a Segunda Escola de Viena, etc. Minha história com a moça não interessa, mas ela tinha razão. Costumo não gostar destes autores, contudo há exceções e uma delas é este concerto.

Elgar e sua batuta

Me deu vontade de bater nela com a enorme batuta de Elgar, mas acabamos passando uns bons seis meses juntos, não obstante meu gosto por aquela “vulgaridade”. Então, desde que soube que Czekster se dedicara a esmiuçar a famosa interpretação de du Pré, fiquei encantado e meio enciumado, porque o Concerto era meu e de Jacqueline e fim!

Mais: como se não bastasse, o livro de Czekster tinha outra característica perturbadora. Eu sou uma pessoa avessa a ler filósofos, não gosto. Também sou totalmente hostil a romances-ensaios como, por exemplo, O homem sem qualidades, de Robert Musil. (OK, estou aqui desfiando perigosamente alguns de meus vários desvios de caráter). Só que amo profundamente um filósofo e ele se chama Michel de Montaigne. A forma com que Montaigne aborda seus temas me deixa inteiramente envolvido. Além de possuir um texto maravilhoso, ele mistura histórias pessoais e observações sobre temas menores, partindo para conclusões que às vezes admite duvidosas. É um escritor glorioso. Para cúmulo, ainda tem muito humor e uma capacidade argumentativa absolutamente anormal. É agradável lê-lo. Ele conversa com o leitor como faz Machado. E Czekster escolheu-o para escrever um ensaio “à moda de”. É muita coisa em comum.

Desta forma, mesmo sem abrir o livro, mesmo observando de longe o volume, eu sabia que ele era para mim.

(Desculpe, Czekster, mas me senti como o personagem de A Vida do Outros, o capitão Gerd Wiesler (Ulrich Mühe) que termina o filme dizendo “É para mim”).

Mas demorei uns dois meses para abrir A Nota Amarela. Olha, gostei demais.

Czekster dividiu a narrativa em 31 capítulos, que é aproximadamente o número de minutos de duração do Concerto. Numerou-os em ordem descendente, sublinhando os minutos faltantes da execução do mesmo — o autor não faz isso de forma arbitrária, tem suas razões. Como disse, o livro é escrito na primeira pessoa do singular e, no ensaio, o autor deixa claro que leu todos os livros e entrevistas disponíveis de du Pré. Eu li muito menos e é claro que as coisas batem. Jamais saberemos o quanto o texto é du Pré, mas eu creio que é muito. Para nossa sorte, Czekster não fala sobre a doença que vitimou a carreira da violoncelista e a própria. A carreira de du Pré foi curta em razão da esclerose múltipla, que a forçou deixar os palcos aos vinte e oito anos de idade. Ela viveu apenas 42 anos.

Em determinado momento, Jacqueline vê, na plateia, uma mulher com um lenço amarelo, e aquilo a perturba. Ela se pergunta o motivo disso, pensando até se em seu guarda-roupa esta cor aparece ou não. Até que ela lembra que seu professor de violoncelo, o grande William Pleeth, presente ao concerto, um dia lhe dissera que os chineses acreditavam que uma nota amarela seria “a partícula de som perfeito que deu origem ao Universo”. Ela seria a nota perfeita, aquela que o músico deveria alcançar ou se aproximar ao máximo. Porém, toda vez que ela sente que a tal supernota está iminente, sobrevém-lhe enorme angústia e medo.

Escrever sobre os pensamentos de um artista conhecido durante a execução de um concerto é um enorme desafio, uma verdadeira proeza. A coisa poderia ficar realmente chata com constantes referências a ensaios, acelerações, desacelerações, dificuldades técnicas, relação com o palco, olhares do maestro, erros, etc., mas Gustavo mostra-se realmente criativo e não nos entrega — para usar uma expressão da moda — mesmice. O livro é feérico e Jacqueline está dentro de um drama que envolve angústia, dores, digressões, autocrítica, crítica e até certo descolamento daquilo que está fazendo.

E o ensaio sobre a escrita é brilhante, belíssimo. E também quase um thriller. A questão pessoal — penso que real — confessada pelo autor “a la Montaigne” é absolutamente grave e angustiante. Daquelas coisas de fazer a gente engolir o livro.

