‘Como fazemos com o sexo e a religião, não gostamos de falar sobre a memória’: a pianista Angela Hewitt fala sobre como ela mantém a sua em forma

‘Como fazemos com o sexo e a religião, não gostamos de falar sobre a memória’: a pianista Angela Hewitt fala sobre como ela mantém a sua em forma

A pianista reflete sobre as extraordinárias exigências de memória demandadas dos solistas de concerto e como ela continua a treinar esse músculo

Por Angela Hewitt
Traduzido do The Guardian

Quando subo no palco, lembro-me de “cantar” cada nota’… Angela Hewitt. Fotografia: Keith Saunders

Acontece com todos os pianistas: aquele momento aterrorizante quando você está no palco e não consegue se lembrar do que vem a seguir. Certa vez, meu ex-professor, Jean-Paul Sévilla, estava tocando as Variações Goldberg de Bach quando, ao final da Variação 7, não conseguia se lembrar como começava a Variação 8. No momento em que ele saiu do palco para encontrar sua partitura, ele lembrou, mas sua noite já estava arruinada. Depois aconteceu de Vlado Perlemuter sair de casa para a sala de concertos, quando questionado pela esposa se tinha esquecido de alguma coisa, um amigo lhe disse brincando: “O começo do concerto!” Quando, algumas horas depois, Vlado subiu ao palco em Paris para executar o Quarto Concerto para Piano de Beethoven (que começa com um solo de piano famoso), ele não conseguiu encontrar as notas. Minha própria vez chegou quando eu tinha 50 anos, tocando o Cravo Bem Temperado de Bach (todas as quatro horas e meia dele) de memória em Stuttgart. Foi parte de uma turnê mundial na qual toquei aquela obra gigantesca 56 vezes em 26 países. Naquela noite, no entanto, entrei errado na grande fuga em Lá menor do Livro 1 e não consegui encontrar como sair… Eu tive que levantar para ir buscar a partitura. Você se sente muito envergonhado — mas somos apenas humanos e às vezes isso acontece.

No geral, fui abençoada com uma memória excelente — suponho que alguns diriam até prodigiosa, já que executei as obras solo completas para teclado de Bach (com exceção de A Arte da Fuga), as 32 sonatas de Beethoven e quem sabe quantos milhões de outras notas da memória ao longo dos anos. Sempre pensei que seria uma boa ideia medir meu cérebro antes de memorizar todo aquele Bach e depois novamente para ver como ele havia se desenvolvido e mudado. Tarde demais agora. Aos 64 anos, ele definitivamente está diminuindo, e a memorização tornou-se uma atividade muito consciente, frustrante e demorada. Mas continuo nisso porque a memória é um músculo que precisa ser constantemente usado.

Quando você é um jovem pianista, a memória vem quase sem pensar. Uma grande parte dela é memória reflexa; acrescente a isso a memória auditiva (especialmente se, como eu, você tivesse ouvido absoluto), a memória visual (alguns pianistas, como Yvonne Loriod, que era casada com Olivier Messiaen, tinha uma peça memorizada depois de olhá-la apenas uma vez) e a memória de associação, e você tem um processo relativamente rápido.

Digo que eu “tinha” afinação perfeita porque ela diminuiu com a idade. Quando criança, eu conseguia nomear instantaneamente todas as notas, mesmo nos acordes mais complicados. Agora preciso de tempo para pensar nisso. A tonalidade perfeita está relacionada à memória: se uma fica fraca, o outra também. Todo mundo de uma certa idade que já encontrou esse problema. Isso torna a memorização uma tarefa muito mais complicada.

A memória é um assunto sobre o qual não gostamos de falar – é como o sexo, o amor e as crenças religiosas – muito provavelmente porque temos medo de perdê-la. É preciso coragem para admitir até para si mesmo que sua memória está falhando. Muitas vezes, amigos ou familiares percebem primeiro. Não devemos nos sentir envergonhados, mas sim abraçar esse sinal normal de envelhecimento e fazer tudo o que pudermos para manter nosso cérebro vivo. Fico chateada quando não consigo lembrar onde coloquei meu cartão de embarque, como aconteceu esta manhã em Heathrow (apenas para encontrá-lo no compartimento externo da minha mala, onde devo tê-lo colocado cinco minutos antes), quando não me lembro se tomei minha pastilha diária de TRH (terapia de reposição hormonal) — agora há algo que ajuda mulheres mais velhas com memória! –, e quando cometo o mesmo erro repetidamente ao aprender uma nova peça.

