Caim, de José Saramago

Caim, de José Saramago

Caim é o que odeia deus.
José Saramago

Quem não sabe quem foi Caim, o que matou Abel e que foi uma espécie de anti-herói bíblico? É dele que trata este romance de Saramago.

Bem, podemos facilmente dividir a obra de Prêmio Nobel José Saramago (1922-2010) entre os livros sérios e os divertimentos. Caim está decididamente entre os divertimentos. Narrativa leve, constantemente cômica e fluida, é uma road novel a pé e em jumento pelo Velho Testamento. Talvez melhor fosse chamar o romance de picaresco, “diz-se picaresco dos romances e das peças de teatro cujo herói é um aventureiro ou um vadio que vai de um lugar a outro, sem destino determinado”. O surpreendente capítulo final — que não será contado aqui — dá uma inesperada grandeza à sucessão de boas piadas contidas no romance.

Como fez em O Evangelho segundo Jesus Cristo, aqui Saramago retoma a Bíblia como base e o faz com graça e inteligência extremas. O livro começa com a história com Adão e Eva no paraíso. Após os eventos que levam à expulsão deles, Caim nasce, cresce, mata o irmão Abel e logra convencer deus de ser Ele o culpado pelo fato de ver e não interferir. Admitindo em parte sua culpa, deus poupa Caim mas dá-lhe uma punição: ele será um errante. E aqui inicia-se o que chamei de road novel: as andanças de Caim pelas histórias do Velho Testamento: Lilith, Jó, Abraão, Noé, etc. O efeito muitas vezes é cômico, mas há um compromisso complexo e indignado além da paródia. Profundas questões morais alternam-se com fatos rotineiros.

Caim chama a atenção da bela e casada (e rica) Lilith e se torna o amante dela. Mas, é dispensado após fazer-lhe um filho e decide seguir pelo mundo. A falta de contentamento parece ser um castigo divino. Errante, sobre um burrinho, Caim começa a viajar por diferentes tempos e lugares.

Em seu caminhar, Caim passa pelas histórias mais conhecidas (só the best of) do Velho Testamento. Saltando no tempo, pois há estradas que apresentam “presentes diferentes”, Saramago dedica um olhar mais do que debochado a cada uma delas. E todas elas possuem um elemento comum além da presença de Caim: um deus mau ou pior do que isso, um deus que parece desejar apenas punir ou vingar-se de sua criação — Caim, Abraão, Jó… — ou que se compraz com limpezas étnicas (expressão minha) — Sodoma e Gomorra, o episódio da arca de Noé…

Com humor corrosivo e paradoxal leveza, Caim não é leitura indicada para carolas ou quetais. Ou é, pois os católicos costumam ignorar o Velho Testamento. Um livro que redime Caim e acusa deus de ser o autor intelectual dos crimes mais hediondos deveria talvez irritar mais os judeus do que os católicos? Não sei e, para dizer a verdade, nem me interessa. O que me importa é a alta diversão proporcionada por Saramago neste romance despretensioso e de final arrebatador.

Entre seus episódios, Saramago vai filtrando heresias como a ideia de que, se antes deus aparecia aos homens, agora ele deixou de fazê-lo pela vergonha gerada por algumas de suas tristes atitudes ou, numa frase do português com destino ao Citador: “A história dos homens é a história de seus desacordos com deus, nem ele nos entende nem nós o entendemos.”

Caim é, enfim, o personagem que Saramago encontrou para levar ao extremo sua ideia de que onde há movimento também há inconformismo e, portanto, uma história que valha a pena contar. E além de revisar o Antigo Testamento, este romance analisa aquela outra fonte de nossa tradição cultural que é a Odisseia. Como Ulisses, Caim também muitas vezes esconde seu nome verdadeiro e se propõe a viver seu destino errático, não sem esconder um ás na manga.

José Saramago (1922-2010)