Recomendo muito.

Gustavo Melo Czekster | Foto: Maia Rubim/Sul21

Vista chinesa, de Tatiana Salem Levy

Vista chinesa, de Tatiana Salem Levy

Em 2014, antes de uma reunião de trabalho, a arquiteta Júlia, responsável por uma das obras da Olimpíadas de 2016, foi correr até a Vista Chinesa, que é um mirante em estilo chinês localizado no bairro do Alto da Boa Vista, Rio de Janeiro. O mirante está localizado na Floresta da Tijuca. Os seis quilômetros que ela percorreria em 40 min foram interrompidos por um homem armado que a levou para a floresta a fim de cometer um estupro.

Trata-se de um romance, pois o texto de Tatiana Salem Levy utiliza-se do variado instrumental romanesco, mas Vista Chinesa narra um caso verdadeiro. É óbvio que não é uma leitura fácil, mas também não é a bigorna que poderia ser. Não pensem que a autora desvia-se dos detalhes do estupro. Não, ela descreve claramente a violência sofrida e suas consequências. Descreve os sentimentos da abusada em todo o seu horror, mesmo durante a agressão. Porém, em capítulos curtos e habilmente escritos, desorganiza o tempo cronológico, mostrando a vida de Júlia antes e depois do estupro, a ruptura, o que era a vida antes e o que será depois, assim como o doloroso processo de reconhecimento do estuprador.

É um livro corajoso, resultado de entrevistas feitas pela autora com “Júlia”, cujo nome real aparece no final do livro. As vítimas de estupro — compreensivelmente — não gostam de falar nem de lembrar do fato. Aliás, as pessoas também não amam ouvir a respeito. A forma encontrada por Levy foi a de escrever seu livro como se fosse uma carta de Júlia para seus dois filhos, nascidos após o crime. O formato é engenhoso, porque permite um tom muito sutil, ao mesmo tempo brando e extraordinariamente franco, o que deixa o romance ainda mais impactante.

Recomendo fortemente.

Tatiana Salem Levy

Caim, de José Saramago

Caim, de José Saramago

Caim é o que odeia deus.
José Saramago

Quem não sabe quem foi Caim, o que matou Abel e que foi uma espécie de anti-herói bíblico? É dele que trata este romance de Saramago.

Bem, podemos facilmente dividir a obra de Prêmio Nobel José Saramago (1922-2010) entre os livros sérios e os divertimentos. Caim está decididamente entre os divertimentos. Narrativa leve, constantemente cômica e fluida, é uma road novel a pé e em jumento pelo Velho Testamento. Talvez melhor fosse chamar o romance de picaresco, “diz-se picaresco dos romances e das peças de teatro cujo herói é um aventureiro ou um vadio que vai de um lugar a outro, sem destino determinado”. O surpreendente capítulo final — que não será contado aqui — dá uma inesperada grandeza à sucessão de boas piadas contidas no romance.

Como fez em O Evangelho segundo Jesus Cristo, aqui Saramago retoma a Bíblia como base e o faz com graça e inteligência extremas. O livro começa com a história com Adão e Eva no paraíso. Após os eventos que levam à expulsão deles, Caim nasce, cresce, mata o irmão Abel e logra convencer deus de ser Ele o culpado pelo fato de ver e não interferir. Admitindo em parte sua culpa, deus poupa Caim mas dá-lhe uma punição: ele será um errante. E aqui inicia-se o que chamei de road novel: as andanças de Caim pelas histórias do Velho Testamento: Lilith, Jó, Abraão, Noé, etc. O efeito muitas vezes é cômico, mas há um compromisso complexo e indignado além da paródia. Profundas questões morais alternam-se com fatos rotineiros.

Caim chama a atenção da bela e casada (e rica) Lilith e se torna o amante dela. Mas, é dispensado após fazer-lhe um filho e decide seguir pelo mundo. A falta de contentamento parece ser um castigo divino. Errante, sobre um burrinho, Caim começa a viajar por diferentes tempos e lugares.