No verão passado, fui presidente do júri da competição de Bach em Leipzig, na qual os competidores podiam escolher se tocariam de memória ou com a partitura. (Com a partitura hoje em dia significa principalmente “com um iPad” acrescentado de um pedal para virar as páginas na tela, embora um concorrente tenha usado o aplicativo que permite fazer uma careta facial para virar a página – algo que achei profundamente desconcertante). Na idade deles, eu nunca teria sonhado em usar a partitura, mesmo para complicadas peças contemporâneas. No entanto, alguns deles o fizeram. Eles não poderiam ter gasto o tempo extra necessário para memorizar a música? Sei que a tendência hoje em dia é dizer que não importa, mas sei que quando consigo realizar algo com segurança de memória, isso me dá uma sensação maravilhosa de liberdade e realização.

Angela Hewitt se apresentando na sala de concertos St George em Bristol. Fotografia: Stephen Shepherd/The Guardian

Uma das falhas mais comuns dos pianistas é que passamos muito tempo tocando as notas e pouco tempo pensando no que estamos fazendo. “Pense 10 vezes e depois toque uma vez” já dizia o sábio Franz Liszt, que balbuciava mais notas por minuto do que qualquer outro (e que, junto com Clara Schumann, foi o primeiro pianista a tocar de memória – ato considerado arrogante pela público da época). Na verdade, o melhor trabalho de memória é feito longe do teclado – apenas olhando a partitura, memorizando seu dedilhado, as harmonias, os lugares onde é fácil errar, os intervalos, quantas notas há em um acorde, a dinâmica, o fraseado; nada é simples ou evidente demais para passar despercebido. Você deve se visualizar tocando a peça sem estar em um teclado. Então depois vá, toque e você ficará surpreso com o progresso que você fez.

Mesmo quando você está muito concentrado, o cérebro é constantemente assaltado por pensamentos estranhos e muitas vezes tolos. Como um pianista tocando de memória, você se treina para lidar com isso. Eu chamo isso de modo de dupla concentração. Tosse da plateia (as pessoas percebem que apenas uma tosse no lugar errado pode facilmente derrubar tudo?); o inevitável celular (sigo como se nada tivesse acontecido, senão piora as coisas); até uma vez tive um besouro subindo lentamente pelo meu braço nu durante uma fuga de Bach. Você tem que ser capaz de contar com sua concentração para passar, não importa o que aconteça.

Você também deve se treinar para pensar no que vem depois na partitura ou na memória — mesmo que apenas por uma fração de segundo. À medida que o cérebro envelhece, isso se torna ainda mais difícil, mas necessário. Acho que é por isso que os pianistas mais velhos em geral (Martha Argerich sendo a exceção) tendem a tocar mais devagar do que os mais jovens, para quem a velocidade costuma parecer o objetivo final. É também por isso que, como público, ficamos mais perturbados com os andamentos rápidos à medida que envelhecemos. É demais para nossos cérebros mais lentos processarem.

Aos 20 anos, morei no estúdio de um artista acima de uma filial do Banque Nationale de Paris por dois anos. O pessoal do banco sabia que eu era a única tocando no andar de cima, praticando, e eles afirmaram não se importar, exceto quando eu “tocava a mesma coisa repetidamente”. Para roubar uma observação do ator Roger Allam, a palavra francesa para ensaio é “répétition”, e é isso que você precisa fazer. Arranje um piano silencioso se isso deixar sua família ou vizinhos loucos; Costumo ter um em quartos de hotel quando estou em turnê.

