Só a indiferença é livre. O que tem caráter distintivo nunca é livre; traz a marca do próprio selo; é condicionado e comprometido.
THOMAS MANN
Ironicamente, no dia de Finados, o RS Urgente publicou um post sobre o silêncio da intelectualidade gaúcha. O post era mais do que simples, apenas reproduzia um comentário do leitor Franklin Cunha:
O que mais nos impressiona nessa cortina de silêncio em torno das denúncias de crimes do atual governo, é a absoluta ausência de manifestações da intelectualidade gaúcha. Descrevem o pôr-do-sol, os ipês floridos, a feira do livro, as festas gauchescas, preocupam-se com os monumentos públicos, como se todas essas “monstruosidades” geradas no Piratini, não existissem. Não podemos acreditar que todos eles foram cooptados pelas benesses do poder.
Sim, simples, mas provocativo na medida certa e mais do que suficiente para gerar um bom debate. Quero começar definindo o que entendo por intelectualidade. São os moços dos cadernos de cultura, são as pequenas celebridades que gostam de tentar reflexões inteligentes sobre costumes, política internacional, escritores, arte em geral, sociologia, antropologia e o diabo. São aqueles que acorrem aos jornais para dar sua interpretação dos fatos, os que preveem, os oráculos que escrevem hoje para poderem dizer “eu avisei” amanhã. E são os bons escritores, ensaístas e articulistas que produzem essa coisa intangível que chamamos cultura ou conhecimento. Ou seja, minha concepção da palavra é pré-Gramsci e pré-antiga.
Há tais pessoas por aqui e em todo lugar.
Em primeiro lugar, esta intelectualidade parece traumatizada com um fato que começou em meados do século XX e que hoje mostra cada vez mais seus resultados: a pouca importância que os intelectuais passaram a ter. Em tempos nem tão remotos, escritores e artistas eram convidados pelo poder para participarem não apenas de regabofes mas para grudarem suas grifes neles. Apenas para seguir a senda de palavras iniciadas por “gr”, diria que Graham Greene, por exemplo, era habitué de vários primeiros-ministros ingleses e presidentes americanos quando o encontro era internacional. Greene foi uma das últimas celebridades do gênero “escritor famoso que trata de política internacional em seus livros”. Lembro que, certa vez, pediu para ser apresentado a Augusto Pinochet apenas para ter o prazer de negar-lhe um cumprimento. Foi o que fez. Só que hoje há um problema: a literatura fracassou e não cria mais celebridades, sejam planetárias, sejam no microcosmo brasileiro. A importância do escritor e do artista diminuiu.
Em segundo lugar, Swift era um gênio e sempre teve razão ao chamar de Laputa a terra dos intelectuais em Gulliver. Em geral, sempre estivemos — e já que as ofensas serão duras, passo a dar a cara ao tapa –- à venda. Greene não, porém muitos outros sim. Olhem para o Brasil. E olhem para o habitual. Adoro Drummond, mas o que ele fazia com Capanema durante o Estado Novo? Ah, compreendo, eram amigos de infância… Deixo a palavra ao poeta Fernando Monteiro, que não habita Laputa.
Nossos parnasianos, condoreiros, simbolistas,
modernistas, praxistas e taxidermistas
da poesia do pantanal depois da lama seca
descobrem de novo o Brasil de Cabral,
trabalham para Capanema e não faz mal,
tomam remédio para dor de cabeça
e vão dormir em Pasárgada,
onde são mais que amigos do rei
de espadas dos jogos de cartas
marcadas da carreira literária
do acadêmico Getúlio Vargas
Os poetas brasileiros não morrem em revoluções.
Quando elas acontecem, os bardos nacionais
preferem segurar os empregos.
Na Revolução de 30 não morreu um só Dante
de Cascadura para contar como é descer ao inferno.
Todos eles aspiram ao céu de palmas abertas
soltando as batatas quentes na corrida
dos mil metros para ocupar ministérios,
secretarias da cultura e bibliotecas nacionais
reservadas para os insistentes em Poesia Sempre
(palmas para eles com uma só mão no ar rarefeito
da imortalidade a cacete, chá e simpatia
de casca dos bóias-quentes).
(Trecho do poema Vi uma foto de Anna Akhmátova)
Não é um exagero. É a razão. Estamos sempre prontos a aderir, mesmo que seja a um Getúlio Vargas. Exemplos há aos montes. Lembram quem foi o autor de Zélia, uma paixão? Pois é, foi o incensado autor de Encontro Marcado, Fernando Sabino.
Mas voltemos ao Rio Grande. O que quero dizer é que a LIC (Lei de Incentivo à Cultura) tornaram os autores ainda mais dependentes e putos. Quem falará mal de Yeda Crusius se sabe que ela toma chás com bolachas acompanhada da Secretária da Cultura Mônica Leal? Tal fato serve de pretexto para quem já não tem lá muita disposição para tratar de temas espinhosos. Não posso protestar porque meu projeto está nas mãos deles… Aqui temos um raro e débil protesto onde a governadora é tratada com um respeito, digamos, patético.
Secretária Mônica Leal (acima, à direita)
Em terceiro lugar, há a pequena grande imprensa gaúcha. Não há nenhuma disposição nela para abraçar vozes dissonantes. Obviamente, tal fato não libera nossos gloriosos produtores de cultura de seus compromissos éticos, mas afirmo que a maioria deles conta com a divulgação de seus trabalhos por nosso órgão maior, nem que este muitas vezes acabe apontando para seus rabos. A justificativa aqui é a de que, Pô, fiz uma catilinária contra a situação, mas eles jogaram no lixo… O onipresente e sorridente Luís Augusto Fischer, que trabalhou Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre durante a gestão de Tarso Genro, parece estar desobrigado de qualquer comentário sobre o Estado e lembro apenas de ter lido uns muxoxos quando vimos o acervo de Erico Verissimo seguir para o Rio de Janeiro.
Nada justifica o silêncio. A única exceção que vejo é vergonhosa para a esquerda gaúcha. Trata-se do professor e escritor Juremir Machado da Silva. Juremir é uma das pessoas mais afastadas da esquerda que conheço, porém é o único ter coragem de ironizar o estado das coisas. O resto fica tipo assim, entende?