Em seu caminhar, Caim passa pelas histórias mais conhecidas (só the best of) do Velho Testamento. Saltando no tempo, pois há estradas que apresentam “presentes diferentes”, Saramago dedica um olhar mais do que debochado a cada uma delas. E todas elas possuem um elemento comum além da presença de Caim: um deus mau ou pior do que isso, um deus que parece desejar apenas punir ou vingar-se de sua criação — Caim, Abraão, Jó… — ou que se compraz com limpezas étnicas (expressão minha) — Sodoma e Gomorra, o episódio da arca de Noé…

Com humor corrosivo e paradoxal leveza, Caim não é leitura indicada para carolas ou quetais. Ou é, pois os católicos costumam ignorar o Velho Testamento. Um livro que redime Caim e acusa deus de ser o autor intelectual dos crimes mais hediondos deveria talvez irritar mais os judeus do que os católicos? Não sei e, para dizer a verdade, nem me interessa. O que me importa é a alta diversão proporcionada por Saramago neste romance despretensioso e de final arrebatador.

Entre seus episódios, Saramago vai filtrando heresias como a ideia de que, se antes deus aparecia aos homens, agora ele deixou de fazê-lo pela vergonha gerada por algumas de suas tristes atitudes ou, numa frase do português com destino ao Citador: “A história dos homens é a história de seus desacordos com deus, nem ele nos entende nem nós o entendemos.”

Caim é, enfim, o personagem que Saramago encontrou para levar ao extremo sua ideia de que onde há movimento também há inconformismo e, portanto, uma história que valha a pena contar. E além de revisar o Antigo Testamento, este romance analisa aquela outra fonte de nossa tradição cultural que é a Odisseia. Como Ulisses, Caim também muitas vezes esconde seu nome verdadeiro e se propõe a viver seu destino errático, não sem esconder um ás na manga.

José Saramago (1922-2010)

 

 

O médico das termas, de Arthur Schnitzler

O médico das termas, de Arthur Schnitzler

O escritor e tradutor Marcelo Backes realizou um belo esforço para tornar Arthur Schnitzler um clássico no Brasil. Não conseguiu, mas deixou-nos um notável legado. Este excelente autor austríaco, contemporâneo de Freud — com quem manteve contato e possui uma série de afinidades –, foi médico, dramaturgo, romancista e contista. Seus temas giram torno de psicologia, sexo e morte. Dele é Breve Romance de Sonho, história que foi utilizada por Stanley Kubrick em De Olhos Bem Fechados.

O médico das termas é uma obra tão curta quanto intensa em que Schnitzler expõe as dúvidas sentimentais de um médico que se divide entre duas jovens, Sabine e Katharine, de diferentes classes sociais. O livro é ima joia de perfeição. O Dr. Gräsler é um equivocado contumaz que parece lutar para fracassar. Sua psicologia é de verossimilhança absoluta e o livro seria um clássico a receber reedições e reedições se nossa sociedade fosse mais esperta e leitora. Gräsler parece fugir de quem finalmente o aceita — de quem talvez o ame. Sempre deseja a mulher da qual acaba de desistir, está com uma e quer outra, está com outra e conclui que primeira é a ideal. Paradoxalmente, a frieza expositiva do autor combina muito bem com a quentíssima história. O uso do monólogo interior e a prosa fluida e nua caracterizam o romance.

Médico das termas é a mais baixa categoria na profissão. É aquele médico que atende pessoas em estações de águas termais. Ele fica disponível em hotéis durante a alta temporada, sem nada a fazer na baixa. Então, passa a vida em busca de verões e de hotéis. Trabalha na Europa na durante os meses de calor e depois, quando esfria, vai para a quentinha Lanzarote, na costa da África, próxima do Marrocos.

A partir daqui, meu texto contém spoilers. Após o suicídio de sua irmã solteira Friederike, o Doutor Gräsler passa o verão como médico de spa em uma cidade termal. Lá ele conhece e se apaixona por Sabine, de 27 anos, filha de um cantor de ópera. Sabine deveria ter se tornado cantora a pedido de seu pai, mas depois trabalhou como enfermeira. Seu noivo, um médico, morreu jovem, coitado. Sabine é linda e inteligente. O Dr. Gräsler reconhece que Sabine é a mulher perfeita, mas não consegue abordá-la. Quando as coisas parecem tomar um rumo, vocês já sabem — ele foge para sua cidade natal. Lá ele arranja outro caso com uma simples lojista, mas Katharina lhe parece fácil e vulgar. Ele mora por um tempo com ela, sempre com saudades de Sabine.