Tocando com a Aurora Orchestra em Kings Place em Londres. Fotografia: www.kingsplace.co.uk/kplayer

Outra coisa que você pode fazer para treinar o cérebro é pensar em várias coisas ao mesmo tempo. Você pode praticar isso estando em um restaurante lotado e ouvindo duas ou mais conversas simultaneamente. Você precisará disso se estiver tocando uma fuga de Bach, que pode ter até cinco vozes, cada uma tão importante quanto a outra. Quando subo no palco, lembro-me de “cantar” cada nota; na verdade, quando pratico, estou constantemente cantando, tentando imitar a voz humana em um instrumento cujos sons são produzidos por martelos batendo nas cordas. Ao cantar, envolvo minha concentração e minhas emoções, assim como minha memória. Ao contrário do meu compatriota Glenn Gould, quando estou no palco ou em um estúdio de gravação, faço isso silenciosamente.

Se tudo isso soa muito cansativo então, acredite, é mesmo. Faça pausas quando sentir que seu cérebro está cansado e certifique-se de que ele receba todos os nutrientes de que precisa. Álcool e pílulas para dormir não ajudam – e é por isso que evito o primeiro e me recuso a usar o segundo. Nos bastidores das salas de concerto, tenho os alimentos para o cérebro prontos: sardinhas enlatadas, abacates, manteiga de amendoim, biscoitos de centeio, mirtilos, bananas e muita água.

Muitas vezes ouço as pessoas dizerem que não conseguem mais memorizar nada. Sim, mas você realmente tentou? Se você não é músico, pegue um poema, uma receita ou o telefone dos seus melhores amigos. Acima de tudo, não desista. Conheça o seu cérebro e trabalhe nele.

Sempre digo que não conseguiria decorar as obras completas de Bach e ter quatro filhos. Isso teria sido impossível. Eu não tenho nenhum. Mas tive uma vida maravilhosa na companhia de algumas das maiores mentes que já existiram, e para eles, e para meus pais músicos que me colocaram na frente de um piano de brinquedo aos dois anos de idade, eu sou para sempre grata.

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Músicas inéditas e o melhor concerto da Ospa em 2015

Músicas inéditas e o melhor concerto da Ospa em 2015
O maestro Petri: esse eu respeitei
O maestro Petri: esse eu respeitei

Ontem, tivemos o melhor concerto da Ospa deste ano. Como faz diferença um bom regente e um bom programa! A presença de muitos músicos na plateia confirmava o óbvio: o repertório a ser apresentado era de primeira linha. Ah, e também um grupo orquestral mais arredondado, com menos rebarbas que o habitual, principalmente nos violinos. As cordas, tão criticadas por este ignaro e severo comentarista, estiveram muito melhores na noite de ontem. E não era um programa simples, pelo contrário. Tínhamos duas composições complexas e inéditas entre nós — uma de compositor contemporâneo e outra de um cara que nasceu há 150 anos, mas que tem obra pouco divulgada, apesar da alta qualidade.

Programa:

Wolfgang Amadeus Mozart: Abertura de “As Bodas de Fígaro”
Christopher Theofanidis: Concerto para fagote e orquestra
Carl Nielsen: Sinfonia nº2

Regente: Luís Gustavo Petri
Solista: Martin Kuuskmann (fagote)

Tudo começou com a chatíssima Abertura de “As Bodas de Fígaro”, música que só faz sentido dentro da ópera. Mesmo com a grife Mozart, os aplausos foram merecidamente modestos. O mérito da coisa foi a brevidade. Esqueçamos.

Martin Kuuskmann
Martin Kuuskmann, que fagote!

Tudo mudou no Concerto para fagote do norte-americano Theofanidis, escrito entre os anos de 1997 e 2002. A obra foi dedicada justamente ao solista da noite, o estoniano Martin Kuuskmann, o qual não apenas mostrou ser um excepcional solista, mas que arrancou suspiros de quem se interessa por homens. Havia real duplo sentido na frase de algumas mulheres no intervalo. Elas diziam algo como “nunca vi um fagote desses”. E riam, felizes. Todos os movimentos da peça são interessantes (I. alone, inward / II. beautiful / III. threatening, fast), com destaque para o movimento central, beautiful, baseado em melodias que se poderiam ouvir em igrejas ortodoxas gregas — espécie de inflexões rápidas de notas longas que lembram o som de gaitas de foles. Um espanto! E que solista! (Falo do som).

A noite foi finalizada com a esplêndida Sinfonia Nº 2, Os Quatro Temperamentos, de Carl Nielsen. Nela, cada movimento é curiosamente dedicado a um temperamento — colérico, melancólico, fleumático e sanguíneo. Para completar, era o dia dos 150 anos de nascimento deste compositor pouco conhecido entre nós. O silêncio em torno de seu nome é dos mais imerecidos. Suas seis sinfonias, o quinteto do sopros, assim como os concertos para clarinete e flauta deveriam estar no repertório de qualquer orquestra digna deste nome.

E a Ospa respondeu muito bem ao desafio que interpretar esta sinfonia difícil, mesmo com um dia a menos de ensaios — o feriado da última quinta-feira. A sinfonia exige muito de toda a orquestra, mas tudo ia adiante de forma lisa e fluente. Os muitos episódios sucediam-se sem traumas, passando de um grupo de instrumentos a outro. Com a exceção de um novo e pequeno erro claro das trompas, tudo esteve bem melhor articulado que o habitual, prova do bom trabalho do excelente maestro Petri, que também é pianista e compositor. Petri deve conhecer profundamente o obra, pois regeu sem partitura. Espero que volte outras vezes à Porto Alegre.

Resta saber por quê, justo ontem, as cordas da Ospa — normalmente tão rebeldes e fugidias — tocaram tão bem, estiveram mais coesas e com muito menor desafinação. E como o violinista Nielsen escrevia bem para sopros! O Allegro comodo e flemmatico é a maior prova disso, dentro da Sinfonia Nº 2.

Saímos do concerto eufóricos e, bom sinal, com dificuldades para dormir. Afinal, tudo o que é bom a gente não quer tirar da cabeça, né?

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A Ospa com Benda, um clarinet hero

A Ospa com Benda, um clarinet hero
François Benda, grande música e acidente que poderia ter sido fatal a Mozart
François Benda, grande música e acidente que poderia ter sido fatal a Mozart

E escreveremos a respeito do concerto da Ospa de ontem à noite em inevitável estilo gonzo. Tudo porque, antes e depois da função, houve uma série de encontros muito interessantes. Por incrível que pareça, muitas vezes sou parado na rua por leitores deste blog. (Confesso que vocês sete são quase 2000 visitantes diários — a gerência agradece). Bem, o primeiro encontro, você não é trouxa, foi com um leitor do blog. No saguão do Teatro Dante Barone, um rapaz apresentou-se como Vinícius Flores, estudante de Química, disse que me lia há muito tempo — deu mostras de conhecer textos meus lá de 2008, 2009 — e que, como eu, era apaixonado pela música de Shostakovich. Conversamos de forma animada sobre nosso compositor, apesar de que, ao fazê-lo, fomos forçados a percorrer sua rota de medo, morte e repressão, mas também de muita vida e da mais visceral sinceridade. Estávamos falando nas narrativas que sempre intuímos na música instrumental do russo quando tivemos que abandonar o papo. Uma pena, grande Vinícius!

O programa de ontem era belíssimo. Confira abaixo.

Programa:
Wolfgang Amadeus Mozart: Concerto para clarinete K. 622
Ludwig van Beethoven: Sinfonia n° 7, Op. 92

Regente e solista (clarinete): François Benda

São músicas célebres e, ontem pela manhã, ao ler o programa para meu filho, disse que o Concerto para Clarinete de Mozart era o tema do filme Pai Patrão, dos irmãos Taviani. Também fora usado em outros, mas este filme ficara marcado em minha memória tanto por sua alta qualidade como por Mozart. Depois, quando disse o número da Sinfonia de Beethoven que completava o programa, ele emendou que era música utilizada em Barry Lyndon, de Stanley Kubrick. Para não deixar assim, falei que o Allegretto também fora utilizado no momento mais tenso de O Discurso do Rei, o do pronunciamento…