Quando volta para o amor de Sabine, é tarde. Esta lhe dá um belo e mais que merecido pé na bunda.

Então, ele retorna correndo para Katharina, seu verdadeiro amor, mas ocorre um problema que nem meu amor aos spoilers faz contar. Deste modo, o médico, desprezador profissional, fica deprimido e sozinho. Neste ínterim descobre casos de sua irmã Friederike, aquela que morreu. E ele, pensando que ela era uma imaculada virgem…

Depois de ver todos os seus planos derreterem — há outros, profissionais — Gräsler casa em alguns dias com uma agradecida Frau Sommer. O inverno está chegando. Ninguém vai mais às termas. O casal vai para outro hotel em Lanzarote, onde está quente e há desocupados para serem tratados. Lá, ele será médico para o veraneio.

Recomendo fortemente, mas acho que agora só em sebos.

Arthur Schnitzler (1862-1931)

Doramar ou A Odisseia, de Itamar Vieira Junior

Doramar ou A Odisseia, de Itamar Vieira Junior

Torto Arado recebeu merecido reconhecimento público no Brasil. A história de Bibiana e Belonísia é ótima. É um esplêndido livro que gira em torno de vários temas, preferencialmente a escravidão, o racismo e a situação da mulher. Além disso, dentro de um arcabouço poético raras vezes obtido, também abre um Brasil desconhecido das grandes cidades. O livro é portentoso e vendeu 200 mil exemplares em nosso país tão triste e pouco leitor. Se não me engano, Torto Arado é o terceiro livro de Itamar. Antes, ele havia publicado A Oração do Carrasco e Dias. Pois este Doramar é uma revisão ampliada de Oração. Deixando claro: Doramar não é uma apenas uma reedição revisada. Há inéditos nele.

Sim, ainda prefiro Torto Arado, mas, puxa vida, como Doramar é bom! As razões de sua qualidade são parecidas: traz questões sociais de negros, ribeirinhos, índios, mulheres e alcança profunda compaixão e poesia. Mas a poesia de Itamar não torna as coisas sujas mais belas, ela é um filtro catalisador de impressões, empatias e ódios.

Contos como A Floresta do Adeus, Alma, VoltarDoramar ou A Odisseia retomam o tema das mulheres que enfrentam situações adversas. No último conto, o que dá título ao livro, é narrada a história de uma empregada doméstica que, ao sair do trabalho, vê um cão à morte e queda-se ou desaba em pensamentos sobre sua condição de mulher pobre e negra. O profundamente poético e terrível Meu mar (fé) faz lembrar vagamente outra obra-prima, o conto Mijito, de Lucia Berlin. Alma conta a história de uma escrava que foge e inicia uma caminhada obstinada e solitária ao interior do país. Fala da escravidão e tem um final arrepiante. A Oração do Carrasco é sobre um profissional da morte extremamente pragmático, que não contesta a necessidade de seu ofício, mas que não consegue convencer seu filho a abraçar a mesma profissão. Manto da Apresentação traz o artista plástico Arthur Bispo do Rosário. Os outros contos não são esquecíveis.

O resultado é um painel triste e espantoso. Itamar é um artesão, seus contos trazem um misto de lirismo e dureza, sendo de linguagem extremamente trabalhada, mas cujo suor não é passado ao leitor. A finalização de alguns deles — como A Floresta do Adeus — é de um virtuosismo arebatador. Acho que Itamar é o autor mais vendido atualmente no Brasil e tenho a certeza de que este posto foi raras vezes melhor ocupado.

Recomendo fortemente.

Mesmo inferior a Torto Arado, Doramar é excelente. Itamar veio para ficar.

O Impostor, de Javier Cercas

O Impostor, de Javier Cercas

O Impostor narra o escandaloso caso de Enric Marco. Marco era uma espécie de “testemunha viva” da história da Espanha recente, tendo participado da Guerra Civil Espanhola, sido deportado para a Alemanha, sobrevivido ao campo de concentração nazista de Flossenbürg, e — de volta à Espanha — participado da luta antifranquista por quase quatro décadas… Só que não.