Podemos começar pela Sétima? Além da Eroica, também esta sinfonia de Beethoven está curiosamente ligada à história de Napoleão. Sua estreia foi em Viena, sob a regência do compositor, num concerto de beneficência voltada para os soldados austríacos feridos na batalha de Hanau. Wagner tinha razão ao chamá-la de “a apoteose da dança”. É uma espetacular sucessão de danças rápidas entremeadas por uma lenta, que é uma verdadeira obra-prima, e que Berlioz fantasiava ser uma dança de camponeses, no que foi contestado por quase todo mundo. Consiste em uma marcha de caráter fúnebre e comovente. A melodia é um quase-nada de constrangedora simplicidade, mas o poder daquelas poucas notas é extraordinário. A coisa é do outro mundo, como vocês podem comprovar abaixo.

Os outros três movimentos são pura pauleira. Neles, não se encontram belos temas, mas uma força descomunal. Não são música rotineira, não é uma suíte de danças rápidas, é Beethoven demonstrando sua notável capacidade de desenvolver uma obra poderosa através de pequenos temas afirmativos e melodias celulares, é música para se ouvir batendo o pezinho com seriedade e consistência, é Beethoven absolutamente seguro de seus meios, fazendo história.

Lembro que a Sétima foi a primeira música que me deixou acordado num concerto, lá no anos 60, com o cabeçudo Pablo Komlós no pódio. Meu pai me levava nos concertos. Eu dormia, mas com a Sétima não deu. A Ospa, sob a regência de François Benda, fez jus à sinfonia e isto não é pouca coisa.

(Intermezzo para um continho)

Da Pretensão Humana

É sempre da mais falsa das suposições que ficamos mais orgulhosos.
SAUL BELLOW

Alexandre chegou a seu consultório antes do horário habitual. Sentou-se na confortável cadeira em que ouvia seus pacientes. Pegou lentamente o telefone. Enquanto aguardava que sua respiração se apaziguasse, revisava mentalmente tudo o que desejava dizer a ela – àquela bela mulher que conhecera na noite anterior. Limpou a garganta e discou. Tinha planejado uma postura que poderia ser assim descrita: seria gentil, agradável, carinhoso, inteligente, divertido, interessado e, dependendo do andamento da conversa, picante. Era cedo, ela devia ainda estar em casa. Porém, a voz que tanto ansiava reencontrar chegou-lhe burocrática, pedindo-lhe para deixar um recado logo após o sinal. Tomado de agitação, procurou em seus pensamentos algo espirituoso. Depois de alguma confusão, finalizou a mensagem dizendo:

– Dora, se queres me conhecer melhor, ouve o segundo movimento da Sétima Sinfonia de Beethoven. Aquilo sou eu. Um beijo.

Desligou o telefone sentindo-se um idiota. Permaneceu primeiramente avaliando aquele “Aquilo sou eu”. Dora pensaria que sua intenção seria a de dizer que o segundo movimento da Sétima descrevia a pérola de homem que ele era? Era o que desejava que ela fizesse. Ou Dora presumiria que o intento de Alexandre seria o de proporcionar-lhe uma lembrança agradável ou de fazer uma piada? Mas antes, ele dissera “…se queres me conhecer melhor, ouve…”. Como assim? Poderia alguém ser descrito por uma sequência de notas musicais? E Beethoven retrataria alguém como Alexandre através daquelas notas? O que Dora pensaria? Tinham conversado bastante na noite anterior a respeito do concerto que assistiram com amigos comuns. No intervalo, ela disse ser uma ouvinte contumaz de Beethoven, também declarou que, em sua opinião, faltava aos barrocos do concerto daquela noite o drama e as afirmativas curtas e repetidas de seu compositor predileto.

— Vim a este concerto por insistência da Carla e do João. Há meses fico em casa com meu filho. Sou uma descasada recente.

Alexandre ficara instantaneamente apaixonado, transtornado mesmo. Desejava aquela mulher linda e inteligente, queria ser admirado por ela, mas, sentado em sua sala, começava a desesperar-se com a mensagem que gravara. O que significava aquilo de comparar-se a uma das maiores obras do compositor que ela amava? Ontem, para agradar a Dora, ele tinha derramado todo o conhecimento musical que lembrava sobre o compositor alemão. Ao final do intervalo, trocaram seus telefones a pedido dele. Agora, ainda sentado, pôs a cabeça entre os joelhos e disse em voz baixa que até a megalomania tinha que ter seus pudores.

E Dora? Iria recusá-lo por pretensioso? Ficaria constrangida e oprimida? Fugiria por não lhe ser digna? Faria piadas com os amigos? Ou será que pensaria que ele, romanticamente, ambicionava ombrear-se aos semideuses a fim de conquistar sua princesa?

— Burro, burro, burro – pensou Alexandre, caminhando pela sala.

Dora ligou dali a três dias. Alexandre procurou marcar um jantar, porém foram-lhe impostas tantas restrições de horário, fosse para um jantar, fosse para um almoço ou café; enfim, ela parecia ter tantos compromissos – principalmente para cuidar de seu filho –, que ele entendeu tratar-se de uma negativa. E despediram-se sem marcar um reencontro específico.

Dali a dias, durante a festa do Dia dos Pais, Alexandre, um pouco alcoolizado, perguntou a seu pai:

— Pai, se tu quisesses conquistar uma mulher e tivesses a ideia de sugerir uma música para ela ouvir, que música poderia te representar?

O pai pensou um pouco e respondeu:

— Ora, meu filho, sugeriria que minha futura amada ouvisse uma música que a Maria Bethânia canta.

— Que música?

— Gostoso demais.

Sem dúvida, há megalomanias e megalomanias.

(Fim do intermezzo para o continho)

Concerto para Clarinete K. 622, de Wolfgang Amadeus Mozart, foi composto em Viena em 1791 para o clarinetista Anton Stadler. Este tocava muito, só que era um tremendo mau caráter, tendo conseguido o milagre de pedir e obter dinheiro emprestado do compositor, o qual, literalmente, não tinha onde cair morto. Claro, Mozart foi enterrado sem ver a cor. Mas notem como os clarinetistas têm sorte. O último concerto de Mozart — talvez um dos mais perfeitos e maduros compostos por ele –, as últimas obras de câmara de Brahms e algumas de Saint-Saëns também foram escritas para o clarinete. Ou seja, os deuses da música faziam com que os clarinetistas ficassem amigos de enormes compositores ao final de suas vidas, acabando por enriquecer grandemente seu repertório. Coincidência.

O Concerto K. 622 foi o último trabalho puramente instrumental de Mozart. Ele escreveu a obra originalmente para o clarinete basset, um tipo especial de clarinete que atinge notas mais graves além do registro usual. Como a maioria dos clarinetes não conseguiria tocar as notas graves que Mozart escreveu, o editor de Mozart transpôs as notas graves para o tom regular e não publicou a versão original. Os manuscritos originais se perderam. Adivinhem quem os penhorou? Acertou quem respondeu Stadler.

A Ospa atacou a obra de forma simpaticamente desafinada, e logo depois acertou as pontas. A interpretação de Benda foi tecnicamente imperfeita mas absolutamente satisfatória do ponto de vista musical. É que, no meio do primeiro movimento, ocorreu um problema com seu instrumento. O clarinete do Concerto de Mozart necessita de um apoio para deixar livre o dedão direito que normalmente segura o instrumento. Só que o apoio quebrou e Benda teve que segurar o clarinete entre as pernas. Sorte que estava sentado. Um solista comum teria parado tudo, mas Benda seguiu e mesmo assim deu um show. Com seus mais de 2 metros de altura, passou o resto do concerto fazendo arte e lutando para controlar a coisa. Um herói.

Após o concerto, fui jantar com Benda e amigos, mas evitei perguntar sobre o acidente. Preferi explorar a riqueza cultural da família Benda, a sua longa peregrinação entre a Boêmia e Santa Maria da Boca do Monte, os compositores do século XVIII Jiří  e František Benda, o pai Sebastian, coisas bem mais agradáveis de se conversar. Ele merecia isso.

É o ano dos acidentes, né Klaus?