Mais: Marco era uma das “reservas morais” do país, tinha concedido mais de 8 mil palestras, fora entrevistado por todos os meios de comunicação, detalhara suas histórias em minúcias — pois possuía enorme conhecimento de história e criara sua própria biografia sempre com um pé firme na verdade –, só que era tudo fantasia. Neste “romance sem ficção”, Cercas conta toda a lorota de Enric Marco, O Impostor mostra os mecanismos através dos quais Marco forjou uma nova biografia em vida.

Enric Marco é um grande personagem. Diz o Google que ele, aos 100 anos, ainda está vivo. Ele tem mil máscaras, sendo uma espécie Alonso Quijano, o homem que criou Dom Quixote para si mesmo. Porém, se o tema e o personagem são sensacionais, às vezes Cercas fica aquém do mesmo, dando voltas e mais voltas para sempre reencontrar a famosa citação de Faulkner que diz que “o passado nunca passa, não é sequer passado, mas apenas uma dimensão do presente”. Cercas fez muitas entrevistas com Marco e com quem o cercava, e foi pouco a pouco destruindo praticamente todas as afirmações sobre a biografia do mentiroso. O livro também comenta bastante a relação entre os dois e isto é um de seus pontos altos. O diálogo imaginário que ele tem com Marco é soberbo.

Marco tem uma relação de amor e de ódio com o autor. Primeiro quer que ele o salve, que o livro sirva para recuperá-lo frente à opinião pública. Depois, quando vê que o escritor desmonta cada uma de suas versões dos fatos, quase chora dizendo “deixe-me ao menos alguma coisa”. Também retrata o seu “escritor” como “um pequeno burguês neurótico e fraco, com a consciência sempre a incomodar”, mas que acaba por lucrar com seus personagens: “Você não suspeita de que vivi o que vivi e inventei o que havia inventado só para você contar?”.

Marco é um midiopata, um homem obcecado por aparecer e por tornar-se uma “autoridade”, que quer ser admirado de qualquer maneira. E era uma autoridade… Ante a qual a opinião pública espanhola quedou-se boquiaberta.

Quem descobriu a impostura de Marco foi o historiador Benito Bermejo, um daqueles caras que não se contenta com qualquer resposta. A falta de coincidência em alguns pontos das próprias falas do “herói cívico”, meteram um mosquito no ouvido de Bermejo, que partiu para uma investigação mais exaustiva. Tal investigação revelou a grande mentira de alguém que representava a Associação das Vítimas do Nazismo na Espanha, daquele que durante 20 anos foi uma figura emblemática na Federação das Associações de Pais de Estudantes da Catalunha, daquele que foi secretário da CNT (Confederação Nacional do Trabalho) no final dos anos setenta. E Marco jamais foi deportado, nunca pôs os pés num campo de concentração alemão, nem foi um ferrenho opositor do franquismo. Enric Marco era uma invenção, uma ficção.

Cercas escreve o livro sem a intenção de defender ou justificar o ato aberrante. Sua finalidade está mais próxima da necessidade de um confronto com o espelho. Dele e do próprio leitor. Quantos de nós somos impostores? Algumas mentiras são nobres como Platão consideraria, oficiosas como Montaigne colocaria, ou uma válvula de escape da realidade como Nietzsche afirmava? Pois Marco, depois dos 50 anos de idade, decidiu se levantar contra o anonimato de sua vida. E o fez mentindo, inventando uma história heroica que conseguiu manter por mais 30 anos, sabendo aproveitar-se do esquecimento histórico.

A realidade mata e a ficção salva. Essa premissa ressoa insistentemente à medida que as páginas passam. Talvez sim. A mentira de Marco é a Rainha das mentiras, é a Mentira das mentiras, é uma zombaria implacável contra a dor de quem realmente morreu ou sobreviveu no inferno. Porém, nela também fica clara a necessidade humana de sobreviver diante da realidade inóspita e avassaladora.

Recomendo.

Obs.: A edição brasileira, com a figura de Marco ocupando a parte vazada da capa, é um achado.