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Ospa em noite de trocadilhos fáceis e de um flute hero

Ospa em noite de trocadilhos fáceis e de um flute hero
Após o concerto de ontem, a Ospa mereceria este sorriso e charuto do mestre.
Após o concerto de ontem, a Ospa mereceria este sorriso e charuto do mestre.

Não terei tempo para escrever com maiores cuidados a resenha do concerto de ontem à noite no Salão de Atos da UFRGS. Então, vou iniciar pelo final: foi muito bom. O maestro Carlos Prazeres entregou-se à música e o resultado foi bom para mim e para todos. Mas poderia ter sido ainda mais satisfatório… O público cometeu um grande erro. O excelente pianista georgiano Guigla Katsarava daria seu bis se voltasse pela terceira vez ao palco, puxado pelos aplausos. É a praxe, gente! E falamos com ele! Como o pessoal cessou de aplaudir logo após a segunda entrada, ficamos chupando o dedo. Ele tocou maravilhosamente o Concerto para piano nº 1, Op. 23, de Pyotr Ilyich Tchaikovsky.

Este concerto abriu a função. Foi composto entre novembro 1874 e fevereiro de 1875 e revisto no verão de 1879 e novamente em dezembro de 1888. É uma das mais populares composições de Tchaikovsky e está entre os mais conhecidos concertos para piano. Embora a estreia tivesse sido um sucesso de público, os críticos não ficaram nada felizes. Um deles escreveu que “não estava destinado a se tornar famoso”. Errou feio.

A execução da obra foi magnífica. Katsarava  trouxe um sotaque autenticamente russo a Tchaikovsky. A orquestra esteve muito bem e, logo após o segundo movimento, anotei apressadamente no programa: “Klaus Volkmann, que bonito, que delicadeza! Javier tb mto bem!”.

O feito de Klaus é digno de nota, ainda mais que eu soube depois, através de fontes ligadas à orquestra, que ele tinha deixado cair no chão o estojo de sua flauta, avariando o instrumento. Imaginem que ele tocou num INSTRUMENTO EMPRESTADO do segundo flautista! Com todos os solos que fez — era uma noite em que Klaus seria especialmente exigido — e com a extraordinária qualidade deles, dá para se ter uma ideia da magnitude do feito. Poucos conseguiriam. É como se ele tivesse saído do banco de reservas, após longa lesão, para virar o jogo. Porra, Klaus, foi demais!

Depois veio Batuque, de Alberto Nepomuceno (1864-1920), espécie de micro-Bolero de Ravel. O cearense Nepomuceno tem o mérito de ter sido um dos precursores do nacionalismo musical, que explodiu mesmo com o talento de Heitor Villa-Lobos

Por falar nele… E veio a melhor peça da noite, o Choros N° 6, de Villa-Lobos. Escrita para orquestra em 1926, a peça só foi estreada no Rio em 1942. É irresistível. Meus sete leitores sabem, tenho o coração duro e o derramamento de mel promovido por Tchaikovsky apenas me agradou parcialmente. Gostei mesmo foi do Choros, espécie de passeio musical — de trem, como Villa gostava de trens! — por bairros e cidades da periferia do Rio de Janeiro. É uma obra de primeira linha, com episódios muito belos, seresteiros, carnavalescos, chorados e contrastantes. O que anotei apressadamente no meu programa? “Klaus de novo, abrindo maravilhosamente os trabalhos. Não esquecer do Calloni (corne-inglês), do Tiago (trompete), o belo sax soprano do Carlos Gontijo e o clarinete do Samuel de Oliveira.”. Porra, Klaus!

Grande concerto.

Ao centro da foto, Elena Romanov, com Klaus logo atrás.
Ao centro da foto, Elena Romanov, com Klaus logo atrás, à direita | Foto: Olga Markelova Medeiros

Programa:
Pyotr Ilyich Tchaikovsky: Concerto para piano nº 1, Op. 23
Alberto Nepomuceno: Batuque
Heitor Villa-Lobos: Choros n° 6

Regente: Carlos Prazeres
Solista: Guigla Katsarava (piano)

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